quinta-feira, 30 de julho de 2020

Ema e a Estrela Carente, de Sérgio Almeida


Quatro anos depois de O Elefante Que Não Sabia Voar, ilustrado por Alberto Faria  e editado pela Caminho das Palavras em Abril de 2016, Sérgio Almeida traz a lume o seu segundo livro infanto-juvenil, Ema e a Estrela Carente (2020), com a chancela da Mosaico de Palavras e ilustrado por Carla Monteiro. 

Jogando com a expressão «estrela cadente», o título sugere, de imediato, uma história centrada no mundo dos afectos e na esfera cósmica, e a obra, pela sua extensão, aproxima-se da de uma novela de preferencial destinatário infantil, estruturada em cinco partes, cada uma dividida em vários capítulos, com excepção da última.

 

Atentemos noutros elementos peritextuais: a dedicatória às filhas do autor (Ema e Eva), «fontes de inspiração. E transpiração» (p. 3); e a sinopse da contracapa, de que nos socorremos para sumariar o enredo: «Ema é uma menina de 9 anos movida a sonhos e curiosidade.» Por muito que os pais e a professora lhe recomendem que deixe de estar com a cabeça nas nuvens e se concentre nos estudos, «a sua inquietude fala sempre mais alto. Numa noite em que o sono teimava em não vir, a jovem descobre uma estrela que, pelo movimento e luminosidade constantes, parece querer comunicar com ela. Quando decifra que a estrela está perdida na imensidão do céu, resolve ajudá-la na hora. Conseguirá Ema fazer com que a sua pequena nova amiga encontre o caminho de casa?»

 

A sequência das acções – contada por um narrador heterodiegético cujo discurso mantém, do princípio ao fim, um registo de recorte coloquial, tirando partido humorístico de diversas expressões – responde, no essencial, à pergunta colocada na sinopse. E a história, explorando uma via entre o fantástico e o onírico, e desembocando num final feliz, faz contracenar uma figura humana, Ema, e várias personagens astrais: as estrelas Ester («brava, voluntariosa e leal», p. 14), Genoveva (a personagem disruptora, marcada pelo oportunismo e qualificada como difusora de boatos e «metediça», acabando por perder no seu conflito com Ester), Dona Polar, «líder da constelação» (p. 9), o Senhor Sol, a Dona Lua (com uma superfície «abundante em queijo», p. 15), além doutras figuras secundárias, umas cósmicas outras terrestres.

A convergência de Ema e Ester – atente-se na presença da mesma inicial nos nomes – é um encontro maturativo de egos, um tanto solitários mas caracterizados pela bondade e pela preocupação com o outro, encontro esse que permitirá coroar de êxito o percurso da pequena estrela, ela própria com algo de infantil mas em processo de amadurecimento, como a sua amiga da Terra. 

 

Talvez os traços principais desta tessitura narrativa sejam, além dos valores positivos que tematiza e do modo como procura trabalhar o mundo interior das personagens principais, o assumido retardamento do tempo narrativo, num jogo de pequenos avanços seguidos de pausas a permitir explorar certo suspense, na tentativa de gerar expectativa no leitor.

 

Pontuado, aqui e acolá, por elementos intertextuais, que, de modo simples mas oportuno, ora convocam Camões, Afonso Lopes Vieira, Pessoa, ora Kant, Roger Penrose, Huber Reeves, Daniel Casanave, Stephen Hawking ou a história do Código Morse, este livro de Sérgio Almeida, confrontando o leitor com uma personagem infantil que ama os livros, e que, não por acaso, é também uma mente criativa e inventora (fazendo uso, evidentemente, da Internet e das novas tecnologias mas também do raciocínio), não deixa de constituir uma exaltação despretensiosa mas bem necessária, hoje e sempre, da aventura do conhecimento, da leitura, da curiosidade: «Do que Ema gostava mais nos livros era da sua liberdade sem fim. Retirava um qualquer da estante, aspirava o seu cheiro (sim, cada livro tem um cheiro próprio!), lia uma passagem cuidadosamente selecionada pelo acaso e esperava um micronésimo de segundo. Tanto bastava. Se a frase lhe fizesse cócegas no cérebro, continuava a leitura. Caso contrário, abria outro livro e repetia o processo as vezes que fossem necessárias» (p. 35).

 

Pequeno livro revelador duma especial atracção pela astronomia e pelo desafio de construção de mundos ficcionais a partir da realidade cósmica, Ema e a Estrela Carente não deixa, à sua escala, de trazer à memória todo um punhado de obras, muito diversas umas das outras, mas ligadas a um mesmo imaginário, a que pertencem clássicos das leituras infanto-juvenis como Da Terra à Lua (1865), de Jules Verne, ou O Principezinho (1943), de Antoine de Saint-Éxupéry, e textos contemporâneos como a peçazinha História Breve da Lua (1981), de António Gedeão, o conto ilustrado O Elefante Cor de Rosa (1974), de Luísa Dacosta, ou ainda os poemas de Pó de Estrelas (2004), de Jorge Sousa Braga.

 

Uma palavra final para recordar que, sendo jornalista e promotor cultural, Sérgio Almeida nasceu em Angola (Luanda), em 1975, e é autor dos livros, de preferencial destinatário adulto, Análise Epistemológica da Treta(contos, 2003), Armai-vos Uns aos Outros (novelas, 2004), Não Conto (contos, 2016), Cartas a um Jovem Ladrilhador (2016), Como Ficar Louco e Gostar Disso (poesia, 2004), Ob-Dejectos (prosa poética, 2005), Lemon, uma Viagem para a Felicidade (2019) e Periferia (poesia, 2019). Coordenou ainda o volume Poesia Traduzida de Luiza Neto Jorge (2016).


José António Gomes

 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

domingo, 19 de julho de 2020

Aqui é um bom lugar, de Ana Pessoa e Joana Estrela

Intitulado Aqui é um bom lugar e originalmente assinado com o pseudónimo Teresa Tristeza, a última narrativa juvenil de Ana Pessoa, publicada em 2019 com a chancela da Planeta Tangerina, afigura-se, a vários títulos, singular. 
A expressão titular (Aqui é um bom lugar) abre, desde logo, um especial horizonte de expectativas, remetendo para um topos que se distingue pela proximidade e pelo optimismo, mas que parece não se cingir ou não (dever) ser entendido apenas como um espaço físico. Na verdade, pressente-se um espaço psicológico/interior e, depois de lida a narrativa, e confirmada esta hipótese, parece até que a ironia, em certos momentos, também emoldura, com discrição, este relevante paratexto, que, aliás, ressurge, por vezes, ao longo do relato (p. 30).
Num discurso emotivo, na primeira pessoa, da responsabilidade de Teresa, uma jovem de 17 anos, narradora autodiegética, a narrativa, de contornos autobiográficos, desenvolve-se em torno d(est)a protagonista, deixando transparecer múltiplos sinais do tempo, como tiques de linguagem, frases-chave do registo informático ou ressonâncias de um estilo próprio da comunicação nas redes sociais – «This username does not exist» (p. 18), «Escape. Delete. Restart» (p. 25), «Accept cookies» (p. 46), entre outros. Estes aspectos, associados também ao tom humorístico de certos fragmentos/segmentos, alguns similares a aforismos, em muito contribuem para envolver o potencial destinatário, ou seja, o jovem leitor. Um Eu – um Eu que se questiona, que duvida, que se desilude e alarma, que convive e que se isola, que sofre (pode ler-se a dado momento: «Só para sentir uma dor física e não esta: a dor existencial. A dor por dentro, que não passa, que nunca vai passar» (p. 31)) e que se diverte, também – um Eu, sublinhamos, prevalece/avulta e revela-se/mostra-se na narrativa. Portanto, talvez não surpreenda a assiduidade de segmentos de teor existencialista, que oscilam entre o simples e o complexo, entre o superficial e o profundo. Apenas alguns exemplos: 
 «Será que sou assim?» (p. 45) – questiona-se; 
 «Momento contemplativo: / Olha o mundo através de uma janela. / Para a rua. Para os vizinhos da frente. Para aquela árvore ali ao fundo. / O mundo lá fora e o mundo cá dentro. / Estar no meio. À janela. À espreita. // Que árvore é aquela? / Não sei. // É possível pensar sobre as coisas sem saber o seu nome. / É possível pensar sem saber. // A pessoa à janela vive num mundo com os olhos postos noutro mundo. // Eis o poder de uma janela: pertencer ao mundo mas não completamente. / Pertencer ao longe. Vagamente. Ter a impressão de pertencer sem pertencer. / Fazer parte do mundo como uma recordação. / Como uma fotografia.» (p. 9) – escreve, revelando a sua hesitação ou, até, algumas das suas fissuras/dilemas interiores.  
Mesmo a configuração espácio-temporal, discretamente desenhada e pautando-se por uma relativa concentração, síntese e rarefacção – note-se que o relato se constrói ao longo de um ano lectivo, entre o Outono e o final do Verão seguinte (com menções ao Natal, ao Carnaval e aos Santos Populares, por exemplo), situando-se, quase na totalidade, na escola e em casa –, a configuração espácio-temporal, dizíamos, apresenta-se de índole marcadamente psicológica. A dado momento, pode ler-se: 
«Eis uma noite muito longa e muito fria. Uma noite imensa. Total. / Nunca mais vai acabar. Caiu por terra como um assombro. E não há como escapar. // A rapariga escreve. / Pudera.» (p. 14). 
Se as linhas ideotemáticas que se cruzam em Aqui é um bom lugar são, na verdade, in/atemporais – referimo-nos, por exemplo, aos dilemas, às dores do crescimento ou da maturação física e psicológica, à descoberta da sexualidade, ao amor, à amizade, às relações familiares ou ao questionamento do eu, do outro, do mundo, em geral –, já o registo, coloquial, vivo e/ou fresco, frequentemente cómico, e os mecanismos técnico-discursivos que nele se mobilizam, reflectem uma estética muito contemporânea. Dão, pois, conta de uma escrita segura (ousada ou corajosa, até), que se afasta das estruturas tradicionais mais comuns e explora, por exemplo, o fragmentarismo, a hibridez genológica, a intertextualidade e/ou a metaficção/metatextualidade. 
Desde segmentos de poesia/de escrita concreta ou experimental (p. 20), criados pela narradora no decurso da sua escrita diarística, passando por alusões a clássicos da literatura universal – como as Mil e Uma Noites(p. 26) ou Peter Pan, representado pelo Sininho (p. 27) – ou por obras canónicas da literatura portuguesa – como o Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros (p. 33) ou o romance Até ao Fim, de Vergílio Ferreira –, até um (recente) texto do escritor chileno Luís Sepúlveda, História de um caracol que descobriu a importância da lentidão (Porto Editora, 2016) (p. 16), neste texto galardoado com o Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2019, cruzam-se/ouvem-se diferentes vozes. E assim sobressai também como uma desafiadora «tessitura polifónica» (retomando a expressão de Aguiar e Silva). 
Antes de terminar, queremos, ainda, assinalar o facto de, no inédito que pudemos avaliar, se verificar já a presença de uma «Nota de Leitura», inscrita na abertura, a saber: «O presente texto pretende integrar diário gráfico amplamente ilustrado.». Com agrado, lemos, na altura em que conhecemos este texto da Ana Pessoa, esta nota, lemo-la como um sintoma de quem tão bem sabe como o registo visual pode ser determinante para a co-construção de um relato e entendemo-la já como uma espécie de promessa (quem sabe?) de que este Aqui é um bom lugar viria a lume em forma(to) de narrativa/diário gráfico. Ora, a associação posterior do discurso visual de Joana Estrela (1990-) ao discurso verbal de Ana Pessoa resultou numa composição muito equilibrada e estimulante. O dinamismo, a rapidez e a vivacidade do traço de Joana Estrela, que conjuga diferentes linguagens e técnicas visuais – como o desenho a lápis de grafite, a fotografia, o recorte e colagem, por exemplo –,  e/ou a própria variedade de registos e de composição das páginas combinam com a oscilação de estados de espírito da protagonista e com as visões do real que prendem a sua atenção, por exemplo.
Para terminar, falta, igualmente, sublinhar o facto de esta obra, como afirmámos, originalmente assinada com o pseudónimo Teresa Tristeza – nome que é simultaneamente o da sua protagonista que, em certas passagens do relato, joga, declinando-o expressivamente («Teresa Alteza/ Teresa Beleza/Teresa Leveza» – p. 11) –, ser, como referimos da autoria de Ana Pessoa (Lisboa, 1982), escritora de uma novíssima e promissora geração de autores portugueses. Ana Pessoa, dando continuidade à escrita de autoras incontornáveis como Alice Vieira ou Ana Saldanha (também já galardoada com o Prémio Maria Rosa Colaço, em 2010), distingue-se, neste texto, como em O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca (2012) Supergigante (2014) ou Mary John (2016) (e distingue-se também diversamente no extraordinário álbum poético Eu Sou Eu Sei (2018)), pela força da voz narrativa, uma vez mais, feminina, e pelo recurso a estratégias narrativas sofisticadas, gesto criativo que substantiva não apenas a sua mestria e a sua originalidade, mas também o respeito pelos leitores mais jovens, (estamos certos) nunca subestimados pela autora. 

Sara Reis da Silva
Instituto de Educação – Centro de Investigação em Estudos da Criança Universidade do Minho

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Que Luz Estarias a Ler?, de Ana Biscaia e João Pedro Mésseder

Que Luz Estarias a Ler? é um pequeníssimo livro, que tem a perfeição plena dos objectos feitos com a dedicação de um trabalho artesanal. O texto tem a profunda sensibilidade e o rigor poético de João Pedro Mésseder e as ilustrações o tão reconhecível gesto de Ana Biscaia, em que se salienta a expressividade de um desenho, que simula, no seu traçado, o carácter provisório de um esboço, por assim o exigir, também, o tão delicado tema que o livro aborda.

Ana Biscaia foi a ilustradora convidada, em Setembro de 2014, para participar no festival de Banda Desenhada e Ilustração de Treviso. As imagens que surgem no livro são consequência, como se explica no final da obra, da premência de uma resposta visual a um sentimento fortíssimo, de espanto e indignação, face aos ataques israelitas em Julho e Agosto de 2014, na Faixa de Gaza. Escreve-se no final do volume: «Ainda em Julho, as fotografias eram tremendas. O sangue sobre os destroços, os funerais, o desamparado espanto dos pequenos sobreviventes – esse espanto de que só os olhos das crianças são capazes, algumas surpreendidas a salvar livros dos escombros nas escolas destruídas pelas bombas». Mais do que as imagens da indignação, estas são, afinal, as imagens que resultam de um sofrimento genuíno, mas que deixa escapar uma réstia de esperança, que também passa pela liberdade dos livros, pelo direito ao conhecimento, que significa crescer. Trata-se de uma muito profunda interpretação de sentimentos, a partir de imagens fortíssimas: os olhares das crianças a resgatarem livros dos escombros. Tudo, nesta obra, é símbolo de homenagem e dedicação, como se se tratasse de uma oferenda, em forma de livro, em genuíno gesto de escrita, a deixar viva a marca da memória: talvez por isto, tudo no livro, incluindo o texto, seus caracteres, seja desenhado à mão, a deixar bem expresso, em todos os sentidos, a humanidade, a proximidade de valores entre quem escreve, desenha e compõe o livro.

A partir das pungentes imagens, mas com o tal olhar que é, ao mesmo de espanto e de esperança (são enormes e fundos os olhos das crianças desenhadas), João Pedro Mésseder ordenou uma história, a partir de uma personagem: Khalil, o menino que «gostava de livros», porque ler era como se uma luz se acendesse no coração dos escombros e «deixasse de ouvir os estrondos». Um dia, a escola é bombardeada, e Khalil fica sob os destroços com o livro que estaria a ler. Aysha, sua colega, procura entre os estilhaços e resgata, dentre escombros e ruínas, os livros que há-de levar para a nova escola, tendo sempre a esperança de encontrar  aquele  livro que Khalil estaria a ler, ao ser surpreendido pelas bombas. A menina sabe que um dia o irá descobrir, porque aquele «será, certamente, o que irradiar mais luz das suas páginas brancas.». Com certeza, que o livro de Khalil seria, então, o que mais contraste faria com os tons negros, escuros, definitivamente tristes, deste livro tão bonito que Ana Biscaia e João Pedro Mésseder construíram, a duas mãos, com tanto esmero e cuidado.

Este livro pode ser adquirido em: http://www.anabiscaia.com/Que-luz-estarias-a-ler


Rita Taborda Duarte, 24-2-2015

sexta-feira, 5 de junho de 2020

BARAFUNDA, de Afonso Cruz, Marta Bernardes (texto), José Cardoso (ilustrações)

Subintitulada «Um diálogo filosófico sobre as muitas maneiras de arrumar o mundo», Barafunda, livro editado com a chancela da Editorial Caminho, um volume nascido da conjugação feliz de três sensibilidades, duas em forma de palavras – as de Afonso Cruz e Marta Bernardes – e uma outra em substância ilustrativa – de José Cardoso, parece, desde a primeira página, contrariar algumas das ideias feitas/”pré-conceitos” acerca da literatura de preferencial recepção infanto-juvenil1. Com efeito, desengane-se quem julgar que esta obra – porque potencialmente destinada aos leitores mais novos – é simples (ou talvez melhor dizendo, simplista), versando temáticas mais ou menos quotidianas/corriqueiras. Que não se pense também que esta se inscreve em absoluto ou inequivocamente num dos modos literários – narrativa, poesia ou drama ­– ou que guarda um texto breve ou muito breve construído a partir de estratégias comuns. A realidade é – e ainda bem!... – outra.

De facto, Barafunda, como sugere e explicita o seu posfácio, da autoria de Marta Bernardes, possui, antes de mais, um relevante hipotexto filosófico, situando-se, assim, nessa «constelação precedente de textos» (retomando a expressão de Stierle) que a teoria da literatura convencionalmente apelida de intertextualidade. Dos Metadiálogos de Gregory Bateson (1904-1980), resultantes das conversas deste intelectual com a sua filha durante a sua infância, passando por Aristóteles e Platão, e talvez até – quem sabe? – por um ou outro segmento da poesia e do texto dramático de Manuel António Pina (1943-2012) – do Inventão, por exemplo –, são vários os fios subtextuais com que se tece esta obra de Afonso Cruz e de Marta Bernardes. E esta «tessitura polifónica» (na expressão de Aguiar e Silva), só possível porque – sublinhe-se – nos encontramos perante uma dupla de autores cultos, esta tessitura polifónica, dizíamos, materializa-se através de uma construção dialógica, simultaneamente de elevada poeticidade e de carácter parateatral. Aliás, as ressonâncias teatrais em Barafunda são diversas. Veja-se que a própria arquitectura interna – em cinco secções/actos, a saber «Barafunda», «Barafinda», «Farabunda», «Rafabunda» e «Bafarunda» – parece disso dar conta. Talvez valha aqui a pena lembrar que este texto, em forma teatral ou espectacular, se encontrou em cena em Março de 2014, no Teatro Maria Matos. 

Ao tópico do brincar (não só com as palavras como facilmente se percebe), o brincar como acto estruturante, na ordem e na desordem, juntam-se outras linhas ideotemáticas, algumas de possível “arrumação” dicotómica, como ordem e desordem, memória 2, humanismo e/ou condição humana – «As pessoas fazem toda a diferença. Um / quarto é um quarto, mas um quarto / com uma pessoa é um universo» (Cruz e Bernardes, 2015: 37), diz o texto –, liberdade, afectos, razão e, até, naturalmente, a «contradição humana», por exemplo. É, pois, um conjunto de eixos semânticos que ganham em Barafunda expressão nas vozes de um argonauta que se encontra a arrumar o quarto – Ari ou Aristóteles – e uma nave, uma voz maternal – ou Platão.         
Além da estratégia supramencionada, o diálogo, construído a partir de enunciados breves e pautado pela vivacidade e pelo humor, assinale-se, ainda, o recurso à técnica do encaixe, visível não apenas nas diversas canções de celebração, mas também e, muito especialmente, na inclusão, quase no final da obra, da história de um pintor grego e dum pintor persa (p. 40).

A própria composição visual do volume, assinada por José Cardoso, mobiliza o encaixe e a intersecção, por exemplo, misturando também, organizando e desorganizando uma variada paleta cromática e um conjunto simultaneamente económico e expressivo de formas geométricas. As ilustrações e a sua disposição na página – simples ou dupla – corporizam e respondem eficazmente à mensagem textual, ampliando alguns dos seus mais relevantes semas.

Por tudo aquilo que registámos, é possível afirmar que, em Barafunda, não se subestima a capacidade receptiva dos destinatários mais novos, ao mesmo tempo que se abre a possibilidade de uma fruição plena e muito estimulante por parte do leitor adulto. Esta abertura, teoricamente inscrita no domínio da literatura crossover ou de recepção dual, não é coisa pouca... Note-se. 

Terminamos, pois, pedindo de empréstimo algumas palavras partilhadas por Elias Bonfim, o narrador da premiada novela Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010), de Afonso Cruz: 

«(…) basta saber que um bom livro deve ter mais do que uma pele, deve ser um prédio de vários andares. O rés-do-chão não serve à literatura. Está muito bem para a construção civil, é cómodo para quem não gosta de subir escadas, útil para quem não pode subir escadas, mas para a literatura há que haver andares empilhados uns em cima dos outros. Escadas e escadarias, letras abaixo, letras acima.» (Cruz, 2010: 14-15).

Acrescentamos e finalizamos: Barafunda é, de facto, um edifício feito de vários andares. Subir e descer as suas escadas e escadarias é (foi), para nós, um belo exercício. Agora é a vossa vez!

Notas 

1 Este texto encontra-se escrito segundo a norma ortográfica da Língua Portuguesa anterior ao Novo Acordo Ortográfico.
2 «As pessoas trazem nos olhos o risco branco que / os aviões desenham no céu. E trazem amigos / dentro delas e recordações de aniversários e de / festas. Trazem muitas coisas. É como se dentro / delas houvesse muitos quartos. Na cabeça, / no peito, no corpo todo. Nem se percebe / como é que os quartos não ficam a abarrotar, / todos desarrumados de memórias e de tudo / aquilo que as pessoas têm dentro delas.» (Cruz e Bernardes, 2015: 31).


Referências bibliográficas

CRUZ, Afonso (2010). Os Livros que Devoraram O Meu Pai. Alfragide: Caminho.
CRUZ, Afonso e BERNARDES, Marta (2015). Barafunda. Alfragide: Caminho (ilustrações de José Cardoso).


Sara Reis da Silva

Instituto de Educação – Centro de Investigação em Estudos da Criança Universidade do Minho | sara_silva@ie.uminho.pt

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Lengalenga de Lena, a Hiena, de Ana Luísa Amaral e Jaime Ferraz

Merece aqui referência um título novo de Ana Luísa Amaral – notável poetisa, ficcionista, ensaísta, que tem cultivado também o livro para a infância, caso do volume objecto desta nota de leitura.

A obra intitula-se Lengalenga de Lena, a Hiena (Edições Zero a Oito, 2019, col. Na minha rua). 

Servida pelas dinâmicas ilustrações de Jaime Ferraz, cromaticamente vibrantes mas de bom gosto, a autora constrói uma história divertida e sensível, trilhando os caminhos da metaficção e da metalepse. Centra-se numa hiena, Lena, e noutros animais, como a girafa, mas também em dois bichos oriundos «dos livros», isto é, da esfera (meta)ficcional. No texto, a contadora conversa com outra personagem (presume-se que infantil) e, neste registo dialogal em verso, fantasista e poético, vai tecendo/narrando a história da presença de Lena em sua casa e do regresso do animal à savana. 

A temática é cara à autora: a diferença, mas também a saudade das raízes e de um espaço, por assim dizer, materno e livre. Uma bela e divertida obra, em formato de álbum, para leitores iniciais, e que, como sucede com todos os livros infantis de Ana Luísa Amaral, se caracteriza por uma reconhecível qualidade no plano da construção discursiva. 

José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

domingo, 17 de maio de 2020

À noite as estrelas descem do céu. Iniciação à escrita de haicais: poemas e guia, de João Pedro Mésseder e Susa Monteiro

Resultado da refundição de uma obra anterior vinda a lume em 2002, À Noite As Estrelas Descem do Céu. Iniciação à escrita de haicais: poemas e guia (Edições ASA, 2016, 39 pp., ISBN: 978-989-23-3295-6), de João Pedro Mésseder, é um pequeno livro que, como se pode ler no subtítulo, pretende orientar crianças e jovens na iniciação à poesia, mais concretamente à escrita de um género tão particular como a forma breve japonesa haicai (mais frequentemente designada como haiku, por razões histórico-literárias que não cabe aqui esmiuçar, embora no Brasil seja comum o termo haikai ou haicai, ocorrendo, em alguns casos, o mesmo em Portugal).

Este livro é composto por três partes: a primeira secção – «Palavras introdutórias» – dedica-se à explicação do género haicai em termos históricos e conceptuais, finalizando com sugestões de leitura. Na segunda parte, encontramos uma sequência de poemas da autoria de João Pedro Mésseder, ordenados por ciclos sazonais (inverno, primavera, verão, outono), como é comum nas recolhas de haicais, a partir dos quais educadores, professores e mediadores da leitura podem experimentar práticas de escrita com crianças e jovens. Leiam-se dois dos poemas aqui incluídos:

Sobre as águas
cai o silêncio
e um lento navio é possível. (p. 22)

Da janela do comboio
vêem-se os campos de arroz –
coração iluminado. (p. 30)

Na terceira parte do livro, podemos desfrutar de uma conversa com o autor, poeta e tradutor de alguns poemas de Bashô. «À conversa com o autor sobre o haicai» suplementa as aclarações expostas nas «Palavras introdutórias». Note-se que nesta última parte o autor propõe mais alguns desafios ao leitor – o de completar haicais, utilizando palavras apresentadas aleatoriamente.

Considerável número de educadores e professores continuam, em Portugal, como em outros países da Europa, a não saber como introduzir a poesia na escola – a poesia afigura-se-lhes difícil e obscura e, por isso, creem não ser atingível pelas crianças. À Noite as Estrelas Descem do Céu. Iniciação à escrita de haicais: poemas e guia é um livro que, a somar ao valor poético intrínseco das composições que dão corpo à segunda parte, se apresenta como instrumento didático auxiliador de práticas de escuta, de leitura e de escrita poéticas nos 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico. 

O ensino da língua materna não será efetivo se insistirmos no servilismo funcional e inequívoco das palavras e sua sintaxe, esquecendo que as palavras possuem uma espessura semântica que ultrapassa o uso pragmático da língua,e que a apropriação dessa polifonia garante o domínio da língua materna. A poesia é o lugar experimental em que a estrutura e o funcionamento da língua são confrontados com realidades poliédricas não dizíveis a não ser pela linguagem e experimentação poéticas. Disse Octavio Paz que a poesia não é incompreensível, é apenas inexplicável – pese embora a verdade contida na asserção do poeta, este livro de Iniciação à escrita de haicais convida-nos a desafiar essa «linguagem do corpo e do espírito, essa linguagem que se recria a si própria», ou seja, a poesia lírica, como a caracterizou o poeta, ensaísta e pedagogo francês George Jean.

Saliente-se ainda a interação que João Pedro Mésseder estabelece com os possíveis leitores deste «guia», instituindo-se, ao longo do texto, um efetivo ato conversacional. A aproximação discursiva com o leitor efetiva-se através de um discurso pedagógico-didático marcado pela relação de segunda pessoa, materializada em expressões interrogativas e explicativas como «Nunca leste um haicai?» (p. 1), «Explicar-te-ei o que é um haicai» (p. 2). Esta cooperação e dinâmica discursivas, para além de garantir com maior eficácia a passagem de conhecimentos, permite que o jovem leitor se autonomize nesta «iniciação à escrita de haicais».

Uma palavra final para a qualidade da concepção gráfica da obra, não obstante tratar-se de um pequeno volume, e, sobretudo, para as sugestivas ilustrações de Susa Monteiro, um dos nomes actualmente mais destacados no campo da ilustração em Portugal, responsável por livros como o belíssimo Sonho (2018) e Beja (2016) (este um guia, incluído na colecção «A minha cidade»), ambos editados pela Pato Lógico. De realçar a especial adequação das imagens ao espírito do texto e do próprio haicai. 

Ana Cristina Macedo
IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Politécnico do Porto) 

domingo, 10 de maio de 2020

Águas de Infância, de Nuno Higino: poesia de qualidade para todos

Um rio com seus esteiros? Um par de correntes irmãs? Sim, talvez se possa dizer que existem duas correntes na poética de Nuno Higino, a corrente das «águas de infância» e a das outras águas. Mas a segunda não exclui a primeira, são correntes contíguas e com vasos comunicantes, por assim dizer. A segunda está na origem dos livros de poesia de preferencial destinatário adulto. A primeira é a mater das recolhas de poemas de Nuno Higino, classificadas como sendo para a infância, mas que na verdade constituem poesia de reconhecida qualidade para todos, crianças ou adultos. O magnífico volume A Trote e a Galope: Poesia para a Infância (Letras & Coisas, 2017), com ilustrações de Alberto Péssimo, reúne, até hoje, o essencial dessa criação poética, que, não haja dúvidas, é das mais relevantes da nossa actual literatura para a infância e a juventude.

Para fazer uso da bela metáfora que o poeta achou para dar título a este seu livro de Novembro de 2019, direi que «águas de infância» muitos de nós talvez as tenham visto. Mas, para a peculiar voz que escutamos nestes versos, elas são as águas vistas «no estio que havia nas tardes de domingo» (belo e assonântico achado expressivo que lemos na p. 5 de Águas de Infância, Letras & Coisas, 2019). E, portanto, é como se, logo no poema inicial, o que empresta o título à obra, se indiciasse um desfilar de seres, de situações, de objectos, de estados de alma e de episódios convertidos em poesia – muitos deles, pode o leitor imaginar, tornados inesquecíveis por ter o seu brilho intenso iluminado as «tardes» de uma meninice. A do poeta? Não sei se isso importa muito. Uma meninice – isso sim interessa – sobretudo dourada; uma infância entregue ao desvelar emocionado do mundo. Esse mundo onde os rios, as árvores, as pedras, os bichos são como que expressões de um jardim edénico, em que também nos foi dado viver, mas que tratamos de forma incompreensivelmente cruel e desdenhosa. E abuso, a propósito, de um título feliz – mas por mim descontextualizado – de Frei Bento Domingues: «somos nós que nos expulsamos do paraíso» (Público, 17-11-2019, p. 9).

Considerando que, nos verdadeiros poetas (e Nuno Higino é um deles), tal infância se mantém viva ao longo da vida, pode-se dizer que talvez seja ela a matriz de diversos poemas. Por exemplo, «Viagens» (p. 22), em que um caixote de cartão, transformado em brinquedo, é evocado como veículo de muitas viagens, graças à imaginação do pequeno motorista ou viajante, um menino sonhador que não precisava de dispositivos electrónicos nem de jogos caros para saber brincar. Mas podiam apontar-se, nesta mesma linha, outras composições. Poemas, por exemplo em torno de animais, sempre tão queridos da infância (como «A passarada», «A formiga aventureira»», «O gato usa sapato?», «Um gato muito esquisito», «Mosquitos por cordas»…), poemas em torno de uma pedra que – como um vestígio prometaico – guarda em si a memória do fogo («A pedra tem fogo»), ou ainda em torno de um alegórico jardim, «lugar bom para crescer» e onde se observa «cada qual com seu direito» (p. 55), quer dizer, cada árvore, cada flor e demais plantas, como se de seres humanos se tratasse.

Não se pense, contudo, que este livro se esgota na temática vegetal e animal (e neste pequeno zoo poético o gato ocupa lugar privilegiado) – temática animal essa que talvez não passe, afinal, de uma expressão pobre e redutora, a esconder o facto de alguns destes poemas sobre bichos (mesmo quando fabularmente personificados, como em «O boi e o burro») possuírem a marca do cómico (de situação, de carácter, de linguagem) e serem extremamente divertidos. Isto é potenciado, aliás, por dois traços que distinguem Nuno Higino: a mestria das artes poéticas e a sua capacidade, o seu prazer, quase labial, em explorar o poder sugestivo da linguagem, designadamente a sonoridade, a música das palavras (por exemplo os nomes das aves, em «Passarada», e das árvores em «O crescer das árvores»). Os mais novos irão, estou certo, apreciar estes poemas de ritmos e musicalidade insinuantes, que, juntamente com as ilustrações de Joana Antunes, constituem objectos ideais para uma iniciação à poesia e à arte.

Aliás existe neste livro um certo lado pedagógico – faço questão de reabilitar este adjectivo –, nunca forçado, mas inteligente e sensível, apostado em abrir, e não em fechar, horizontes aos mais novos. Leiam-se, nesta óptica, as cativantes e educativas formas de iniciação artística que são os poemas «Como se faz poesia» (pp. 16-19 – belo tributo ao singular poeta brasileiro Manoel de Barros, espécie de pai de todas as poéticas para a infância), «Um livro, um amigo» (p. 44) ou ainda «A arte» (p. 49) – composições que certamente suscitarão reflexões tudo menos infantilizantes sobre aquilo que transmitem e sobre a pedagogia da sensibilidade que promovem.

Numa obra em que a mestria versificatória de Nuno Higino privilegia o heptassílabo e o pentassílabo, e em que, por vezes, a rima aposta em esquemas menos óbvios, como sucede na algo surrealizante «História com moral» (p. 32), é de notar ainda a exaltação da riqueza (palavra utilizada num dos poemas) existente nas coisas aparentemente simples, sejam elas elementos da Natureza (e a Natureza aqui é sempre porta aberta para o imaginário, fomentando o sonho criador), sejam um «sorriso de criança» (no texto com este título, p. 56) ou o próprio saber – aquilo que faz daqueles que o conquistam «reis do conhecimento» (v. poema «Rei do conhecimento», p. 12). E que preciosos pensamentos dirigidos aos mais jovens e a todos, sobre o modo de se ser humano e sobre o mundo, encerram alguns destes poemas num registo que nunca é simplista.

Embora as composições de Águas de Infância – ora de pura tonalidade lírica, ora em clave narrativa e/ou dialogal – sejam de assinalável beleza, esteticamente cativantes, quer do ponto de vista das ideias quer no indissociável plano das formas e das formulações imagísticas e outras (há passagens de música verbal da mais pura), trata-se de uma poesia que se não quer numa torre de marfim, abstraída dos males do mundo e da sociedade. E daí a presença de um veio de reflexão que não vira costas nem à pobreza e à desgraça humanas («Águas sujas de calamidade», p. 27) nem aos males de ordem ambiental que afectam o planeta: poluição dos oceanos, aquecimento global, destruição da vida animal («Diálogo por um mundo melhor», p. 28), nem à pulsão predadora do ser humano («Adivinha», p. 60, em que vagamente ecoa o Padre António Vieira do Sermão de Santo António aos Peixes).

Existem composições muito belas, e de grande intensidade lírica e poética, neste livro, como «Águas de infância» (p. 5), «O rio da minha vida» (p. 43), «O jardim» (p. 55), «Sorriso de criança» (p. 56), que me apeteceria ler em voz alta e comentar. Mas já me alonguei. Direi apenas, quase a terminar, que, tal como as outras, estas são exemplos de pura arte oferecida à infância dos difíceis e perigosos dias em que vivemos – e como anda ela precisada dessa arte, como andam a infância e a juventude necessitadas do melhor que se lhes possa dar a ler, a contemplar, a fruir de um ponto de vista estético. Obras que emocionem e eduquem para uma visão humanista, e que estimulem um pensamento crítico sobre o mundo.

Também por isso, não surpreende que tenha sido escolhida uma verdadeira artista da pintura e não apenas da ilustração, Joana Antunes, para a parceria com Nuno Higino neste livro. Também ela soube carrear para estas páginas as suas «águas de infância», muito belas e expressivas, sábias nas formas, no desenho e na combinação das cores, imprimindo ao conjunto um registo algo tropicalista, se me é permitida a palavra, muito pessoal e atractivo, acrescente-se, que me agrada e que faz do livro uma pequena festa de arte e de poesia. Este é, pois, um daqueles casos em que, como alguém dizia, o objecto livro funciona também como primeira galeria de arte que o olhar da criança ou do jovem pode visitar.

Que assim seja, pois. É que, como um dia escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta da afeição de Nuno Higino, «só a arte é didáctica».


José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

Águas de Infância, de Nuno Higino, pode ser adquirido em: https://letrasecoisas.com/loja/

domingo, 3 de maio de 2020

No dia da Mãe, um poema inédito de Violeta Figueiredo


                                                   

HORAS

Sou pequena, 
finjo que ainda não acordei.
"— Oito horas", chama minha mãe.
O quê? Não quero horas todas juntas,
às oito, às doze, às dez
de cada vez!!
"São horas", repete ela.
Ah, assim está bem.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Porque amanhã é Abril!

Um poema para a infância

Chegou o 25 de Abril

Chegou o 25 de Abril
e eram mil
                   e mais mil
                                     e mais mil
tantos mil que não têm conto.

Saíram todos à rua,
aos soldados se juntaram
Ilustração: Ana Biscaia
e de um momento para o outro
sua pátria libertaram
de quase meio século de medo,
de opressão e de silêncio,
meio século de ditadura,
de má vida e de tristura,
décadas de olhos toldados
sem saber mundo ou ver mundo…

Chegou o 25 de Abril
e eram mil
                  e mais mil
                                    e mais mil
tantos mil que não têm conto.

João Pedro Mésseder

Inédito

domingo, 6 de março de 2016

Ainda e sempre, significante e significado: Pandeiretas Cornetins e Rimas Assins, de José António Franco

Autor de títulos para o público adulto e de outros de preferencial destinatário infantil e/ou juvenil, como Versos de Respirar (2009), Rimas e Castanholas (2012) e a narrativa O Melro Envergonhado (2011), além de um livro, muito útil, de pedagogia poética, intitulado A Poesia como Estratégia (1999), José António Franco gosta de assumir a subversão da gramaticalidade como um dos seus modos de estar na escrita poética, que é, sem dúvida, o domínio da criação literária que mais o tem ocupado (1). E daí o «assins» do homoteleutico título do seu livro de Outubro de 2014, Pandeiretas Cornetins e Rimas Assins (Tropelias & C.ª), e, por outra parte, a não utilização de maiúsculas e a ausência, ou quase ausência, de pontuação que normalmente caracteriza os seus poemas e que os torna despojados e porventura mais abertos à pluralidade das expressões/leituras orais e das interpretações possíveis – pelo menos, talvez assim os pretenda o autor. A juntar à circunstância de em geral não dar títulos aos textos – como faz também, por exemplo, Antonio García Teijeiro, escritor galego que igualmente destina a maioria dos seus poemas ao público infantil e juvenil –, diria que estas são algumas das formas que José António Franco tem de viver a liberdade criativa e subversiva que a poesia lhe proporciona e de desafiar os seus jovens leitores a partilhar essa mesma experiência. 

Os pianos, trombones, buzinas que marcam presença nestes versos, a juntar às referências a cantigas, colocam o livro sob o signo da música (2) e de outras manifestações sonoras (leia-se também, ou escute-se, o poema «crocita corvo malvado…» (pp. 52-54), a trazer à memória o famoso «Vozes dos animais» do oitocentista Pedro Diniz), como de igual modo o colocam nesse plano as «pandeiretas» e os «cornetins» do próprio título do volume, bem como o estival poema de abertura, convite ao desfrute da vida em geral e da vida das palavras em particular, de que a música, aqui referida, seria expressão metafórica ou simbólica: «vinde meus amigos / de todas as horas (...) // vinde / sem demora / há música já / oiro do trigo / lábios d’amora» (p. 5). Essa isotopia acústica surge em consonância com o acentuado perfil rítmico dos versos, com recurso a diferentes métricas – em que avultam o heptassílabo, o pentassílabo e outras medidas –, à rima recorrente, ao jogo das aliterações e assonâncias, aspectos por via dos quais José António Franco evidencia a sua linhagem, bem conhecida: a ligação às chamadas «rimas infantis» da tradição oral e popular (trava-línguas, lengalengas, rimas de jogos…).

Mas o poeta vai mais longe nesta exploração da dimensão sonora do signo e do poder de sugestão de sentidos que o significante, só por si, comporta; e é isso que, em parte, explica o gosto pelas palavras inventadas, em composições com algo de experimental, mas simultaneamente bem-humoradas, como «’scanun fósio microdésico…» (p. 19), «juliano piano adormeceu…» (p. 23), ou mesmo no trava-línguas «eu nunca jarritrolirochocolitarei…» (p. 31) – textos reveladores de uma lição bem aprendida quer em alguns mestres do nonsense e da invenção verbal, como Lewis Carroll, quer em experiências como a dos «Sonetos a Afrodite Anadiómena», de Jorge de Sena. 

Ousaria, aliás, afirmar que, em José António Franco, o nonsense – recorrente em vários dos trinta e cinco poemas deste livro – ocupa um lugar que não é o da mera gratuitidade, mas que tem de algum modo a ver com um pertinente propósito de educação linguística e literária. Ou seja, ao trazer para primeiro plano a festa sensorial da linguagem, ao apontar para a sua vibrante dimensão fónico-rítmica, mostra que a palavra pode ser fonte de prazer e de encantamento, independentemente da própria esfera da significação e da comunicabilidade. É como se dissesse (e isto sabem-no bem crianças e poetas): as palavras não se limitam a possuir uma função utilitária, servem também para com elas se brincar, existindo na língua uma dimensão lúdica intrínseca, irrecusável e um tanto subversiva da lógica comunicacional do universo dos adultos. 

Ilustrada, em Pandeiretas Cornetins e Rimas Assins, com belas fotografias de António Rilo (dez, se contarmos a da capa), a escrita de José António Franco não se esgota, porém, na linguagem nonsensical e na dimensão fónico-rítmica da língua. O desafio metalinguístico a pensar a palavra e os seus usos, em poemas como «registei a palavra “casa”…» (p. 17) e «escondeu-se atrás da primeira palavra que encontrou…» (p. 6) – um dos principais textos do conjunto, desencantada visão também do isolamento do ser humano, da incompreensão e da incomunicabilidade –, o culto do poema breve ou brevíssimo, por vezes de cunho aforístico («para o sonho / toda a vida / para a morte / tempo algum», p. 20) são outros eixos a ter em conta neste livro. A eles forçoso é juntar o testemunho de um olhar que contempla e recria poeticamente o que vê – a vida natural e os elementos (animais, vento, mar, rio, sol, lua…) –, uma atitude reflexiva que equaciona a temporalidade, o impulso onírico e a viagem como desejo (leia-se o belo poema «da minha janela não vejo o mar…», pp. 21-22) e até certa dimensão de implicações sociais que se insinua ao de leve em poemas como «o passarinho a cheirar a vinho…» (p. 43) e «o saul só gosta de azul…» (p. 12).

Mesmo correndo o risco da simplificação, direi, a terminar, que tudo o que acaba de ser dito faz destes versos de José António Franco não apenas uma poesia que privilegia o significante, de carácter essencialmente lúdico, mas também uma poesia do significado, uma escrita que desafia o jovem leitor a pensar o mundo, a natureza, as palavras.


Nota

(1) Não obstante contar, na sua carreira, com duas distinções públicas na área do conto: o Prémio Alves Redol de Revelação, em 1990, e o X Prémio Joaquim Namorado, em 1993.

(2) Registe-se este surpreendente começo de um dos poemas: «de repente um piano desabou sob a tarde / desaçaimado desengonçado desteclado / feroz» (p. 25).


José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais do Centro de Investigação e Inovação em Educação (InED) da ESE do Porto