segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O Rapaz que não Se Tinha Quieto, de Rita Taborda Duarte, ou a arte de desejar

Em Março deste ano, reeditou Rita Taborda Duarte, em livro seu, um texto escrito em 2005 para um volume colectivo de homenagem a Branquinho da Fonseca. Com o sugestivo título O Rapaz que não Se Tinha Quieto (Caminho, 2014) – sugestivo por evitar a frase comum em favor da expressiva fraseologia popular, com as consequentes implicações semânticas –, o livro apresenta-se num formato e com um aparato paratextual que, de certo modo, o situam num terreno de fronteira entre o que poderia ser um livro para jovens e um livro para adultos. Senão vejamos: a capa é dura e as ilustrações depuradas mas conseguidas, de Ana Ventura, no seu geometrismo quase abstractizante, traçado a branco sobre um belo azul escuro dominante tanto nas imagens como na mancha de texto, sugerem desde logo a abóbada celeste, o desenho das constelações e um certo onirismo (de que o discurso, aliás, está imbuído). Ou seja, estamos perante um objecto nem demasiado adulto, nem demasiado infantil, um objecto transversal, de fronteira, que guarda em si uma narrativa em prosa, dividida em seis pequenos capítulos. Logo no segundo, é citado o hipotexto (do autor de O Barão) a partir do qual e contra o qual, digamos assim, a narrativa se vai tecendo: «– Meu caro rapaz, para pensar bem é preciso estar quieto. A Natureza exige certa monotonia. (…)» (cit. na p. 14).
Lê-se então o texto de Rita Taborda Duarte como o relato trabalhado da aventura (mais interior do que exterior, é claro) de um pequeno grande herói – criança que devém adulto, cada vez mais senhor de si mesmo –, ainda que ancorada, essa aventura, num cenário que aos poucos perde as raízes que o prendem ao «real», por assim dizer, e se impõe, aos poucos, como um espaço imaginário, hiperbólico, de dimensão cósmica. Do seu ínfimo terreno de dois mil metros quadrados onde corre, a dado momento, em círculos que metaforizam o mundo que almeja conhecer, «o rapaz que não se tinha quieto», movido pela sua irreprimível pulsão desejante, irá construir uma torre imensa – a sua «alta torre de granito» (a lembrar a do poema «Metamorfose», de Sena, ou a do conto «A Estrela», de Vergílio Ferreira, mas sem a dimensão trágica da deste conto), uma torre miticamente alta, para a qual carreia estrelas como um deus, «na esperança de ser visto por um navio que o venha resgatar», como é afirmado no peritexto da contracapa.
Belíssimo texto este, menos sobre a viagem real do que sobre a viagem desejada, a que faz mover o ser humano: «a verdade, a verdade séria e genuína, é que o homem, ainda que adulto e amadurecido, é sempre o mesmo animal desejante que nunca se tem saciado» (p. 44).
O que gostaria, no entanto, de salientar, mais do que este eixo ideotemático que percorre o texto – uma escrita que se sente a ser tecida aos poucos e a ganhar crescente densidade –, é a qualidade poética, por vezes até encantatória, da prosa de Rita Taborda Duarte, essa prosa que já vem de A Verdadeira História da Alice (2004), obra que valeu à autora, em 2003, o Prémio Branquinho da Fonseca Expresso-Gulbenkian, e que prossegue consistentemente nos seus livros e álbuns posteriores.
Esta é uma prosa que sabe dosear o adjectivo e a sua colocação na frase, que trabalha por vezes para uma sintaxe vivamente oralizante, que gosta de explorar a expressividade dos sufixos e da fraseologia popular, que se perde e se ganha nos jogos fónico-rítmicos e de palavras («e rodo e rodo rodando», p. 9), evidenciando assim toda a sua sensorialidade, que aprecia também os jogos com a visualidade do texto, ao modo caligramático/concretista. Uma prosa, enfim, para degustar, num livro que não é apenas para ver (embora também o seja), mas é sobretudo para ler. Em silêncio e em voz alta. Um livro em que, não haja dúvidas, o literário, na sua densidade leve e poética, marca decisiva presença.

José António Gomes

IELC | InEd – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto



segunda-feira, 9 de junho de 2014

A literatura para crianças e jovens no pós-25 de Abril: algumas notas

A partir do 25 de Abril de 1974, com a instauração do regime democrático, operam-se alterações significativas na sociedade portuguesa, tanto nos planos político e socioeconómico, como no domínio da cultura. O sistema educativo sofre os efeitos positivos dessa mudança, criando-se condições favoráveis para uma maior democratização cultural e para o acesso de todos à escola, com implicações no aumento do público leitor e na procura do livro.
O fim da Censura, a livre expressão e circulação de ideias e a abertura de Portugal ao exterior favorecem o aparecimento de iniciativas de reflexão sobre o mundo da criança, a par de alguma renovação na literatura que lhe é destinada – resultante, até certo ponto, da possibilidade de publicar em clima de liberdade. Recorde-se ainda que 1974 foi proclamado Ano Internacional do Livro Infantil, que em 1979 se celebrou o Ano Internacional da Criança e que, entre finais da década de setenta e o início dos anos noventa do século XX, se assistiu a um boom da literatura para crianças e jovens em Portugal – graças também a editoras como Horizonte, Caminho, ASA, Plátano, Verbo, Porto Editora, Ambar –, seguindo-se na primeira década do século XXI o boom do álbum narrativo e da nova ilustração portuguesa, para o qual contribuíram editoras como Planeta Tangerina, Orfeu Mini/Orfeu Negro, Gatafunho, Kalandraka, OQO, Caminho, Bruaá, Bags of  Books, etc.
Mencionemos outros factores que favoreceram o desenvolvimento desta área da criação: a introdução do estudo da literatura para a infância nas Escolas do Magistério Primário e, mais tarde, nas Escolas Superiores de Educação dos Institutos Politécnicos e em algumas Universidades; o desenvolvimento da investigação nesta nova área dos estudos literários; o número crescente de colóquios, simpósios e acções de formação sobre o livro infantil e juvenil; as exposições de ilustração e os encontros sobre promoção da leitura e sobre a arte de contar; o arranque da Rede de Bibliotecas Escolares, em 1996, e do Plano Nacional de Leitura, em 2006. Os prémios de texto e de ilustração, atribuídos por entidades estatais, autarquias, editoras e outras entidades vieram contribuir para a dinamização da criação. Encontraram-se, assim, condições para um fôlego renovado, num ambiente de liberdade e num contexto em que cresceu o número de realizações de vária ordem, relacionadas com o universo da criança e com os seus direitos.
Escrever para a infância e a juventude em clima de liberdade implicou, naturalmente, a aproximação gradual a temas que se encontravam arredados da produção literária ou eram tratados de modo menos directo. A emigração (Carlos Correia, Maria Isabel de Mendonça Soares, Jorge Colombo), a diferenciação social e a pobreza (releiam-se os contos de Ilse Losa e Matilde Rosa Araújo), as problemáticas da defesa do ambiente (Ilse Losa, Sidónio Muralha, Papiniano Carlos, Maria Alberta Menéres, Natércia Rocha, José Jorge Letria), da discriminação racial e da multiculturalidade (Luísa Ducla Soares, Ana Saldanha), os conflitos familiares psicológica e socialmente contextualizados, bem como os chamados temas fracturantes (Alice Vieira, Ana Saldanha, Maria Teresa Maia González) começam a ser abordados com insistência nos livros infantis e juvenis. Registe-se, no entanto, que o tratamento de alguns destes temas é, simultaneamente, reflexo da própria evolução da sociedade que a literatura não deixa de acompanhar. O pós-25 de Abril permitiu, por outro lado, o desenvolvimento das obras de escritores de notável qualidade como Ilse Losa, Sidónio Muralha, Mário Castrim, Matilde Rosa Araújo, Manuel António Pina, António Torrado, Maria Alberta Menéres, Luísa Dacosta, Luísa Ducla Soares e a afirmação de outros que abriram os campos temático e dos géneros (Letria, Álvaro Magalhães, António Mota, Ana Saldanha, José Fanha, Vergílio Alberto Vieira, Violeta Figueiredo, José Vaz). Lembre-se, por exemplo, o desenvolvimento da poesia, mas também da narrativa para pré-adolescentes e adolescentes (com Alice Vieira, António Mota, Álvaro Magalhães, Catarina da Fonseca, Ana Teresa Pereira, Alexandre Honrado, Saldanha e outros), além da proliferação das séries, maioritariamente de histórias de mistério e indagação (Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, João Aguiar e tantos outros), tendência que desponta cerca de seis anos após o 25 de Abril. Dos escritores mais jovens destaquem-se Francisco Duarte Mangas, Nuno Higino, Rita Taborda Duarte, David Machado, Afonso Cruz, Carla Maia de Almeida, João Manuel Ribeiro, Eugénio Roda e Isabel Minhós Martins – corresponsável pelo sucesso dos álbuns da Planeta Tangerina, juntamente com os ilustradores Bernardo Carvalho e Madalena Matoso. Álbuns que tiveram criadoras pioneiras em Maria Keil e Manuela Bacelar, ilustradoras incontornáveis, no pós-25 de Abril. Para outra oportunidade ficará a questão da ilustração e dos seus protagonistas ao longo das últimas quatro décadas.

Inicialmente publicado em As Artes entre as Letras, 120, 16-4-2014, p. 6 (republicado agora com pequenas alterações).

José António Gomes

IELC | InEd – Escola Superior de Educação do Porto

domingo, 30 de março de 2014

Um homem é feito de livros (sobre o Dia Internacional do Livro Infantil)


Meyer von Bremen | Strickendes und lesendes Mädchen (1863)
Si hortum in bibliotheca habes, deerit nihil | Cícero, Ad Familiares, 4.4
(trad.: Se tiveres um jardim perto da biblioteca, nada te faltará).
Um homem faz-se de livros. Falo do homem que os leu e, por isso, os guarda em si (alguns, pelo menos); e também do que os não leu, nem lerá nunca. Porque este simplesmente ignora que a sua vida é feita de livros, condicionada pelos livros: a Ilíada e a Odisseia, Platão e Aristóteles, a Bíblia e o Corão, O Capital, a obra de Freud… – que sei eu, que tantos livros tenho ainda para ler?
Mas talvez nenhuns outros tenham feito mais um homem do que aqueles que leu na infância, pois se é garantido que um livro não transforma o mundo, certo é também que pode mudar a vida de um leitor.
A gradual consciência disto me levou a guardar na estante, como num relicário, os livros que os meus dias de menino me pousaram no colo. E aqueles outros que o magro porta-moedas de criança de vez em quando me permitia adquirir, com a aquiescência dos pais.
Grandes livros? Longe disso (tirando um ou outro). Mas que poderia eu saber, nessa época, dos grandes livros que enformavam o mundo? Para o menino que eu era, grandes eram, sem dúvida, os que lia.
Sapato de Fogo e Sandália de Vento, de Ursula Wölfel, ensinava-me a alegria de ter um pai que nos leva a conhecer mundo, estrada fora. E que, por meio de parábolas (ou seja, de palavras), vai dando forma e sentido às comoções e conquistas, aos medos e enganos com que a vida nos torna o caminho suave ou pedregoso. Talvez um outro livro, Companheiros de Spártaco, de um obscuro Eric Houghton, me tenha inoculado a alergia à injustiça, à exploração do homem pelo homem. Terá sido A Gruta, de Nan Chauncy, a tornar-me para sempre sensível aos gestos de rebeldia? E os livros de aventuras que li até aos dez anos e que, sem sair de Portugal, me deram as primeiras imagens da Hungria, da Alemanha, da Andaluzia, dos Andes, da América do Norte, do Alasca ou da Nova Zelândia? (Lá ia eu à procura do mapa do mundo.)
Muitos outros livros, certamente, me fizeram. Mas como não recordar a vez primeira que li a descrição de abertura de A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, estampada nas páginas do meu livro de Português do primeiro ano do liceu? Menino que amava a areia e o mar, os rochedos e os navios, como poderia eu ficar indiferente a essa espécie de poema em prosa que vinha envolver a praia numa aura de estesia, coisa nunca vista por mim nem “ouvida” (sim, porque ler, ler por hábito apura também o ouvido interior, aquele que nos diz se uma frase escrita possui, ou não, a eufonia, a elegância, a respiração necessárias). Pela primeira vez, o real, o “meu” real tomava a forma de palavras, isto é, convertia-se em linguagem. E que linguagem. Linhas de prosa que apetecia ler em voz alta saboreando cada palavra como se na língua se sentisse o sal da maresia, o granulado da areia, o rumor da água e das plantas e bichos marinhos. Com A Menina do Mar aprendi, talvez, sem disso ter ainda consciência, que as palavras não se limitam a dar nome às coisas, as palavras são, elas próprias, coisas – como a poesia, lida mais tarde com devoção, viria confirmar.
Depois, terei entendido que a vida de cada um é uma construção, feita pelo próprio, pelos outros, pelo vasto mundo, obedecendo a um projeto que em nós se vai esboçando, ganhando forma. Mostraram-mo as biografias lidas na infância: de Joana d’Arc, de Mark Twain, de Pasteur, de Daniel Boone, de Abraham Lincoln… Mas também a de Camões, contada, em cromos de banda desenhada, pelos belos desenhos de Carlos Alberto Santos e pelo texto de José de Oliveira Cosme.
Por isso, como não amar os livros, esses companheiros de sempre, na saúde e na doença, até que a morte nos separe? E como não sublinhar, uma vez mais, o papel essencial do livro infantil na sempre inacabada construção de um homem?

José António Gomes


IELC – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Que a Inocência seja recompensada…

ONU está preocupada com "elevados níveis de privação" das crianças em Portugal

Aqui se reproduz, com a devida vénia a Ana Dias Cordeiro e ao jornal Público, excerto de uma notícia publicada em 5-2-2014.


A austeridade é fonte de preocupação para o Comité dos Direitos das Crianças que esta quarta-feira divulgou as conclusões, dos últimos três anos, relativas ao cumprimento da Convenção em Portugal e noutros países.
O comité de 18 peritos independentes alerta para “o preço que está a ser pago” pelas famílias portuguesas com os cortes no investimento público nas áreas sociais, quer ver reduzido o impacto das restrições financeiras nos cuidados de saúde e bem-estar das crianças e defende que devem ser “travados novos cortes no sector da Educação”. A ONU exorta ainda o Governo português a definir “objectivos orçamentais estratégicos” para a infância.
A crise económica e as políticas de austeridade dos últimos anos reduzem as perspectivas de Portugal vir a cumprir a Convenção dos Direitos das Crianças  em Portugal, um dos mais de 190 Estados signatários que, regularmente, se submetem a uma avaliação dos avanços realizados na aplicação dos princípios desse tratado de 1990.
Na sua mais recente avaliação, publicada esta quarta-feira, o comité de 18 peritos independentes alerta para “o preço que está a ser pago” pelas famílias com os cortes no investimento público nas áreas sociais, em consequência da crise, e lamenta que as crianças em Portugal sejam expostas ao “risco crescente” de “pobreza” e às menores garantias dos direitos contidos na Convenção – como o acesso aos cuidados de saúde, ao ensino e à protecção social.
Por isso, além de apelar a Portugal para que continue a harmonizar as suas leis à Convenção, exorta o Governo português a definir “objectivos orçamentais estratégicos” para a infância e a "ter em vista os direitos das crianças na elaboração do Orçamento do Estado". Em concreto, defende "alocações claras para as crianças em sectores relevantes e agências, com indicadores especiais [relativos ao bem-estar das crianças] e um sistema de detecção".
No documento que deve agora ser transmitido ao Presidente e à Assembleia da República, aos ministérios envolvidos nas questões apontadas, ao Supremo Tribunal e às autarquias, o comité considera pois imperativos os esforços para sustentar o investimento social e a protecção das famílias numa perspectiva “equitativa” e sempre na lógica de dar a prioridade às crianças.
Ao mesmo tempo que acolhe, por exemplo, a implementação do Programa de Emergência Social, em 2011, pelo Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, para minimizar o impacto social da crise na vida das famílias mais vulneráveis, ou a extensão do programa alimentar às escolas, com a criação de uma rede de cantinas sociais, salienta a sua preocupação perante “os elevados níveis de privação entre as crianças” e o “impacto negativo” da austeridade na vida das famílias.
Os 18 especialistas do comité, que são eleitos pelos Estados (para mandatos de quatro anos), recomendam ao Estado português não limitar mas reforçar os apoios às famílias, como o abono de família, numa altura em que a tendência tem sido inversa. Segundo dados do Observatório das Famílias e Políticas de Família, publicados no fim de 2013, meio milhão de crianças perderam o direito ao abono de família entre 2009 e 2012, estando Portugal abaixo da média europeia em despesas do Estado para apoio às famílias. (…)

Ana Dias Cordeiro  
Público