domingo, 24 de junho de 2012

Revisitar um romance de Alice Vieira: Caderno de Agosto


Quando Caderno de Agosto (1.ª ed., Caminho, 1995, ilustrações de José Miguel Ribeiro) foi publicado, o último governo do qual Cavaco Silva foi primeiro-ministro conhecera, enfim, o seu termo, para alívio de muitos portugueses. E uma das várias curiosidades deste livro juvenil é precisamente permitir reconstruir uma imagem do tempo sociocultural e político que precedeu essa queda.
O argumento, muito centrado na esfera dos costumes, corre o risco de ser banal, mas o desenvolvimento da narrativa tem o seu quê de engenhoso. Luísa é professora de História e a elaboração da sua tese de mestrado eterniza-se (estava-se num tempo muito anterior ao processo de Bolonha, em que a preparação de uma dissertação para obtenção do grau de mestre podia demorar dois a três anos). Após se ter divorciado de um conhecido psiquiatra, a sua vida segue um rumo sinuoso e Luísa inicia a escrita de um romance. Se esta lhe serve de terapia (interrompida, a espaços, por efémeras paixões), a história que inventa funciona, por sua vez, como espelho ou contraponto dos seus percalços amorosos. Após a inesperada fuga de um sócio que lhe arrebatara um original de sucesso garantido, um antigo colega de faculdade pressiona Luísa no sentido de dar continuidade à sua escrita, na esperança de incluir um novo best seller na indescritível coleção de romances cor-de-rosa de que é editor.
Alice Vieira adota, assim, uma estratégia a que nos habituara em livros anteriores (por exemplo em Viagem à Roda do Meu Nome, 2.ª ed. 1987, ou em A Lua não Está à Venda, 1988) − duas enunciações e duas narrativas paralelas, em registos muito diferentes: Glória, a filha adolescente de Luísa, enche um caderno, em agosto, com as aventuras e desventuras da mãe, do pai e seus reflexos na vida familiar; no computador de Luísa, por sua vez, vai-se tecendo o relato dos encontros e desencontros de Mónica e Alfredo Henrique. Este texto, todavia, acabará por não corresponder às expectativas do editor, ou seja, será tudo menos uma história cor-de-rosa. No final, Glória agrafa às suas folhas os capítulos da segunda narrativa já escritos por Luísa e o "caderno de Agosto" fica completo.
Com esta estratégia, o leitor é obrigado a centrar a sua atenção em dois mundos distintos (o de Luísa e o de Mónica) que, no entanto, reciprocamente se iluminam.
Que há, portanto, de essencial nestas histórias de amores frustrados e de adolescentes expeditos e implacáveis na sua ironia?
Em primeiro lugar, uma prosa que a todo o momento nos arrasta na sua vertigem narrativa, revelando uma desenvoltura e uma trabalhada simplicidade que fazem do romance um dos textos mais saborosos que a autora publicou. Por outro lado, dois olhares impiedosos: os de Glória e de seu irmão António, atentos às fantasias e permanentes contradições dos adultos, em especial de uma mãe "muito-de-esquerda" − em cujo passado mais ou menos militante se contabilizavam algumas festas do "Avante!", a distribuição de comunicados da Fenprof, os protestos contra o Ministério da Educação ou a leitura do JL (jornal que, em dado momento, é apelidado de Bíblia de engenheiros afetados por complexos de inferioridade cultural).
Acrescente-se que o principal segmento da ação de Caderno de Agosto − e este é, como dissemos, outro dos seus motivos de interesse – é a recriação ficcional de um período histórico imediatamente anterior à sua publicação, constituindo uma visão irónica e bem-humorada dos derradeiros tempos do cavaquismo (em que, recorde-se, pontificavam, entre outras estrelas, Oliveira e Costa, Dias Loureiro ou Duarte Lima). Aborda-se, por exemplo, a gradual alteração de valores de algumas franjas da classe média lisboeta, sob a influência da ideologia neoliberal e da cultura do "sucesso" e da superficialidade, veiculadas pelo discurso dos media. Mas assiste-se igualmente ao choque entre uma moral pequeno-burguesa conservadora (representada pelos pais de Luísa) e a atitude mais liberal daqueles que, em 25 de Abril de 1974, atingiram a idade adulta. Os últimos momentos de Caderno de Agosto são, pois, o tempo desse amálgama de discursos resultante da então recente abertura das televisões privadas, na qual se cruzam imagens de telenovela, de programas do tipo "Isto Só Vídeo", e dos serviços noticiosos marcados pelo sensacionalismo, pelas contestações a Manuela Ferreira Leite ou ainda pelo casamento de D. Duarte nos Jerónimos, com o rosto do pai de Glória (convertido às delícias de uma vida burguesa) a emergir de um grotesco cortejo de reis destronados.
A outra face deste mundo, porventura mais sombria, surge retratada no romance escrito por Luísa; é o dia a dia de Mónica e Alfredo Henrique, cujos conflitos afetivos resultam, em parte, dos sonhos desfeitos de uma pequena burguesia no limiar da proletarização, trucidada pelo neoliberalismo e por um quotidiano medíocre.
Seria, contudo, injusto reduzir Caderno de Agosto a uma imagem sociológica ou nele encontrar apenas a caricatura de um imaginário (os sonhos de sucesso social, os mitos da beleza e da saúde eternas, a atração romântica pelos lugares exóticos...).
Num texto que, a cada momento, nos convida a entrar no seu jogo de humor e ironia, apetece, sobretudo, reter o olhar arguto e feminino de Glória, ou seja, o modo divertido como observa, com a lucidez da sua adolescência, a comédia de paixões desastradas e equívocos sem remédio em que, aos poucos, se vão atolando os adultos que a rodeiam.

José António Gomes
NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Maria Keil (2014-2012)


MARIA E MATILDE

À memória de Maria Keil e da sua amiga Matilde Rosa Araújo

O desenho é um passo,
é um salto, é uma asa;
a palavra é um fio
de azul melodia.
E ei-las que dançam,
Matilde e Maria,
lá onde os seus livros
pousarem no colo
e se abrirem aos olhos
- uns olhos que sonhem -
de qualquer menina.

Bruxelas-Porto, 11-6-2012 (o dia a seguir àquele em que Maria Keil nos deixou)

João Pedro Mésseder