segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Uma novela para crianças e jovens em torno da orfandade e não só

Aprecio neste belo livro (Noa, Oficina do Livro, 2021) as ilustrações de Raquel Costa, que fogem a um certo gosto dominante hoje, em Portugal, no domínio da ilustração para a infância, bem como ao uso corrente e exclusivo, um tanto fácil parece-me, de certas técnicas com pouco de artesanal. Depois cada imagem é repleta de pequenos pormenores, sugestivos, criadores de atmosfera e de narratividade, poéticos e atentos à psicologia das personagens. É justo dizer que Raquel Costa sabe ler os textos literários que ilustra.

E a narrativa de Susana Cardoso Ferreira (escritora com vários livros editados e até publicamente distinguidos)? Ponto de partida das ilustrações de Raquel Costa, possui notória qualidade de conteúdo e de expressão, e certa tonalidade lírica, mas sem lamechice, não obstante o drama exposto (a orfandade, tanto a real, traumática, como a afectiva), narrado e descrito com contida intensidade. Uma escrita com elementos de originalidade, mesmo ao nível gráfico e de estruturação textual, que me agradam sobremaneira, com a prosa a parecer composta por versos longos, lembrando a poesia de Walt Whitman. Criada por quem conhece bem a Natureza, as plantas, os animais (que neste livro se revestem de grande importância, a começar por um simpático corvo), a história, além do mais, valoriza a infância mas também o crescimento, a maturação, a capacidade de superar adversidades – ao invés dalgumas glosas requentadas do complexo de Peter Pan (e de Roald Dahl) que por aí circulam, com reaccionário êxito, inexplicável (ou talvez não). 

Diga-se, finalmente, que Noa é uma novela. Uma novela em que a palavra, o texto literário se revestem de efectivo peso e valor, assumindo todo o seu poder. Por exemplo de interpelar, de comover, de fazer sorrir. E isso para o leitor que sou é fundamental, pois vai em contracorrente. Eis um livro que, ao contrário doutros, nunca poderia (sobre)viver sem a parte verbal, que é um texto literário de qualidade. Que viva pois a palavra. E as boas histórias. Contadas com originalidade, como a do livro em apreço. 

Esta história de Noa e de Paz (uma bem moldada personagem infantil) mereceu, com justiça, o Prémio Bissaya Barreto de Literatura para a Infância 2022 e foi distinguida pela inclusão na lista selectiva White Ravens, da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique.

 

José António Gomes 

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Ana Luísa



Ana Luísa Amaral (1956-2022) não foi apenas uma poeta de alta, bela e reconhecida voz, em Portugal e no estrangeiro (a sua poesia está hoje reunida em O Olhar Diagonal das Coisas, 2022), e uma autora de livros para a infância e a juventude que devem ser lidos e apreciados: Gaspar, o Dedo Diferente e Outras Histórias, 1998; A História da Aranha Leopoldina, 2000; Auto de Mofina Mendes de Gil Vicente (adaptação), 2008; uma adaptação de A Relíquia de Eça de Queiroz, 2008; Como Tu, 2012; Lengalenga de Lena, a Hiena, 2019. Publicou ainda o romance Ara, 2013, e foi uma excepcional estudiosa de poesia (conhecedora de poetas das mais diferentes latitudes) e uma divulgadora igualmente excepcional, generosa e persistente. Deste ponto de vista, sinto uma dívida enorme em relação a’«O som que os versos fazem ao abrir», na Antena 2, e ao seu notável trabalho de investigação académica (designadamente no campo dos Estudos Feministas), importando lembrar outras intervenções radiofónicas suas, a par das muitas conferências, cursos e oficinas – era uma incansável e entusiástica trabalhadora das letras. Também como ensaísta e como tradutora (da sua paixão, Emily Dickinson, mas também de Shakespeare, de John Updike, de Louise Glück, de Margaret Atwood e de muitos outros poetas, para não falar das suas traduções de John Locke, de Virgina Woolf e de Wesker) fica o país a dever-lhe imenso. 

Mas Ana Luísa foi, além disso, uma mulher muito corajosa e livre, que ousou pôr publicamente o dedo em muitas feridas – e que, silenciosamente ou não, acabou às vezes sendo penalizada por isso, como sucede com todas as pessoas de coragem. Foi (e ainda bem) uma poeta com intervenção cidadã e política – o que hoje é cada vez mais raro. Para alguns, quase imperdoável. E isto sem nunca perder a doçura e afabilidade do olhar, da voz, da maneira de estar. 

Tive sempre com Ana Luísa um relacionamento muito cordial. Lembro-me de termos sido colegas na faculdade, em Germânicas – embora, nessa fase, apenas nos conhecêssemos de vista. Tínhamos uma amiga comum, Ana Gabriela Macedo, que foi quem primeiro me falou da sua poesia. Há muito, muito tempo. Foi membro do júri das minhas provas de doutoramento, em 2003, na Universidade Nova de Lisboa, e membro do júri das minhas provas para professor coordenador de Literatura Portuguesa, na Escola Superior de Educação do Porto, em 2006. Impecável em qualquer destas duas situações. Colega de irrepreensível trato, correcção e amabilidade. E de enorme qualidade, no plano académico. Devo acrescentar que foi boa e justa professora de ambos os meus filhos, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.


Escrevi sobre livros seus para a infância e, na minha faceta João Pedro Mésseder, reencontrámo-nos em 2005-2006, com outros escritores portugueses e galegos, no projeto Estafeta do Conto da Xunta de Galicia e da Direção Regional de Cultura do Norte (promovido por Xavier Senín Fernández e Helena Gil Coutinho), o qual deu origem à publicação de duas novelas juvenis bilingues. A de Ana Luísa: Passos de música, caminhos de água/Pasos de musica, camiños de auga (em co-autoria com Fina Casalderrey, Vergílio Alberto Vieira e Xabier Docampo – um grande escritor e amigo também já desaparecido). Tempos bons e luminosos, perdidos (ou ganhos) entre o norte de Portugal e a Galiza. 


Hoje, os leitores de poesia e o país como um todo perderam um ser humano e uma artista de excepção. Saibamos honrar a sua memória e fazer bom uso do muito que nos lega. 

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MÚSICAS, de Ana Luísa Amaral

 

Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.

E deito-me a seu lado,

a cabeça em partilha de almofada.

 

Os sons dos outros lá fora em sinfonia

são violinos agudos bem tocados.

Eu é que me desfaço dos sons deles

e me trabalho noutros sons.

 

Bartók em relação ao resto.

 

A minha filha adormecida.

Subitamente sonho-a não em desencontro como eu

das coisas e dos sons, orgulhoso

e dorido Bartók.

 

Mas nunca como eles,

bem tocada

por violinos certos



6-8-2022

 

José António Gomes

IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais do inED da ESE do Porto