quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Diário de Sofia & C.ª (aos 15 anos), de Luísa Ducla Soares

Regressemos – nunca é de mais – a Luísa Ducla Soares e, desta feita, a um exemplo de literatura de potencial destinatário adolescente.

Na escrita portuguesa para crianças e jovens publicada nas últimas décadas, a obra desta Autora, marcada por um estilo singular e, quando atentamos nos planos temático e ideológico, caracterizada por notável unidade-na-diversidade, dispõe de um lugar próprio.

O seu trabalho reflecte leituras atentas quer da escrita para a infância de raiz anglo-saxónica (recorde-se que a ela se deve a tradução de dois livros de Roald Dahl) quer da literatura da tradição oral portuguesa. Evidencia-se, neste caso, uma particular atracção pelo chamado folclore rimado infantil, frequentemente recriado, com arte, na poesia mais ou menos (mas nem sempre) drôle de Poemas da Mentira...e da Verdade (1983), de A Gata Tareca e Outros Poemas Levados da Breca (1990), de A Nau Mentireta (1991) e de vários outros títulos em verso que viriam a ser editados posteriormente.

A pedagogia travestida de literatura poucas vezes seduziu Luísa Ducla Soares. Por isso, as suas parábolas, sempre inteligentes e bem-humoradas, mantêm actualidade. Releia-se O Soldado João (1973) ou É Preciso Crescer (1992). Os seus contos chegam a surpreender pelo modo como recusam a moral fácil ou se deixam resvalar para os ambíguos terrenos do nonsense e da escatologia, num visível exercício de liberdade criativa e sentido de humor (alguns exemplos: O Rapaz do Nariz Comprido, de 1981, e O Senhor Pouca Sorte e A Menina Boa, de 1985, para continuarmos a recordar alguns dos seus títulos mais antigos). É, além do mais, a mais relevante escritora portuguesa no domínio da chamada ficção científica de potencial destinatário infantil ou juvenil.

Constituindo uma das primeiras incursões da Autora no domínio da narrativa para adolescentes, O Diário de Sofia e C.ª (aos 15 anos) – editado em 1994 e hoje já em 12.ª edição – ia, na altura da sua publicação, ao encontro do interesse então crescente pelos diários de figuras juvenis, reais ou ficcionadas (a lembrança da série «Adrian Mole», de Sue Townsend, torna-se inevitável). A estrutura da narrativa confessional, sob a forma diarística, permite a Luísa Ducla Soares construir um típico discurso adolescente, abordando assim temas que lhe são caros. Entre eles, a contestação da lógica e dos contraditórios valores adultos – neste caso, assumidos por uma geração de «dinossauros» (p. 61) da pequena burguesia urbana que viveu a oposição ao fascismo e o 25 de Abril. Sofia tem quinze anos em 1993 («Aos quinze anos as pessoas não têm direito a nada. São uns paus-mandados. (Claro que podem não obedecer.)», p. 9). A sua crítica tem como alvos de eleição os pais e uma escola repressiva e divorciada da realidade, onde se passa «6 horas por dia a ouvir pessoas com a mesma profissão: professores» (p. 42). Lugar por excelência das solidariedades e cumplicidades da protagonista, o círculo de amigos coloca-a, por outro lado, no limiar de uma actividade sexual que, a um tempo, a atrai e inquieta.

Em dado momento do seu diário, Sofia alude, não por acaso, à desastrada anedota de alentejanos do (então) ministro Carlos Borrego. Os seus dias são marcados por uma reacção à frieza que caracteriza o seu tempo: é a «era do preservativo» (p. 66), das doenças sexualmente transmissíveis, da droga que vitima companheiros seus, da boa-consciência ecologista a soar a falso, do racismo emergente – encapotado ou não –, da violência urbana, do desemprego e da falta de perspectivas. Mas o tempo de Sofia define-se também por uma dinâmica positiva: é o momento da descolagem da infância, o tempo de todos os sonhos e da construção de uma identidade própria, relatado numa escrita que não dispensa o humor.

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Descontadas algumas manchas de discurso (in)formativo um tanto forçadas – e atípicas na obra da Autora –, Diário de Sofia e C.ª surge como uma recriação ficcional sensível (por vezes desapiedada) de um certo quotidiano juvenil da Lisboa dos anos 90 (era o tempo dos governos cavaquistas (1985-1995), importa mais do que nunca recordá-lo).

Registe-se, a terminar, que a obra é recomendada pelo Plano Nacional de Leitura para os 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade (leitura autónoma).

1Utilizamos, neste comentário, a 1.ª edição da obra, sempre reeditada, até hoje, pela Civilização, a editora que vem publicando a maioria dos livros da Autora. As ilustrações são de Pedro Nogueira.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto