domingo, 23 de maio de 2010

António Modesto: uma introdução (a propósito da exposição de originais patente na Biblioteca Pública Municipal de Vila Nova de Gaia)

Quantas vezes tem sido citada a célebre interrogação de Alice que precede a sua entrada no País das Maravilhas: «Para que é que serve um livro sem desenhos nem conversas?» (Carroll, 1970: 25, trad. minha)? Sempre que nela tropeçamos, a pergunta vem recordar que, já no século XIX, a questão era pertinente: pode um livro para crianças impor-se sem ilustração? 1

Antes ainda de aprenderem a ler, é pela imagem que as crianças têm o primeiro convívio com o livro. Em relação às que já lêem, um rápido folhear para observar as ilustrações antecipa-se à entrega ao texto; em simultâneo, e a partir desse elemento paratextual, vai surgindo a primeira formulação de hipóteses sobre o conteúdo da narrativa, se é o caso. Convirá, por outro lado, lembrar que a escrita nunca esteve dissociada da imagem, da qual descende. E, como se pode ler em La Littérature d’Enfance et de Jeunesse: État des lieux, de Denise Escarpit e M. Vagné-Lebas (1988), a imagem é uma expressão mais imediata que o escrito, bebendo directamente nas fontes da psique e do imaginário.

Hoje, talvez mais do que no passado, existe uma consciência apurada de que as imagens de qualidade possuem o dom de despertar e desenvolver a sensibilidade estética dos mais novos. Em contacto com elas, a criança aprende a olhar, a familiarizar-se com as artes visuais e começa a educar o gosto. Por isso são tão importantes, também, as visitas guiadas a museus, desde as primeiras idades.

No panorama da ilustração portuguesa, António Modesto (n. Ponte do Abade, Aguiar da Beira, 1957) é, desde 1981, um dos artistas que mais têm contribuído para que tais objectivos se atinjam. É que as suas ilustrações não se limitam a «fazer sonhar o texto» – para utilizar uma velha expressão de Georges Jean; elas proporcionam à criança uma experiência criativa. Recorrendo a palavras de Denise Escarpit e M. Vagné-Lebas (1988: 162, trad. minha), poderia sintetizar tal experiência desta forma: «Se a imagem é um prolongamento do universo do artista, da sua personalidade, ela é também o prolongamento daquele que a olha, da sua própria cultura e sensibilidade. Não é só a criança que olha a obra; a própria obra olha-a, questiona-a. Entre elas, estabelece-se um verdadeiro diálogo.»

Fazendo o leitor imergir nesse universo muito próprio e inconfundível que é o seu, os objectos visuais de António Modesto que propiciam tal diálogo surgem em quase todos os livros que ilustrou, de O Ouriço-cacheiro Espreitou Três Vezes, de Maria Alberta Menéres (ASA, 1981, Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças – Ilustração, 1982) a Poesia de Fernando Pessoa para Todos (Porto Editora, 2008), passando pelo belíssimo Miguel, O Expositor (Afrontamento, 1983), de Ilse Losa, por O Retrato «em Escadinha» (Livros Horizonte, 1985), de Maria Alberta Menéres, O Homem que Não Queria Sonhar e Outras Histórias (ASA, 1988), de Álvaro Magalhães, O Homem que Tinha Uma Árvore na Cabeça (Porto Editora, 1991), de José Jorge Letria, O Macaco do Rabo Cortado (Civilização, 1992), de António Torrado, O Coração e o Livro (Ambar, 1993; 2.ª ed. com alteração das ilustrações, em 2003), Fábulas (Edinter, 1995), de La Fontaine, Bom Natal, Pai Natal! (Edinter, 1996), de José Jorge Letria, O Mistério da Floresta Mágica (Campo das Letras, 1999), de Arsénio Mota, Histórias Tradicionais Portuguesas (Ambar, 2000), organização de Ana Lourenço, Contos da Cidade das Pontes (Ambar, 2001), coordenação de José António Gomes, ou O Circo das Palavras Voadoras (ASA, 2001) e O Rapaz da Bicicleta Azul (Campo das Letras, 2004), ambos de Álvaro Magalhães, entre outros.

Muito fiel ao lápis de cor e à aguarela, mas com incursões também na coloração digital, tendo-se especializado na ilustração do conto, António Modesto – abra-se aqui um parêntesis necessário – viu o seu trabalho ser distinguido e premiado por diversas vezes. Destaquem-se o já referido Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças – Ilustração (ex-aequo), em 1982; a Menção do V Premi Internacional Catalònia de Il’lustració, Barcelona 1992; a circunstância de ter sido autor da mascote “Gil” da Expo’98 (com o escultor Artur Moreira) e vencedor do respectivo concurso (Lisboa 1993); as menções no The White Ravens, Internationale Jügend Bibliothek, de Munique, em 1994 e 1997; o Diploma de Honra do Prémio Iberoamericano de Ilustração, Sevilha 1994; a nomeação de um dos seus livros para a Lista de Honra do IBBY (International Board on Books for Young People), em 1998; e a nomeação como candidato português ao Prémio Hans Christian Andersen, 2002, pela APPLIJ (Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil).

Ao longo de cerca de 30 anos de ilustração, o trabalho de António Modesto foi evidenciando uma qualidade crescente, sempre marcada por um gosto seguro, por um extremo cuidado na composição e no uso da cor, e sustentada nessa arte do desenho que não poucos ilustradores actuais parecem ter esquecido (será mesmo esquecimento ou inépcia?). Pelo caminho têm ficado outros livros ilustrados que não mencionei, atractivas imagens para manuais escolares (que assim cumprem também a função de formar o gosto dos seus utilizadores) e «ilustrações» soltas – isto é, executadas sem haver um texto de base –, as quais, só por si, são histórias em potência, projectos a retomar, fragmentos de um cativante e muito pessoal universo de fantasia.

Voltando às palavras de Escarpit e Vagné-Lebas, nas ilustrações de Modesto, o leitor não é olhado apenas pela personagem, mas também pelo cenário, por toda uma atmosfera que pulsa e atrai na sua intensa vibração cromática, no seu poder de construir um mundo próprio em que apetece mergulhar. Esse cenário, no entanto, denuncia quase sempre a presença do homem. A beleza dos espaços junta-se, assim, aos sinais do humano para proporcionar à criança visões de um mundo possível, e recriar, para o adulto, o tempo dos devaneios juvenis e do sonho. Quando expostas, isoladas dos contextos para os quais foram criadas, isto é, desligadas da sua função utilitária – iluminar textos –, as ilustrações de António Modesto readquirem autonomia e convidam-nos a revisitá-las com um novo olhar, mais demorado e disponível. Encontramos, assim, condições ideais para fruir a sua intensa poeticidade lírica – sobretudo nos livros que ilustrou até à década de 90 do século passado – e também irrecusáveis pretextos para inventar novas histórias.

Meridional, a ilustração de António Modesto, em especial nas obras dos anos 80 e 90, é muito marcada pela luz mediterrânica, os tons claros, a presença do mar e de nuvens brancas num céu radioso, muitas vezes azul, e pela recorrente comparência do elemento vegetal. As influências, visíveis nos seus primeiros livros ilustrados (sobretudo em O Ouriço-cacheiro Espreitou Três Vezes) são ainda as de João Machado, de Dario Alves e da arte pop, com recurso por vezes à colagem ou à ilusão da colagem. A dimensão discretamente eufórica cede lugar, em livros posteriores, a um universo aparentemente mais disfórico, em tons mais escuros, bem como ao interesse pelos espaços interiores e pelo pormenor (de vestuário, de decoração), a que se juntam um humor subtil e a crescente inclinação para a caricatura de figuras humanas – que foi sempre um dos pontos fortes desta ilustração. A paixão pela pintura também parece acentuar-se, merecendo, por isso, especial referência. Detectamo-la quer em Histórias Tradicionais Portuguesas quer em Poesia de Fernando Pessoa para Todos, onde abundam jogos de hetero e auto-citação e se observa a tendência para dialogar quer com a grande tradição pictórica europeia – no primeiro caso, a pintura flamenga do Renascimento e Velásquez, por exemplo – quer com as vanguardas das primeiras décadas do século XX – Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros, Eduardo Viana, um certo Kandinsky, na segunda obra citada, em sintonia com a própria inscrição periodológica da poesia de Pessoa e com as estéticas que seduziram os olhares da geração de Orpheu.

Não obstante estas derivas, próprias de quem muito viu e leu, de quem já estudou muita pintura e conheceu numerosas e diversas experiências de ilustração – em suma, próprias de um ilustrador culto, atento à mudança, mas sem os tiques e o frenesim pseudo-vanguardistas e as pequenas ânsias de reconhecimento precoce que caracterizam ilustradores mais jovens –, não obstante tudo isto, creio que António Modesto nunca deixou, por um lado, de patentear o necessário respeito pelos textos literários que ilustra e a atenção que eles lhe merecem (diria que Modesto é sempre, e em primeira instância, um bom leitor). Por outro lado, sempre teve em conta o que é um livro para crianças – sem dúvida um dos seus objectos de eleição além do design – e de considerar como arte aplicada, em parte ao serviço de um texto, a ilustração do conto infantil ou do poema – não me refiro, portanto, aqui ao caso particular do álbum nem ao livro apenas com imagens. Ou seja, Modesto não é dos que embarcam nesse equívoco – esse estafado cliché com mais de trinta anos – segundo o qual o texto é apenas pretexto para não importa que desvarios ilustrativos. Respeita o destinatário preferencial da obra – a criança ou o jovem – e o seu trabalho evidencia sempre a preocupação com a legibilidade total do livro; por isso, a maioria das suas produções mais recentes deveria ser estudada na sua globalidade, isto é, no modo como, em cada uma delas, interagem e se complementam o texto literário, enquanto objecto semantico-pragmático, a ilustração e o design gráfico (incluindo, neste caso, o próprio texto enquanto imagem, os pequenos elementos ilustrativos que por vezes o circundam, as opções tipográficas, etc.).

António Modesto – recorde-se ainda – contribuiu para criar e impor o Prémio Nacional de Ilustração e deu a conhecer muitos jovens talentos, tendo apoiado com a sua palavra amiga, pedagógica e crítica – no sentido nobre do termo – o trabalho de muitos, vários deles seus antigos alunos. Em Portugal, foi pioneiro na criação, em licenciaturas, da disciplina de Ilustração e, enquanto professor associado, pioneiro também na orientação académica ou na arguição de mestrandos e doutorandos nas áreas do design e dos estudos de ilustração. Ousaria até afirmar que foi o primeiro e que não poucos estudantes de mestrado e de doutoramento recorreram ao seu apoio e saber.

Por tudo isto, pela direcção artística de colecções de prestígio (como a «Oficina dos sonhos», da Porto Editora) e, desde o ano de 1999, da primeira revista portuguesa de investigação e crítica de livros infantis, Malasartes – Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude, mas sobretudo pela superior qualidade do seu trabalho artístico, e pelo seu espírito independente, crítico mas sempre solidário, António Modesto é um mestre e bem merece, por isso, a homenagem que, em Maio de 2010, lhe é prestada pela Biblioteca Pública Municipal de Vila Nova de Gaia, a cidade onde há muito vive e cria.

Nota

1 Retomo aqui, refundido e acrescentado, o texto, de minha autoria, «A escrita das imagens», publicado em Modesto (1992: [7]).

Referências bibliográficas

CARROLL, Lewis (1970). The Annotated Alice. Alice’s Adventures in Wonderland and Through the Looking-Glass by Lewis Carroll Illustrated by John Tenniel. London: Penguin Books (with an Introduction and Notes by Martin Gardner) (1.ª ed. de Alice’s Adventures in Wonderland, 1865).

ESCARPIT, Denise; VAGNÉ-LEBAS, M. et al. (1988). La Littérature d’Enfance et de Jeunesse: État des lieux. Paris: Hachette - Jeunesse.

MODESTO, António (1992). Ilustrações para Crianças. Porto: [Tipografia Arcanjo Ribeiro, Scra. & Filhos, Lda.].

Vila Nova de Gaia, 17 de Maio de 2010

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Ilse Losa: breve perfil de uma autora a ler e reler

De origem alemã e ascendência judaica, Ilse Lieblich Losa nasceu em 1913, em Bauer, cidade próxima de Hanover. Tendo vivido a primeira infância com os avós paternos, frequentou o liceu em Osnabrük e Hildesheim e o Instituto Comercial em Hanover. Ao regressar à Alemanha, após um período em Londres tomando conta de crianças, vê-se obrigada a abandonar o país, dada a sua condição de judia. Escapa desse modo à perseguição nazi e, chegada a Portugal em 1934 (ano em que Hitler assume o poder na Alemanha), radica-se no Porto, casando com o arquitecto Arménio Losa e adquirindo a nacionalidade portuguesa.

Inicia, então, uma vasta obra escrita em português, a qual abrange romances inspirados, ou pelo menos enraizados, na sua experiência de vida – como O Mundo em que Vivi, 1949, Rio sem Ponte, 1952, Sob Céus Estranhos, 1962 (vívido retrato, também, do Porto dos anos trinta e quarenta) –, além de contos, crónicas, trabalhos de índole pedagógica (Nós e a Criança, 1954) e sobretudo literatura para crianças. Traduziu para português autores alemães, colaborou em diversos jornais e revistas e foi também uma divulgadora da literatura portuguesa na Alemanha. Em 1984 recebeu o Grande Prémio Gulbenkian, pelo conjunto da sua obra para crianças e, em 1998, o Grande Prémio de Crónica, da Associação Portuguesa de Escritores, pelo livro À Flor do Tempo (1997).

Revelando permanente abertura à diversidade temática, de géneros e de perspectivas que deve caracterizar a produção literária para crianças, foi a partir de finais dos anos 40 do século XX que Ilse Losa contribuiu, com os seus contos, recontos de histórias tradicionais e peças de teatro (por exemplo A Adivinha: peça em quatro quadros, 1ª ed.: 1967; 2ª ed. refundida: 1979), para uma nova literatura portuguesa para crianças, enveredando muitas vezes por uma via «realista», de acentuada envolvência social, mesmo quando a voz que narra é a de um animal antropomorfizado, como sucede em Faísca Conta a Sua História (1949). Mas imbuiu também a ficção de dilemas morais e espírito crítico, sonho e sentido de esperança, numa escrita coloquial e despojada, pontuada contudo por expressivas comparações e prosopopeias e marcada por um uso rigoroso do adjectivo. Uma escrita que se abriu também ao maravilhoso, ao humor (v. Bonifácio, 1980) e a uma fantasia de cunho onírico (Viagem com Wish, 1984), sem nunca se esquivar a temas «problemáticos» como a guerra, a perseguição política e a tortura. Veja-se, a este propósito, o conto «Apesar de tudo», de A Minha Melhor História, ou ainda Silka, que é difícil não ler como uma parábola focada na questão da intolerância étnica e como uma dolorida meditação sobre o destino do povo judeu. De referir ainda que Ilse Losa dissertou sobre o livro para crianças em várias das suas crónicas jornalísticas, tendo sido pioneira no ensino da literatura para a infância no nosso país.

Beatriz e o Plátano (1976) (livro editado numa histórica e notável colecção de livros infantis que ela própria dirigiu – «ASA Juvenil» –, e que revelou muitos jovens autores, nas décadas de 70 e 80) é uma das primeiras narrativas portuguesas para crianças animadas do espírito do 25 de Abril, evidenciando também pioneiras preocupações ambientais e cívicas. Várias vezes reeditados até à sua morte, em 2006, livros de Ilse Losa como Faísca Conta a Sua História, Um Fidalgo de Pernas Curtas (1961), Um Artista Chamado Duque (1965), O Quadro Roubado (1977) (que não anda longe da estrutura do relato policial), a par de O Senhor Pechincha (a 1ª ed. de que temos conhecimento data de 1973, encontrando-se este conto incluído na 2ª ed. da colectânea Um Fidalgo de Pernas Curtas e Outras Histórias, com ilustrações de Júlio Resende) e ainda A Minha Melhor História (1979) e Silka (1984) constituem marcos na história da literatura portuguesa para a infância e juventude. O último original para crianças que publicou em vida, O Rei Rique e outras Histórias (1989; reeditado em 2006 pela Porto Editora), traz-nos cinco contos breves e divertidos, impregnados de fantasia, a que não falta uma crítica fina e actual a certos comportamentos sociais e até a respeitáveis instituições. Coloquial e discretamente desafiadora, a escrita de Ilse Losa irmana-se nesta última obra com as aguarelas e colagens de um grande pintor, Júlio Resende, que mais do que uma vez ilustrou os textos de Ilse e se afirmaria pela sua criatividade na ilustração de livros para crianças.

Hoje, esta escritora merece sobretudo que bibliotecas e escolas (designadamente as do Porto, cidade que a «adoptou») dêem destaque aos livros que nos deixou, à sua vida e escrita, encontrando modos de continuar a dar a ler tais livros aos mais novos, mantendo assim esta escrita viva e actuante. É que Ilse Losa foi, a vários títulos, uma voz inovadora e, a partir de 1949, concorreu, de maneira decisiva, para a renovação da literatura portuguesa dirigida aos mais pequenos, tendo sido, como se disse, uma das primeiras professoras (senão a primeira) de literatura para a infância na velha Escola do Magistério Primário do Porto. Foi, além do mais, uma assumida antifascista e democrata, que, dos anos 50 em diante, conviveu com uma notável plêiade de homens e mulheres que dinamizaram – com todas as dificuldades impostas pelo fascismo – a vida cultural, literária e cívica do Porto durante o terceiro quartel do século XX. Entre essas mulheres e homens, contam-se Óscar Lopes (que muito apreciava Ilse e sobre ela escreveu), Luísa Dacosta, Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Luís Veiga Leitão, José Augusto Seabra, António Rebordão Navarro e tantos outros.

José António Gomes

NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto