quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Malasartes 21-22 já em distribuição

O número 21-22 de Malasartes é duplo e, com ele, procura-se preencher os espaços dos números de abril e de outubro. Razões relacionadas com apoios ao financiamento da revista, com a circunstância de ela não poder contar ainda com número suficiente de assinantes e com o facto de alguns não renovarem as assinaturas – não raro por esquecimento – fazem com que os dias de uma publicação deste género nem sempre sejam fáceis e obrigam a momentos de balanço e de relançamento com novas propostas. A estas dificuldades juntam-se, é claro, os efeitos da crise, sobre cujas consequências na vida de todos nós, e em particular na atividade cultural, não vale a pena aqui dissertar, por serem por de mais conhecidas.

Além das numerosas matérias de interesse que ocupam este número – diferente na forma e nos conteúdos – e que vão da homenagem que se quis prestar a Matilde Rosa Araújo (personalidade inesquecível da nossa literatura para a infância que, em 2010, nos deixou) à questão do álbum, passando pela narrativa juvenil e os seus (novos) temas, pela presença do haiku na poesia para crianças, pelas recriações do conto popular, pela chamada literatura de fronteira, pela atenção a obras clássicas e referenciais – a que importa sempre regressar –, Malasartes apresenta novidades que merecem realce, a par dos habituais artigos de reflexão sobre práticas de promoção da leitura (que, neste número, são dois). Entre os autores abordados neste número da revista, contam-se, além de Matilde Rosa Araújo, Adolfo Coelho e Eça de Queirós, José Gomes Ferreira, Ana Saldanha, Maria Teresa Maia González, Carla Maia de Almeida, Carlos Casares, Ana María Fernández, Antón Cortizas, Gloria Sánchez, Carlos Mosteiro, Martin Waddell, Helen Oxenbury, John Burningham e muitos outros, aos quais se junta a voz do editor espanhol Alejandro García Schnetzer, em entrevista.

Pela primeira vez, apresenta-se uma panorâmica de uma literatura escrita em idioma minoritário – a língua basca – que importa conhecer, divulgar, traduzir. Recorde-se aqui que um dos poucos exemplos de obras desta literatura traduzidas para português é o conhecido Memórias duma Vaca (Lisboa: Terramar, 1999), do grande escritor contemporâneo Bernardo Atxaga. É altura de regressar a este livro e de descobrir outros nomes e outras experiências no quadro de uma produção que se tem internacionalizado aos poucos e cuja vitalidade é notória, tanto na escrita como na ilustração.

Outro aspecto novo é a circunstância de, aos artigos e recensões escritos em galego e em português (variantes portuguesa e brasileira), se juntar agora alguma colaboração escrita em castelhano – o que significa maior internacionalização da revista e reforço da sua vertente multicultural e plurilinguística.

Registe-se, por último, o apoio a Malasartes por parte da CEU – Escuela Universitaria de Magisterio, prestigiada instituição de formação de professores de Vigo, sustentáculo relevante que honra a revista e o seu projecto. Um projeto que tem, justamente, nos professores do Ensino Básico, nos educadores de infância e nos estudantes destas áreas do saber um dos seus públicos privilegiados.

A terminar, um apelo: mais do que nunca, Malasartes necessita de divulgação, de cativar assinantes que ajudem a superar dificuldades de percurso, de conquistar leitores para a causa da crítica e do estudo da literatura para crianças e jovens. Na esperança de que em especial bibliotecas públicas, bibliotecas escolares e universitárias, editoras e outras instituições de mediação possam encontrar nesta revista um meio de informação útil e uma ferramenta de intervenção imprescindível, e de qualidade, para o trabalho de promoção da leitura que desenvolvem.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

17.os ENCONTROS LUSO-GALAICO-FRANCESES DO LIVRO INFANTIL E JUVENIL | O álbum na Literatura para a Infância

PROGRAMA

2 de dezembro, sexta-feira

Auditório da ESE

9:00 Receção dos participantes

9:30 Sessão de abertura

Presidente da ESE do Porto | Representantes das entidades organizadoras

10:00 Para uma poética do álbum

Ana Margarida Ramos (Universidade de Aveiro, LIJMI, ELOS, Portugal)

Intervalo

11:15 As reescritas no álbum infantil galego

Carmen Ferreira Boo (Universidade de Santiago, LIJMI, ELOS, Galiza)

11:45 Os álbuns de Carla Maia de Almeida

Carla Maia de Almeida (escritora, Portugal) | Sara Reis da Silva (Universidade do Minho, LIJMI, ELOS, Portugal)

Almoço

Auditório da ESE

14:30 A investigação em Literatura para a Infância e a Juventude

Blanca-Ana Roig Rechou (Universidade de Santiago, LIJMI, ELOS, Galiza) | Sara Reis da Silva (Universidade do Minho, LIJMI, ELOS, Portugal)

15:30 Apresentação da obra O Álbum na Literatura Infantil e Xuvenil (2000-2010)

Mar Fernández (Universidade de Santiago, LIJMI, ELOS, Galiza)

Intervalo

Encontros / ateliers

Auditório da ESE

16:15 Encontro com António Mota (escritor) e José Manuel Saraiva (ilustrador)

Maria Elisa Sousa | José António Gomes (ESE do Porto, NELA)

Sala 2

16:15 Os álbuns de Eric Many

Eric Many (ESE do Porto, França)

Sala 3

16:15 Os álbuns de Oli e Ramón Trigo

Carme Ferreira (Universidade de Santiago, LIJMI, ELOS, Galiza) | Geovana Gentili (Universidade de Santiago, LIJMI, ELOS, Brasil)

Sala 4

16:15 Um projeto de intervenção pedagógica em torno de livros relacionados com os direitos da infância

Alunas da licenciatura em Educação Básica | Ana Cristina Macedo (ESE do Porto, NELA, LIJMI, ELOS, Portugal)

Sala 6

16:15 Os álbuns de Manuela Bacelar

Carina Rodrigues (bolseira da FCT, LIJMI, ELOS, Portugal)

Momento musical

Salão de Música da ESE

18:00 Canções de Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade | Aquela nuvem e outras

Alunos da licenciatura em Educação Musical | direção: Rui Ferreira (ESE do Porto, Portugal)

3 de dezembro, sábado

Auditório da ESE

9:30 A crítica e a investigação em Literatura Infantil e Juvenil

Vanessa Regina Ferreira da Silva (Universidade de Santiago, LIJMI, ELOS, Brasil)

A revista Malasartes: Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude

José António Gomes (ESE do Porto, NELA, LIJMI, ELOS, Portugal)

A revista AILIJ

Isabel Mociño González (Universidade de Vigo, LIJMI, ELOS, Galiza)

10:15 A construção de álbuns ilustrados

Oli e Ramón Trigo (escritores e ilustradores, Galiza) | Marta Neira Rodríguez (Escuela Universitaria de Magisterio CEU-Universidade Vigo, LIJMI, ELOS, Galiza)

Intervalo

11:30 A obra de Manuela Bacelar

Manuela Bacelar (ilustradora, Portugal) | Sara Reis da Silva (Universidade do Minho, LIJMI, ELOS, Portugal)

12:30 Encerramento

Comissão organizadora

Presidência

José António Gomes (ESE do Porto); Blanca-Ana Roig-Rechou (Universidade de Santiago-Liter21)

Secretariado

Ana Cristina Macedo (ESE do Porto); Ana Isabel Pinto (ESE do Porto); Ana Catarina Lajas e Elisama Oliveira (Mestrado em Ens. dos 1.º e 2.º ciclos do EB, ESE do Porto); Carme Ferreira (Liter21, Universidade de Santiago); Mar Fernández (Liter21, Universidade de Santiago), Marta Neira Rodríguez (Liter21, Universidade de Santiago)

Comissão científica

Portugal

Ana Margarida Ramos (Universidade de Aveiro); Madalena Teixeira da Silva (Universidade dos Açores); Maria Elisa Sousa (ESE do Porto); Sara Reis da Silva (Universidade do Minho)

Galiza

María Jesús Agra (Universidade de Santiago); Isabel Mociño González (Universidade de Vigo); Lourdes Lorenzo (Universidade de Vigo); Veljka Ruzicka Kenfel (Universidade de Vigo)

França

Eric Many (ESE do Porto); Anne-Laure Stamminger (Institut Français Portugal)

Entidades organizadoras

LIJMI (Rede Temática de Investigação As Literaturas Infantis e Juvenis do Marco Ibérico e Iberoamericano) – Liter21

ELOS – Associação Galego-Portuguesa de Investigação em Literatura Infantil e Juvenil (secção de ANILIJ)

Revista Malasartes – Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude

Apoios

Porto Editora

Kalandraka

Escola Superior de Educação do Porto

domingo, 6 de novembro de 2011

O Príncipe que Guardava Ovelhas, de Luísa Dacosta e Jorge Pinheiro

Em 1971, pouco tempo após a sua publicação, o International Board on Books for Young People considerou esta obra um excepcional exemplo de literatura infantil de qualidade. O livro ressurgiu em 2002, em 4.ª edição, da ASA, mas com grafismo totalmente renovado, continuando a mostrar a sua capacidade de resistência ao tempo. A acção desenrola-se nesse espaço de fronteira entre cidade e campo que é a periferia. Aí, uma narradora de olhar sonhador e voz sensitiva, observa os discretos jogos de faz-de-conta de um rapazinho que guarda duas ovelhas num «retalho de campo» ainda «liberto de muros» (p.3). E, seguindo os seus gestos, imagina-o em busca de uma princesa escondida, por encanto, num dos animais. Pretexto para evocar, no leitor adulto, imagens da «quête de la belle», do mito de Tristão e Isolda (tão caro a esta Autora), e para recriar motivos e situações característicos do conto de fadas tradicional. Mas o texto e a elegância das ilustrações de Jorge Pinheiro traduzem também uma reivindicação do sonho como único horizonte possível de liberdade para o homem, além de retratarem a cidade como espaço desumanizado e de solidão.

O que importa contudo salientar é que esta espécie de fiozinho de história conquista a sua singularidade – como sempre acontece em Luísa Dacosta – no plano da escrita. A sua prosa torna-se inconfundível pelo que nela existe de poesia, ou seja, de trabalho sobre a linguagem (vejam-se as expressivas metáforas e o léxico refinado, pontuado de neologismos; escute-se a musicalidade da frase e apreciem-se o seu ritmo insinuante e os seus jogos de aliterações e assonâncias).

Candidata portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen em 2002, Luísa Dacosta é, antes de tudo, uma poeta da prosa, que nos legou livros tão relevantes como Teatrinho do Romão (1977), A Menina Coração de Pássaro (1978), História com Recadinho (1986), Sonhos na Palma da Mão (1990) e Lá Vai Uma… Lá Vão Duas… (1993), além de uma vasta e importante obra para adultos que se reparte pelo diário, pelo conto, pelo romance e pela poesia, com diversas incursões na escrita ensaística.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Diário de Sofia & C.ª (aos 15 anos), de Luísa Ducla Soares

Regressemos – nunca é de mais – a Luísa Ducla Soares e, desta feita, a um exemplo de literatura de potencial destinatário adolescente.

Na escrita portuguesa para crianças e jovens publicada nas últimas décadas, a obra desta Autora, marcada por um estilo singular e, quando atentamos nos planos temático e ideológico, caracterizada por notável unidade-na-diversidade, dispõe de um lugar próprio.

O seu trabalho reflecte leituras atentas quer da escrita para a infância de raiz anglo-saxónica (recorde-se que a ela se deve a tradução de dois livros de Roald Dahl) quer da literatura da tradição oral portuguesa. Evidencia-se, neste caso, uma particular atracção pelo chamado folclore rimado infantil, frequentemente recriado, com arte, na poesia mais ou menos (mas nem sempre) drôle de Poemas da Mentira...e da Verdade (1983), de A Gata Tareca e Outros Poemas Levados da Breca (1990), de A Nau Mentireta (1991) e de vários outros títulos em verso que viriam a ser editados posteriormente.

A pedagogia travestida de literatura poucas vezes seduziu Luísa Ducla Soares. Por isso, as suas parábolas, sempre inteligentes e bem-humoradas, mantêm actualidade. Releia-se O Soldado João (1973) ou É Preciso Crescer (1992). Os seus contos chegam a surpreender pelo modo como recusam a moral fácil ou se deixam resvalar para os ambíguos terrenos do nonsense e da escatologia, num visível exercício de liberdade criativa e sentido de humor (alguns exemplos: O Rapaz do Nariz Comprido, de 1981, e O Senhor Pouca Sorte e A Menina Boa, de 1985, para continuarmos a recordar alguns dos seus títulos mais antigos). É, além do mais, a mais relevante escritora portuguesa no domínio da chamada ficção científica de potencial destinatário infantil ou juvenil.

Constituindo uma das primeiras incursões da Autora no domínio da narrativa para adolescentes, O Diário de Sofia e C.ª (aos 15 anos) – editado em 1994 e hoje já em 12.ª edição – ia, na altura da sua publicação, ao encontro do interesse então crescente pelos diários de figuras juvenis, reais ou ficcionadas (a lembrança da série «Adrian Mole», de Sue Townsend, torna-se inevitável). A estrutura da narrativa confessional, sob a forma diarística, permite a Luísa Ducla Soares construir um típico discurso adolescente, abordando assim temas que lhe são caros. Entre eles, a contestação da lógica e dos contraditórios valores adultos – neste caso, assumidos por uma geração de «dinossauros» (p. 61) da pequena burguesia urbana que viveu a oposição ao fascismo e o 25 de Abril. Sofia tem quinze anos em 1993 («Aos quinze anos as pessoas não têm direito a nada. São uns paus-mandados. (Claro que podem não obedecer.)», p. 9). A sua crítica tem como alvos de eleição os pais e uma escola repressiva e divorciada da realidade, onde se passa «6 horas por dia a ouvir pessoas com a mesma profissão: professores» (p. 42). Lugar por excelência das solidariedades e cumplicidades da protagonista, o círculo de amigos coloca-a, por outro lado, no limiar de uma actividade sexual que, a um tempo, a atrai e inquieta.

Em dado momento do seu diário, Sofia alude, não por acaso, à desastrada anedota de alentejanos do (então) ministro Carlos Borrego. Os seus dias são marcados por uma reacção à frieza que caracteriza o seu tempo: é a «era do preservativo» (p. 66), das doenças sexualmente transmissíveis, da droga que vitima companheiros seus, da boa-consciência ecologista a soar a falso, do racismo emergente – encapotado ou não –, da violência urbana, do desemprego e da falta de perspectivas. Mas o tempo de Sofia define-se também por uma dinâmica positiva: é o momento da descolagem da infância, o tempo de todos os sonhos e da construção de uma identidade própria, relatado numa escrita que não dispensa o humor.

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Descontadas algumas manchas de discurso (in)formativo um tanto forçadas – e atípicas na obra da Autora –, Diário de Sofia e C.ª surge como uma recriação ficcional sensível (por vezes desapiedada) de um certo quotidiano juvenil da Lisboa dos anos 90 (era o tempo dos governos cavaquistas (1985-1995), importa mais do que nunca recordá-lo).

Registe-se, a terminar, que a obra é recomendada pelo Plano Nacional de Leitura para os 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade (leitura autónoma).

1Utilizamos, neste comentário, a 1.ª edição da obra, sempre reeditada, até hoje, pela Civilização, a editora que vem publicando a maioria dos livros da Autora. As ilustrações são de Pedro Nogueira.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

sábado, 30 de julho de 2011

O regresso do Soldado João, pela mão de Luísa Ducla Soares e de Assunção Melo

Quase poderíamos dizer: na esteira desse admirável conto de Aquilino Ribeiro que é «O filho da Felícia ou a inocência recompensada» – incluído no livro Arca de Noé, III Classe (1936) – no qual deparamos com uma hilariante caricatura da instituição militar nos anos trinta, uma das obras mais conhecidas de Luísa Ducla Soares é, sem dúvida, O Soldado João (1.ª ed., Estúdios Cor, 1973; ilustrações de Zé Manel), conto apresentado em formato de picture story book cujo protagonista, um jovem camponês dotado de saudável e ingénua espontaneidade, inverte e subverte os códigos da guerra: cumprimenta os inimigos, põe os exércitos em confronto a dançar ao som do seu cornetim, serve café a todos e apara os calos aos comandantes dos dois exércitos. De forma quase natural, a sua actuação contribui assim para retirar sentido ao conflito bélico.

Note-se que a obra data de 1973, ou seja, de uma época em que, na sociedade portuguesa, a oposição ao absurdo da Guerra Colonial atingira o seu pico, em especial no meio estudantil e nos próprios meios militares. E assinale-se ainda, a este propósito, que, já depois do 25 de Abril, mais precisamente em 1981, um outro autor, Leonel Neves, utiliza também a caricatura e o humor para, na linha de Luísa Ducla Soares, ridicularizar certos aspectos da instituição castrense e da sua rigidez hierárquica em O Soldadinho e a Pomba (Horizonte, 1981), cujo ingénuo protagonista traz inevitavelmente à memória o Soldado João.

Uma reedição desta obra de Luísa Ducla Soares surge em 2001, com a chancela da Civilização, mas com ilustrações que a desfiguram e claramente prejudicam. Agora, finalmente reencontramos o nosso soldado João com as ilustrações que merece, da autoria de Assunção Melo, de novo em edição da Civilização, datada de 2011.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Mário Castrim, à beira dos 91 anos do seu nascimento

Manuel Nunes da Fonseca, que assinava com o pseudónimo de Mário Castrim, nasceu em Ílhavo, em 31 de Julho de 1920, e morreu em Lisboa, a 15 de Outubro de 2002. A sua relevante intervenção escrita como crítico de televisão (durante anos a fio, foi o único digno desse nome, primeiro no saudoso Diário de Lisboa, mais tarde no Tal & Qual) sempre deixou injustamente na sombra uma escrita literária de inegável valor, que se repartiu, no caso da literatura para os mais novos, pela narrativa juvenil, por uma poesia de cunho experimental, e pelo conto. Era um caso – curioso, dirão alguns – de católico comunista (também os há), que, segundo cremos, prezava valores essenciais e generosos do cristianismo e, por isso, não se eximia de criticar um certo folclorismo alienante, pouco culto e pretensamente religioso de que padecem algumas instituições da Igreja. Exemplo disso é o pequeno romance juvenil de Castrim, A Caminho de Fátima (Caminho, 1992, col. «De par em par», ilustrações a preto e branco de José Miguel Ribeiro, 124 págs.), que nos propomos reler, como forma também de assinalar a próxima celebração dos noventa e um anos de nascimento do Autor.

Em primeiro lugar, a leitura de A Caminho de Fátima reconforta-nos. Afinal o humor confirma presença nos livros portugueses para jovens. Senão, vejamos.

Esta é uma história que pretende «dizer coisas sérias a brincar» – como se pode ler no peritexto da contracapa do livro. O enredo é simples: três idosas senhoras de Lisboa (D. Rosália, Céu e Fani) decidem empreender uma viagem a Fátima, num «dois cavalos» baptizado de Trolaró e surrealisticamente resistente ao peso de sete pessoas e um cão. Viajam na companhia de uma rapariguinha desempoeirada (Maria João, sobrinha de D. Céu), de um rapazito viciado na leitura (José Carlos), da dr.ª Ester e do seu apopléctico cônjuge, um capitão reformado da marinha mercante, de seu nome Florêncio. Neste reside a justificação «oficial» para a viagem: a mulher necessita de pagar uma promessa, devida pelo restabelecimento da saúde do marido, acometido, tempos antes, de um ameaço de acidente cardiovascular.

Durante um curto período de tempo, junta-se ao grupo um simpático ladrão, chamado Mãozinhas. A sua entrada no «dois cavalos» vem pôr, ainda mais, à prova a inacreditável capacidade de resistência do veículo, transformado em insólito mini-autocarro.

No entanto, o que, para uns, parece ser o pagamento de uma promessa e, para outros, um divertido passeio acaba por se tornar numa via-sacra para o contrariado capitão, mercê da inépcia automobilística da condutora e de uma irreprimível tendência, de quase todas as personagens, para converterem a viagem numa romagem gastronómica. Percalços vários e atrasos sucessivos acabam por fazer gorar o objectivo primeiro da jornada e os «peregrinos» não passam de Alcobaça. O regresso a Lisboa será, igualmente, atribulado, mas tudo acabará em bem, com a particularidade de o capitão, arrependido, se reconciliar com a irreverente, mas sensível, Maria João, cuja liberdade de linguagem e «desrespeitosa» familiaridade de trato o haviam apoquentado durante todo o percurso.

Uma obra com estas características teria forçosamente de investir no discurso directo e no rápido progredir da acção, a que vem aliar-se alguma variedade de processos narrativos, já que a carta (no final) e o monólogo interior (no 7.º capítulo) alternam com a narração convencional, sem, no entanto, complexificarem o relato em demasia.

Com o cómico de linguagem, de personagem e, sobretudo, de situações procura-se, logo desde o início, desmistificar o objectivo «oficial» da viagem, dessacralizando-o e, de certo modo, ridicularizando-o. A espiritualidade imperceptível dos «peregrinos», se existe, sucumbe sob o peso de diversos e contraditórios (pequenos) interesses de ordem material. Ao de cima vem, pois, o conjunto dos humanos pecadilhos de uma pequena burguesia urbana caricatural, sobre os quais deixamos cair, no final, o pano da nossa sorridente complacência.

Não se esgota nesta temática o texto de Mário Castrim. Contudo, é ela que fundamentalmente nos interessa, por suscitar a questão do humor nos livros juvenis. Nestes, torna-se, por vezes, difícil perceber onde começa e acaba o que diz respeito à criança ou ao jovem e o que só o adulto estaria em condições de compreender. Para além da idade, muita da capacidade de compreensão do humor depende da maturidade da criança, do seu ambiente familiar, da sua cultura e da sua competência linguística e comunicativa. Podemos dizer, com Jacqueline Held (1980: 184), que «se o livro “infantil” não é obra totalmente artificial e pré-fabricada, o autor escreve porque tem algo a dizer: vive a sua história e deixa-se levar. Acontecerá, então, fatalmente que aparecerá na história uma referência adulta, a que chamaremos “piscadela”. Seria forçosamente um mal e seria sempre preciso suprimir essa referência?» Estamos em crer que não, desde que não seja excessiva.

Tais excessos não se verificam no livro de Mário Castrim. Sorrimos em diversas passagens do texto e estamos certos que ele fará também sorrir muitos dos seus leitores mais jovens. Como é óbvio, não necessariamente pela mesma ordem de razões.

José Miguel Ribeiro, o principal representante do humor na ilustração portuguesa de livros infantis, assina imagens a preto e branco que amplificam o potencial humorístico do texto e que, como sempre, nos fazem sorrir.

Referência bibliográfica

HELD, Jacqueline (1980). O Imaginário no Poder: As crianças e a literatura fantástica. 2.ª ed., São Paulo: Summus Editorial.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto