sábado, 30 de outubro de 2010

Cinderela: o último gesto criador de João Paulo Seara Cardoso

Foi um dos mais inovadores protagonistas do teatro para a infância, em Portugal, nas décadas que se seguiram ao 25 de Abril de 1974. Fundador e director artístico do Teatro de Marionetas do Porto, cenógrafo, escritor e professor de interpretação teatral, João Paulo Seara Cardoso (1956-2010) imprimiu, desde sempre, ao seu trabalho uma dimensão investigativa. Sem fazer tábua rasa da tradição, ao contrário de outros, a sua paixão pelas marionetas radicava num estudo dedicado à pesquisa e reconstituição do Teatro Dom Roberto (fantoches populares portugueses). Costumava, assim, afirmar que herdara de Mestre António Dias esta secular tradição a que quis e soube dar continuidade. Neste contexto, a criação do Museu da Marioneta, na histórica e camiliana Rua das Flores, no Porto, era o seu mais recente projecto.

O talento e saber de João Paulo Seara Cardoso foram postos, também, ao serviço de diversas companhias e instituições ligadas ao teatro e à ópera, para as quais encenou espectáculos. William Shakespeare, António José da Silva, Lewis Carroll, A. A. Milne, Alfred Jarry, Almada Negreiros, Aquilino Ribeiro, Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Gregory Motton, Heiner Müller, Marguerite Duras, Al Berto e Luísa Costa Gomes foram alguns dos autores cujos textos levou à cena.

Com um impressivo currículo de encenação e montagem de espectáculos, em Portugal e no estrangeiro, a que se somam inesquecíveis trabalhos para televisão (A Árvore dos Patafúrdios, Os Amigos do Gaspar, Mópi e No Tempo dos Afonsinhos), João Paulo Seara Cardoso era também um relevante autor de livros para a infância, quase todos resultantes da sua actividade teatral (Óscar, Campo das Letras, 2003; Bichos do Bosque, Campo das Letras, 2008; O Senhor…, Porto Editora, 2008, entre outros títulos). Merece, por isso, releitura atenta o ensaio de Paula Garcia, «João Paulo Seara Cardoso: uma escrita “funcional” no teatro para a infância», em boa hora publicado no n.º 18 de Malasartes, de Maio de 2010 (pp. 36-43).

A derradeira produção teatral de Seara Cardoso, em cena no Porto à data da sua morte (29-10-2010), foi Cinderela, que se encontra na origem do último livro infantil que publicou (em Outubro de 2010), com a chancela da Porto Editora, na colecção Oficina dos Sonhos – texto potenciado pelas excelentes ilustrações de João Vaz de Carvalho.

Singular exemplo de recriação hipertextual e de releitura parodística de um clássico (que nos traz à memória Gianni Rodari ou Roald Dahl e as suas Revolting Rhymes), Cinderela constitui um admirável momento de humor, caricatura e ritmo dramáticos, quer pelo cómico de situações e de linguagem que tão bem explora (incorporando, por exemplo, um registo abrasileirado no discurso de várias personagens) quer pelo modo como entretece prosa e verso, narrativa e drama, quer ainda pela convocação de figuras oriundas de outros contos. E isto para não falar da cómica subversão dos traços psicológicos de algumas das personagens da história tradicional, ou das muitas alusões jocosas e críticas ao presente, a permitirem manter vivo, actual e actuante o velho enredo contado por Perrault (em finais do século XVII), por Jacob e Wilhelm Grimm (no século XX) e por outros ainda.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Literatura para a infância e ilustração – Leituras em Diálogo, de Ana Margarida Ramos

Segundo volume da colecção "Percursos da Literatura Infanto-Juvenil", editada pela Tropelias & Companhia, Literatura para a Infância e Ilustração – Leituras em diálogo constitui uma colectânea de ensaios sobre a produção literária de potencial recepção infantil, os seus desenvolvimentos e as suas tendências mais recentes no contexto editorial português. Na tentativa de sensibilizar o mediador adulto para a sua importância e as suas mais variadas potencialidades no desenvolvimento precoce de competências literácitas na criança, a autora confere especial atenção à componente ilustrativa (e paratextual) dos livros vocacionados para o público mais novo, em particular no álbum ilustrado, cuja evolução, em Portugal, nos últimos anos, tem exigido uma observação atenta e uma análise cada vez mais aprofundada das suas publicações.

Sem por isso coibir a iluminação de obras clássicas que concorreram para a conformação do actual panorama editorial, a cristalização de um período mais recente da produção, nos diversos percursos de leitura, diacrónica e/ou crítica, propostos, possibilita não só uma actualização da história da literatura infantil e juvenil portuguesa como a compreensão, através da sua avaliação analítico-descritiva, das opções temáticas, genológicas e discursivas, actualmente, mais recorrentes nas edições que às crianças se consagram.

Além disso, as reflexões aqui reunidas também mostram que a reedição e tradução de álbuns clássicos em língua portuguesa – muitos deles depois de largas décadas de espera –, assim como o prosseguimento de outros vultos consagrados do panorama literário nacional, influenciaram o surgimento de uma nova geração de autores, e, em especial, de ilustradores, fortemente responsáveis pelo notável impulso criativo da edição portuguesa contemporânea para a infância.

Apoiada num vasto e diversificado corpus, a autora procura descrever as potencialidades de um dos segmentos mais dinâmicos e inovadores da criação gráfica e literária universal, um fenómeno editorial notável pela sua amplitude e pelo seu sucesso, que tem despertado o interesse por parte de inúmeros investigadores, educadores/professores e demais mediadores no domínio da literatura para a infância. Partindo da reflexão sobre aspectos ligados à concepção destes volumes, nomeadamente ao nível da sua edição e criação gráfica, bem como à leitura das imagens que os integram, a autora sublinha a relevância da articulação icónico-verbal na potencialização de um processo interpretativo complexo e diferente e na celebração de pacto de leitura com a criança visivelmente desconhecido noutros tipos de livros ilustrados.

Em perfeita consonância com alguns dos mais actuais interesses investigativos no domínio em epígrafe, esta obra revela-se, pois, uma ferramenta de grande utilidade para todos os que se interessem pela literatura de potencial recepção infantil, constituindo uma referência imprescindível ao estudo do álbum narrativo ilustrado.

Ficha

Literatura para a Infância e Ilustração – Leituras em diálogo

Ana Margarida Ramos

Tropelias & companhia, 2010

Col. Percursos da Literatura Infanto-juvenil

ISBN: 978-989-96256-8-6

Carina Rodrigues (Bolseira FCT/Universidade de Aveiro)