sábado, 27 de fevereiro de 2010

Luísa Ducla Soares: notas em torno da sua obra e, em particular, de cinco dos seus livros

Luísa Ducla Soares acaba de publicar o seu 100.º livro. Só nas últimas semanas, ficámos a conhecer três: No Dia da Criança (APCC, Dezembro de 2009); Provérbios Ilustrados (Civilização, 2009), uma recolha de textos proverbiais portugueses, ilustrados por Luísa Beato, a que se segue, na parte final da obra, a explicação de cada um deles; e Comprar, Comprar, Comprar (Civilização, 2010), um novo texto da autora em torno da vertigem consumista e da sua superação.

Focar a escrita de Luísa Ducla Soares (nascida em Lisboa, em 20 de Julho de 1939) é dar visibilidade a uma das criadoras mais singulares da nossa literatura contemporânea para a infância e a juventude. Uma obra que se reparte pelos modos lírico, narrativo e dramático, e por géneros, subgéneros ou modalidades literárias tão diversos como, entre outros:

- o poema para crianças, nonsensical e cómico ou de carácter socialmente interventivo (leia-se Poemas da Mentira… e da Verdade (Horizonte, 1983));

- o álbum narrativo – veja-se, por exemplo, Os Ovos Misteriosos (Afrontamento, 1994), parceria feliz com a ilustradora Manuela Bacelar que vai conhecendo sucessivas reedições;

- o conto para a infância, com incursões até na ficção científica, como sucede em Três Histórias do Futuro (Afrontamento, 1982) e O Rapaz e o Robô (Terramar, 1995);

- a narrativa juvenil sob a forma de diário ficcionado, numa linha de «realismo» social e psicológico patente em Diário de Sofia & Cª (aos 15 anos) (Civilização, 1994);

- o texto dramático – veja-se As Viagens de Gulliver de Jonathan Swift (Civilização, 2001), adaptação livre do conhecido clássico do século XVIII);

- a adaptação de textos clássicos da literatura portuguesa;

- a tradução – leia-se a conseguida versão de Histórias em Verso para Meninos Perversos, de Roald Dahl, editada, em 1989, pela Teorema.

Vale a pena começar por recordar aqui alguns elementos biográficos 1: o nascimento em Lisboa, uma educação quase bilingue em que a língua e a cultura inglesas marcaram forte presença (o que sem dúvida influenciou a poesia da autora dirigida à infância, em especial as composições em que são visíveis laços intertextuais com as nursery rhymes e as children’s rhymes), a licenciatura em Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa – onde integrou o grupo de poetas conhecido como Poesia 61 – e o início da actividade profissional como tradutora, consultora literária e jornalista, tendo sido directora da revista de divulgação cultural Vida (1971-2). Luísa Ducla Soares colaborou em diversos jornais e revistas e estreou-se com um livro de poemas, Contrato, em 1970. Foi adjunta do Gabinete do Ministro da Educação (1976-78) e trabalhou, desde 1979, na Biblioteca Nacional. Aí organizou numerosas exposições e foi responsável pela Área de Informação Bibliográfica. Sócia fundadora do Instituto de Apoio à Criança, escreveu guiões televisivos e concebeu sites da Internet dirigidos a crianças, nomeadamente para a Presidência da República durante o mandato de Jorge Sampaio. Elaborou para o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, para o Ministério da Educação e para a Fundação Gulbenkian pequenas publicações de cunho critico-divulgativo e selectivo sobre literatura nacional e internacional para crianças, área em que o seu saber é reconhecido. De referir ainda que várias composições poéticas da autora foram musicadas, tendo sido editado, em 1999, um CD com textos de sua autoria musicados por Suzana Ralha. O CD intitulou-se 25, pelo facto de ser composto por 25 canções e de a sua edição se ter enquadrado na comemoração dos 25 anos da Revolução de 25 de Abril. Luísa Ducla Soares desenvolve acções de incentivo à leitura em escolas e bibliotecas e participa com frequência em colóquios e encontros, apresentando conferências e comunicações sobre tópicos relacionados com os jovens e a leitura e sobre literatura para a infância e a juventude. Recusou, por motivos políticos, o Grande Prémio de Literatura Infantil que o SNI (o Secretariado Nacional de Informação da ditadura salazarista-marcelista) pretendeu atribuir-lhe pelo livro História da Papoila (1972), em 1973 (aliás, já tinha conhecido a prisão política, tal como o seu marido, Mário Sottomayor Cardia); mas recebeu o Prémio Calouste Gulbenkian para o melhor livro do biénio 1984-5 por 6 Histórias de Encantar, tendo sido distinguida com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra em 1996. Em 2004, a Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil (Secção Portuguesa do IBBY) propôs Luísa Ducla Soares como candidata portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen. A propósito de 6 Histórias de Encantar (Areal, 1985) – reeditado, em 2003, com o título Seis Histórias às Avessas (Civilização) – registe-se o gosto da autora pela recriação pós-moderna e algo subversiva de certos códigos do conto de fadas tradicional, visível também em A Menina do Capuchinho Vermelho no Século XXI (Civilização, 2007).

Nos últimos anos, a reedição dos contos mais antigos de Luísa Ducla Soares, com novos formatos e ilustrações, revela uma escrita vocacionada para o álbum destinado aos 4-7 anos, a que apenas faltaram, nas primeiras edições, as condições de publicação ideais. É o caso de O Urso e a Formiga (Civilização, 2002; ilustrações de Paul Driver). Em linguagem ritmada e pontuada por rimas internas, introduz-se, na história de um urso-formigueiro devorador, uma velha figura da literatura oral tradicional – a formiga Rabiga –, revelando-se que a perspicácia e a coragem dos pequenos podem vencer os grandes. As imagens sublinham o humor do texto.

Outra das obras mais conhecidas de Luísa Ducla Soares é O Soldado João (Estúdios Cor, 1973; ilustrações de Zé Manel), conto apresentado em formato de picture story book cujo protagonista, um jovem camponês dotado de saudável e ingénua espontaneidade, inverte e subverte os códigos da guerra: cumprimenta os inimigos, põe os exércitos em confronto a dançar ao som do seu cornetim, serve café a todos e apara os calos aos comandantes dos dois exércitos. De forma quase natural, a sua actuação contribui assim para retirar sentido ao conflito bélico. Note-se que a obra data de 1973, ou seja, de uma época em que, na sociedade portuguesa, a oposição ao absurdo da Guerra Colonial atingira o seu pico, em especial no meio estudantil e nos próprios meios militares. Assinale-se, a este propósito, que, já depois do 25 de Abril, mais precisamente em 1981, um outro autor, Leonel Neves, utiliza também a caricatura e o humor para, na linha de Luísa Ducla Soares, ridicularizar certos aspectos da instituição castrense e da sua rigidez hierárquica em O Soldadinho e a Pomba (Horizonte, 1981), cujo ingénuo protagonista traz inevitavelmente à memória o Soldado João. Uma reedição desta obra de Luísa Ducla Soares surge em 2001, com a chancela da Civilização, mas com ilustrações que a desfiguram e claramente prejudicam.

Em Mãe, Querida Mãe (Terramar, 2000; ilustrações de Pedro Leitão), a autora dá-nos um livrinho que, pelo seu pequeno formato, qualquer criança em idade pré-escolar pode transportar consigo no bolso. Propõe-se um curto texto bem-humorado e de estrutura anafórica, sobre os diferentes tipos psicológicos de mãe: a mãe-formiga («que só pensa no trabalho»), a mãe-papagaio («que repete sempre a mesma cassete»), a mãe-galinha («que guarda os filhos debaixo da asa»), etc.. Servem de suporte a estas dezoito definições metafóricas, animalistas e caricaturais, os desenhos coloridos e humorísticos de Pedro Leitão. A experiência repetir-se-á em 2003 com o título Pai, Querido Pai, também com chancela da Terramar.

O ilustrador destas duas obras concebe ainda as imagens que acompanham O Maluquinho da Bola (Horizonte, 2005). Um texto muito breve, aliado a uma ilustração convencional mas bem-humorada, conta a vida de um rapaz que nasceu, por acidente, num jogo de futebol e cuja existência gira (é a palavra exacta) em torno da forma esférica: desde o jogo infantil com bolas de papel feitas com folhas de caderno até ao casamento «com uma rapariga redonda», passando pelo trabalho numa fábrica de berlindes. Um livro para os muito pequenos, a que não falta graça e uma ironia plena de actualidade.

Em A Cavalo no Tempo (Civilização, 2003), e com belas ilustrações de Teresa Lima (ilustração), a autora (que fora nomeada, no ano de publicação deste livro, candidata portuguesa ao Prémio Andersen 2004) oferece-nos um dos melhores títulos de versos para a infância publicados em 2003, conjunto de composições em que se opta, quase sempre, por esquemas métricos, estróficos e rimáticos tradicionalizantes, com destaque para o recurso ao verso de redondilha maior. Sempre irreverentes e críticas em relação ao mundo de hoje, as composições de Luísa Ducla Soares atraem pelo ritmo cantante (algumas, aliás, haviam sido musicadas por Suzana Ralha e gravadas pelo Bando dos Gambozinos, como já foi dito). Mas também cativam pelo humor e pelo modo como acompanham os solavancos do tempo. Uma forma desconcertante – ou talvez não – de abordar o desconcerto do mundo: guerra e discriminações, solidão e consumismo, e as habituais contradições do pensamento dominante. Veja-se um exemplo (o poema «Minas») do tipo de composições que é possível ler em A Cavalo no Tempo e aprecie-se o modo simples mas eficaz como a autora – em época de conflitos bélicos – tira partido do jogo linguístico (neste caso, em torno do signo «minas» e dos seus diferentes significados):

Nos meus sonhos de menina

havia sempre uma mina.

.

Uma mina, um tesouro,

com pedrinhas todas de ouro.

.

Uma mina de brilhantes,

turquesas e diamantes.

.

Uma mina, uma nascente

de água fresca transparente.

.

Hoje ainda sou menina,

mas já pisei uma mina.

.

Tenho o sonho em estilhaços:

fiquei sem pernas, sem braços.

Outro exemplo dos versos para crianças de Luísa Ducla Soares, desta feita extraído da colectânea de poesia Conto Estrelas em Ti (Campo das Letras), que eu mesmo organizei em 2000, é o poema «Dia de Natal»:

Hoje é dia de Natal

mas o Menino Jesus

nem sequer tem uma cama,

dorme na palha onde o pus.

.

Recebi cinco brinquedos

mais um casaco comprido.

Pobre Menino Jesus,

faz anos e está despido.

.

Comi bacalhau e bolos,

peru, pinhões e pudim.

Só ele não comeu nada

do que me deram a mim.

.

Os reis de longe lhe trazem

tesouros, incenso e mirra.

Se me dessem tais presentes,

Eu cá fazia uma birra.

.

Às escondidas de todos

vou pegar-lhe pela mão

e sentá-lo no meu colo

para ver televisão.

Um humor que chega a explorar dimensões escatológicas ou que se volta para o nonsense tirando por vezes partido de jogos linguísticos paronomásticos e outros; um apurado sentido crítico cujo alvo é a sociedade contemporânea, escalpelizando-se com pertinência e graça (que chega contudo a ser amarga) o materialismo exacerbado, o consumismo, o preconceito racial e as relações dos adultos com as crianças; a preocupação com os conflitos bélicos e com a convivência nas novas sociedades multiculturais (leia-se o já citado Os Ovos Misteriosos e também Há sempre uma Estrela no Natal (Civilização, 2006)) – eis, em suma, alguns dos traços presentes nestes livros e que tornam peculiar a escrita de Luísa Ducla Soares para crianças e jovens.

Nota

1 Consulte-se: http://www.app.pt/nte/luisads/bio.htm; http://www.boasleituras.com/luisa/bibliografia.asp e http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADsa_Ducla_Soares (20-3-2008), onde é possível colher a maioria dos elementos biográficos aqui reunidos.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)