terça-feira, 26 de março de 2013

Para o Dia Internacional do Livro Infantil, 2 de Abril


Arthur Rackham (1867-1939) | Na ilustração "Young Beichan" ou 
"Young Beckie", Child  ballad n.º 53: Burd Isobel woken by Belly 
Blin with the warning that  Young Beckie is about to marry | 1919


O Dia Internacional do Livro Infantil – 2 de Abril – é indissociável da memória do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, que nasceu precisamente nesta data, corria o ano de 1805. Contos como «O patinho feio», «O fato novo do rei», «O valente soldadinho de chumbo», «A Ondina», «A rapariguinha dos fósforos» e muitos outros são lidos actualmente por crianças em todo o mundo, contribuindo para o diálogo entre culturas e para uma comunhão humana em torno da leitura (tão necessária em tempos de crise). E embora a data nem sempre seja propícia a grandes manifestações em torno do livro – já que coincide, frequentemente, com períodos de férias escolares – constitui, pelo menos, um momento privilegiado de reflexão sobre dois temas: por um lado, o valor e a importância da leitura e, por outro, a relevante função social, lúdico-estética e educativa dos livros infantis e juvenis de qualidade – insubstituíveis se queremos ter como horizonte uma sociedade de leitores. Trata-se ainda de uma data em que as bibliotecas estão em festa e a cumprir um dos seus papéis cívicos e culturais mais nobres. O que suscita uma nota sobre a função nuclear de mediação entre o livro e o leitor que cabe a pais, educadores de infância, professores, bibliotecários e técnicos de animação, e uma outra sobre a urgência do alargamento a todos os concelhos do país da inestimável Rede Nacional de Bibliotecas Públicas e, a todas as escolas, da Rede de Bibliotecas Escolares.
Em 1999, o escritor e ilustrador espanhol Miguel Angel Fernández-Pacheco propunha-nos uma mensagem que pode funcionar como indicador do espírito que deveria prevalecer neste dia. Lembremos esse texto:
«Já sei que és muito velho, que tens milhares de anos. Sei que o teu coração anda por toda a parte, milhões de vezes repartido por centenas de milhar de bibliotecas. Sei que te proibiram muitas vezes e te queimaram outras tantas. Porém quero-te como se tivesses nascido ontem, como se foras só meu, e como se a tua salvação dependesse de mim.
E como havia de te não querer se já vivi tanto à tua luz e à tua sombra, se já sonhei tantas vezes contigo entre as mãos, se, graças a ti, escapei à dor e pude enfrentar a injustiça, se acabaste por te converter na minha memória inteira, e, melhor ainda, na memória inteira da minha espécie?
Por isso sinto que te amei desde menino e te amarei sempre. Por isso posso gritar que és a melhor ferramenta da minha liberdade e da liberdade de todos.
Reconheço que devo parecer exaltado, admito até que as pessoas sorriam ao ouvir estas coisas, mas nós, os namorados, somos assim. Na verdade não me envergonho, sinto-me, sim, orgulhoso dessas noites em claro passadas a teu lado... Dessa vibração emocionada, cada vez que te descubro... Da pena de te perder e da alegria de te reencontrar, e até da ansiedade que me consome se não te tenho à mão.
Confesso que me cega a paixão se digo que, de tudo o que os homens fizeram, és tu o melhor e o maior, meu livro, meu amor...» (Mensagem do Dia Internacional do Livro Infantil, IBBY, 1999)
Esta espécie de declaração de amor ao livro (que não poderá ser lida como mais um discurso piedoso como tantos outros) deve ser encarada também como homenagem aos criadores e ao seu talento. Falemos então desse dom de criar mundos possíveis, de nos fazer viajar no tempo e no espaço e de vibrar com as mais inacreditáveis aventuras, de proporcionar emoções contraditórias e de consolidar em nós a noção de alteridade. Falemos ainda da curiosidade em relação a outras culturas e da abertura de horizontes que o livro proporciona – desígnios fundamentais nos tempos que correm, em que a intolerância étnica e cultural e a guerra (a real e a económico-financeira e social) estão na ordem do dia. Tudo, enfim, graças a esse «sabor dos sabores» que é a palavra (a expressão é de Luísa Dacosta).
No passado, alguns autores produziram livros capazes de sobreviver ao desgaste do tempo – e não apenas por terem sido eventualmente escritos para um público infantil. As narrativas, textos dramáticos, poemas ou álbuns de Perrault, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, Jacob e Wilhelm Grimm, Collodi, Lewis Carroll, Edward Lear, Mark Twain, Stevenson, Jules Verne, Salgari, Beatrix Potter, James M. Barrie, L. Frank Baum, Dr Seuss, Edith Nesbit, Kenneth Grahame, A. A. Milne, Erich Kästner, Michael Ende, Geoffrey Trease, Roald Dahl, Scott O’Dell, Virginia Hamilton, Margaret Mahy, Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Gloria Fuertes, María Elena Walsh, Jean de Brunhoff, Shel Silverstein, Leo Lionni, Max Velthuijs, Maurice Sendak, Mario Ramos, mas também de Ana de Castro Osório, Afonso Lopes Vieira, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, António Sérgio, Maria Lamas, Pessoa (leiam-se os seus versos para crianças), Carlos Amaro, José Gomes Ferreira, Henrique Galvão, Olavo d’Eça Leal, Fernanda de Castro, Adolfo Simões Müller, Ricardo Alberty, Redol, Ilse Losa, Sidónio Muralha, Alice Gomes, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Papiniano Carlos, Matilde Rosa Araújo, Leonel Neves, Carlos Pinhão, Mário Castrim, Couto Viana, Manuel António Pina e tantos outros deixaram na sombra muitas obras de contemporâneos seus, essencialmente dirigidas a adultos, quantas vezes rodeadas de uma aura efémera, mas hoje votadas ao esquecimento.
As leituras para a infância e a juventude dos nossos dias não podem, contudo, limitar-se a estes clássicos. Nem podem ignorar a leitura da ilustração. Igualmente merecedores de tributo, artistas da imagem como Raul Lino, Raquel Roque Gameiro e sua irmã Mamia Roque Gameiro, Sarah Afonso, Augusto Gomes, José de Lemos, Tòssan, Júlio Resende, Maria Keil, Leonor Praça, António Lucena e muitos outros (quantos esqueci?) ilustraram narrativas, poesia ou textos dramáticos de qualidade literária. Tantos e tantos nomes (incluindo os que aqui não recordei, a par de todos os vivos e activos) que, no dia 2 de Abril, merecem ser lembrados, mas cujas obras são em geral esquecidas nos tradicionais compêndios de história literária.
A criatividade e a imaginação destes escritores e destes ilustradores permitirão talvez que, no futuro, muitos dos leitores que ajudaram a formar possam vir a dizer algo de semelhante ao que Marcel Proust escreveu um dia: «Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido.»


José António Gomes 
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)