domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Grande Voo do Pardal, de Lídia Jorge e Inês de Oliveira: uma incursão na filosofia para crianças e na educação para os valores

Em 2007, publicou Lídia Jorge o que é apresentado como o seu trabalho de estreia no domínio da chamada literatura para a infância: O Grande Voo do Pardal (Dom Quixote, 2007). A esta obra seguiu-se, mais recentemente, Romance do Grande Gatão (Dom Quixote, 2010).

Assinale-se, contudo, que, já em 1994, e com ilustrações de Alain Corbel, a Contexto & Imagem havia editado autonomamente, com o formato de livro para crianças, um dos contos “para adultos” da autora, obra a que foi dado o título O Conto do Nadador.

De modo singelo e numa linguagem despretensiosa (mas de recorte literário), como convém quando se pretende abordar determinados temas e enfatizar certos valores pensando em leitores muito jovens – referimo-nos à compaixão pelos outros e aos sentidos da vida e da liberdade como condições indispensáveis para alcançar um pouco de felicidade terrena –, O Grande Voo do Pardal conta-nos a história de um homem, Henrique Gaspar, que “possuía a casa mais linda das redondezas”. E o narrador prossegue, recorrendo a comparações escolhidas a dedo, tendo em atenção o(s) sentido(s) que a coerência semântica do texto, como veremos, reclama: “Ninguém sabia onde ele ia buscar aquilo – árvores com flores cheirosas, relva lisa como carpete, uma piscina que parecia um espelho” (p. 7). Todos os dias, porém, era assaltado por bandos de pardais que lhe estragavam o telhado e interrompiam o seu sossego: “Detestava esses pássaros, que dizia terem as penas enxovalhadas, cinzento encardido, além de serem, de entre todos os pássaros, os mais irrequietos, os mais glutões, os mais atrevidos. (...) Detestava-os.” (p. 11). E todos os dias inventava novas formas de afastar as aves da sua propriedade, planeando sempre novas estratégias, todas elas invariavelmente falhadas. Um dia, “estava ele precisamente a podar uns arbustos, quando reparou num pequeno molho de penas que se movia. Era um molhinho cinzento pousado no chão, que parecia respirar, ali mesmo junto a uma aba de roseira” (p. 8). Tratava-se de um jovem pardal que, por lhe faltar a pata direita, não podia voar. Henrique Gaspar tivera a oportunidade de se vingar dos pardais, mas, perante a pequena ave indefesa, não foi capaz de executar os seus intentos, antes “tomou o animal entre os dedos, pô-lo na palma de uma das mãos, acalmou-lhe o coração com a outra, juntou a cabeça do pardal aos lábios para o aquecer e foi para casa fazer-lhe o curativo” (p.14).

Não será descabido afirmar que, nesse momento, Henrique Gaspar foi colocado perante o amor natural, descrito por Rousseau, no seu “Discours sur l’Origine et les Fondements de l’Inégalité parmi les Hommes”, como uma das duas paixões que engrandecem o homem: a compaixão, a qual não permite que fiquemos indiferentes em relação aos outros.

Henrique Gaspar, que até então “detestava esses pássaros” (p. 11) e se encontrava dominado por aquilo a que Erich Fromm chamou o “mundo do ter”, das imagens e dos simulacros, representado pelas “árvores com flores cheirosas, relva lisa como carpete, uma piscina que parecia um espelho”, pelos “lindos sofás brancos comprados na Divani” (p. 17), reconstrói a sua existência no “mundo do ser”, tornando-se, pela descoberta, pela partilha, pelo diálogo com o “outro” (simbolizado no conto pelo pequeno pardal) mais humano e mais próximo de si mesmo. Neste processo de descoberta do outro, que é sempre um encontro consigo próprio, Henrique Gaspar revela também outra qualidade: o altruísmo, naquele sentido que lhe atribui Augusto Comte, em 1851, quando o refere como essencial para estabelecer e edificar relações de amizade, e entendido universalmente como a alienação do bem estar pessoal em favor do bem estar alheio. Daí que Henrique Gaspar se dedique à cura do jovem pardal, renunciando à preservação dos móveis que compõem a sua sala, para, na altura certa, tentar, não obstante a relação simbiótica já estabelecida entre os dois, homem e ave, a reintegração daquele ser no seu habitat natural. Mas, para isso, “era preciso que um bando viesse e levasse consigo o pardal domesticado” (p. 21). Se, antes, Henrique Gaspar fizera esforços para afastar os pardais, agora engendrava todas as estratégias para atrair os pássaros e, dessa forma, restituir à liberdade a jovem ave. Finalmente, após aturado esforço, “o pardal da perna só saltou para o chão, saltou para a borda da vasilha com água e depois elevou-se acima das roseiras, e subiu no ar, entre os seus. Era um entre muitos” (p.23), e o “novelinho cinzento” iniciou assim o seu primeiro grande voo. Surpreendentemente, porém, assistimos, um dia depois, ao seu regresso: “Os dois são livres mas querem estar juntos” (p. 28). É agora a vez de o jovem pássaro revelar ao homem uma outra virtude, que apenas decorre de uma “liberdade positiva”, segundo Isaiah Berlin: a lealdade – que já Platão considerara ser, de entre todos, o valor mais elevado e filosófico.

Deste longo processo de aprendizagem do homem com a natureza, fica a certeza de que só somos realmente livres quando somos nós a fazer as nossas escolhas, a decidir as nossas liberdades. Com a definição de liberdade, fechamos a página vinte e oito com a pergunta, cuja resposta nos é dada ao longo desta conseguida narrativa: “Há lá maior liberdade no Mundo?”.

Ecos de Rousseau associados à fusão idílica do homem com a natureza e a uma certa crença na sua bondade inata são, em suma, algumas das mensagens mais ou menos subliminares que se desenham neste que é o primeiro conto intencionalmente destinado à infância por Lídia Jorge. Um conto bem ilustrado por uma ainda jovem, mas não estreante, ilustradora – Inês de Oliveira, que (afastando-se, cada vez mais, da sua referência tutelar: a austríaca Lisbeth Zwerger) envereda neste livro por uma técnica mista, aguarela e acrílico sobre papel, à qual já recorrera noutras obras. Utilizada timidamente em A Bela e o Monstro (Porto Editora, 2005), de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, esta técnica consolida-se no livro Lendas e Contos Indianos (Ambar, 2006), de José Jorge Letria. O cuidado na composição, a qualidade do desenho e a atenção ao texto são, nesta ilustradora, uma imagem de marca.

Ana Cristina Vasconcelos

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

As narrativas de Ana Luísa Amaral para a infância

Ana Luísa Amaral, poeta e ensaísta de méritos reconhecidos, tem entremeado na sua criação poética contos para a infância, em prosa ou em verso. Os primeiros surgem-nos em Gaspar, o dedo diferente e outras histórias (1.ª ed., Campo das Letras, 1998, ilustrações de Elsa Navarro; 2.ª ed., Civilização, 2011, ilustrações de Abigail Ascenso).

O livro propõe três histórias exemplares, de um fantástico impregnado de animismo infantil (os protagonistas são a pequena Rita e os seus dedos, os animais de uma floresta, uma estrela e um computador), inegavelmente bem escritas e contadas. Reveladoras de sensibilidade humana e poética, destaca-se do conjunto "Gaspar, o dedo diferente", talvez o conto mais conseguido no modo como propõe uma delicada parábola sobre o abandono do egocentrismo, a superação de pequenos medos e a aprendizagem da relação do eu com o outro.

Um outro texto da mesma Autora alude, em filigrana, à criação poética e ao clássico debate sobre a inutilidade ou utilidade da actividade artística e da própria arte. Trata-se de A história da aranha Leopoldina (Porto: Campo das Letras, 2000, ilustrações de Elsa Navarro; 2.ª ed., Civilização, 2010, ilustrações de Raquel Pinheiro), objecto já de uma adaptação teatral pela Companhia de Teatro Assédio. É uma bela composição em verso, a qual, em linguagem figural, ritmada e rimada (que tudo tem a ver com a poesia), oferece um breve relato centrado numa aranha diferente. Uma aranha que luta para afirmar essa diferença, enquanto tecedeira de meias, que não de teias, que é o que fazem as suas semelhantes. Meias inúteis, no universo das aranhas, mas úteis, enquanto objectos de inegável e estranha beleza. Parábola de ressonância autobiográfica – ousaria dizer – sobre as questões de género, sobre a criação artística e sobre a luta pessoal pelo reconhecimento desse trabalho como aparentemente inútil – mas na verdade útil e até essencial a toda a comunidade –, composição em que se descobrem ainda ecos de A cigarra e a formiga, de La Fontaine, e desse clássico do álbum infantil que é Frederico (Lisboa: Kalandraka, 2004), de Leo Lionni, A história da aranha Leopoldina é bem um produto das mãos tecedeiras de uma poeta. E mostra, por outro lado, como, conjugando tradição e modernidade, e recuperando / reinventando certas formas e modalidades textuais que pareciam cristalizadas (neste caso, a vertente épica da poesia, a uma escala infantil), a actual criação poética para crianças não cessa de percorrer, em inteira liberdade criativa, diversos caminhos, não desistindo, assim, de cativar futuros leitores para a poesia dos dias por vir. Uma liberdade, direi ainda, em consonância com a natureza da própria infância, essa «charada de limites ilimitados» (…) «de confins incertos, ampliados pela pequena estatura», como um dia a descreveu a ensaísta e poeta italiana Cristina Campo (2005: 28).

De referir que a 2.ª edição de A história da aranha Leopoldina é acompanhada de um CD com as canções originais e o texto integral da peça contado por Rosa Quiroga.

Ref. bibliográfica

CAMPO, Cristina (2005). Os Imperdoáveis. Lisboa: Assírio & Alvim.

José António Gomes

(NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)