Ana Luísa Amaral, poeta e ensaísta de méritos reconhecidos, tem entremeado na sua criação poética contos para a infância, em prosa ou em verso. Os primeiros surgem-nos em Gaspar, o dedo diferente e outras histórias (1.ª ed., Campo das Letras, 1998, ilustrações de Elsa Navarro; 2.ª ed., Civilização, 2011, ilustrações de Abigail Ascenso).
O livro propõe três histórias exemplares, de um fantástico impregnado de animismo infantil (os protagonistas são a pequena Rita e os seus dedos, os animais de uma floresta, uma estrela e um computador), inegavelmente bem escritas e contadas. Reveladoras de sensibilidade humana e poética, destaca-se do conjunto "Gaspar, o dedo diferente", talvez o conto mais conseguido no modo como propõe uma delicada parábola sobre o abandono do egocentrismo, a superação de pequenos medos e a aprendizagem da relação do eu com o outro.
Um outro texto da mesma Autora alude, em filigrana, à criação poética e ao clássico debate sobre a inutilidade ou utilidade da actividade artística e da própria arte. Trata-se de A história da aranha Leopoldina (Porto: Campo das Letras, 2000, ilustrações de Elsa Navarro; 2.ª ed., Civilização, 2010, ilustrações de Raquel Pinheiro), objecto já de uma adaptação teatral pela Companhia de Teatro Assédio. É uma bela composição em verso, a qual, em linguagem figural, ritmada e rimada (que tudo tem a ver com a poesia), oferece um breve relato centrado numa aranha diferente. Uma aranha que luta para afirmar essa diferença, enquanto tecedeira de meias, que não de teias, que é o que fazem as suas semelhantes. Meias inúteis, no universo das aranhas, mas úteis, enquanto objectos de inegável e estranha beleza. Parábola de ressonância autobiográfica – ousaria dizer – sobre as questões de género, sobre a criação artística e sobre a luta pessoal pelo reconhecimento desse trabalho como aparentemente inútil – mas na verdade útil e até essencial a toda a comunidade –, composição em que se descobrem ainda ecos de A cigarra e a formiga, de La Fontaine, e desse clássico do álbum infantil que é Frederico (Lisboa: Kalandraka, 2004), de Leo Lionni, A história da aranha Leopoldina é bem um produto das mãos tecedeiras de uma poeta. E mostra, por outro lado, como, conjugando tradição e modernidade, e recuperando / reinventando certas formas e modalidades textuais que pareciam cristalizadas (neste caso, a vertente épica da poesia, a uma escala infantil), a actual criação poética para crianças não cessa de percorrer, em inteira liberdade criativa, diversos caminhos, não desistindo, assim, de cativar futuros leitores para a poesia dos dias por vir. Uma liberdade, direi ainda, em consonância com a natureza da própria infância, essa «charada de limites ilimitados» (…) «de confins incertos, ampliados pela pequena estatura», como um dia a descreveu a ensaísta e poeta italiana Cristina Campo (2005: 28).
De referir que a 2.ª edição de A história da aranha Leopoldina é acompanhada de um CD com as canções originais e o texto integral da peça contado por Rosa Quiroga.
Ref. bibliográfica
CAMPO, Cristina (2005). Os Imperdoáveis. Lisboa: Assírio & Alvim.
José António Gomes
(NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)