segunda-feira, 9 de junho de 2014

A literatura para crianças e jovens no pós-25 de Abril: algumas notas

A partir do 25 de Abril de 1974, com a instauração do regime democrático, operam-se alterações significativas na sociedade portuguesa, tanto nos planos político e socioeconómico, como no domínio da cultura. O sistema educativo sofre os efeitos positivos dessa mudança, criando-se condições favoráveis para uma maior democratização cultural e para o acesso de todos à escola, com implicações no aumento do público leitor e na procura do livro.
O fim da Censura, a livre expressão e circulação de ideias e a abertura de Portugal ao exterior favorecem o aparecimento de iniciativas de reflexão sobre o mundo da criança, a par de alguma renovação na literatura que lhe é destinada – resultante, até certo ponto, da possibilidade de publicar em clima de liberdade. Recorde-se ainda que 1974 foi proclamado Ano Internacional do Livro Infantil, que em 1979 se celebrou o Ano Internacional da Criança e que, entre finais da década de setenta e o início dos anos noventa do século XX, se assistiu a um boom da literatura para crianças e jovens em Portugal – graças também a editoras como Horizonte, Caminho, ASA, Plátano, Verbo, Porto Editora, Ambar –, seguindo-se na primeira década do século XXI o boom do álbum narrativo e da nova ilustração portuguesa, para o qual contribuíram editoras como Planeta Tangerina, Orfeu Mini/Orfeu Negro, Gatafunho, Kalandraka, OQO, Caminho, Bruaá, Bags of  Books, etc.
Mencionemos outros factores que favoreceram o desenvolvimento desta área da criação: a introdução do estudo da literatura para a infância nas Escolas do Magistério Primário e, mais tarde, nas Escolas Superiores de Educação dos Institutos Politécnicos e em algumas Universidades; o desenvolvimento da investigação nesta nova área dos estudos literários; o número crescente de colóquios, simpósios e acções de formação sobre o livro infantil e juvenil; as exposições de ilustração e os encontros sobre promoção da leitura e sobre a arte de contar; o arranque da Rede de Bibliotecas Escolares, em 1996, e do Plano Nacional de Leitura, em 2006. Os prémios de texto e de ilustração, atribuídos por entidades estatais, autarquias, editoras e outras entidades vieram contribuir para a dinamização da criação. Encontraram-se, assim, condições para um fôlego renovado, num ambiente de liberdade e num contexto em que cresceu o número de realizações de vária ordem, relacionadas com o universo da criança e com os seus direitos.
Escrever para a infância e a juventude em clima de liberdade implicou, naturalmente, a aproximação gradual a temas que se encontravam arredados da produção literária ou eram tratados de modo menos directo. A emigração (Carlos Correia, Maria Isabel de Mendonça Soares, Jorge Colombo), a diferenciação social e a pobreza (releiam-se os contos de Ilse Losa e Matilde Rosa Araújo), as problemáticas da defesa do ambiente (Ilse Losa, Sidónio Muralha, Papiniano Carlos, Maria Alberta Menéres, Natércia Rocha, José Jorge Letria), da discriminação racial e da multiculturalidade (Luísa Ducla Soares, Ana Saldanha), os conflitos familiares psicológica e socialmente contextualizados, bem como os chamados temas fracturantes (Alice Vieira, Ana Saldanha, Maria Teresa Maia González) começam a ser abordados com insistência nos livros infantis e juvenis. Registe-se, no entanto, que o tratamento de alguns destes temas é, simultaneamente, reflexo da própria evolução da sociedade que a literatura não deixa de acompanhar. O pós-25 de Abril permitiu, por outro lado, o desenvolvimento das obras de escritores de notável qualidade como Ilse Losa, Sidónio Muralha, Mário Castrim, Matilde Rosa Araújo, Manuel António Pina, António Torrado, Maria Alberta Menéres, Luísa Dacosta, Luísa Ducla Soares e a afirmação de outros que abriram os campos temático e dos géneros (Letria, Álvaro Magalhães, António Mota, Ana Saldanha, José Fanha, Vergílio Alberto Vieira, Violeta Figueiredo, José Vaz). Lembre-se, por exemplo, o desenvolvimento da poesia, mas também da narrativa para pré-adolescentes e adolescentes (com Alice Vieira, António Mota, Álvaro Magalhães, Catarina da Fonseca, Ana Teresa Pereira, Alexandre Honrado, Saldanha e outros), além da proliferação das séries, maioritariamente de histórias de mistério e indagação (Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, João Aguiar e tantos outros), tendência que desponta cerca de seis anos após o 25 de Abril. Dos escritores mais jovens destaquem-se Francisco Duarte Mangas, Nuno Higino, Rita Taborda Duarte, David Machado, Afonso Cruz, Carla Maia de Almeida, João Manuel Ribeiro, Eugénio Roda e Isabel Minhós Martins – corresponsável pelo sucesso dos álbuns da Planeta Tangerina, juntamente com os ilustradores Bernardo Carvalho e Madalena Matoso. Álbuns que tiveram criadoras pioneiras em Maria Keil e Manuela Bacelar, ilustradoras incontornáveis, no pós-25 de Abril. Para outra oportunidade ficará a questão da ilustração e dos seus protagonistas ao longo das últimas quatro décadas.

Inicialmente publicado em As Artes entre as Letras, 120, 16-4-2014, p. 6 (republicado agora com pequenas alterações).

José António Gomes

IELC | InEd – Escola Superior de Educação do Porto