sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Menino no Sapatinho: Mia Couto lança livro infanto-juvenil que critica Natal de consumo

Com a devida vénia ao Diário de Notícias, à Agência Lusa e a Susana Salvador, se dá a conhecer texto publicado a 5 de dezembro de 2013 sobre o último título de Mia Couto: um livro belíssimo, um livro para o tempo que atravessamos.

O escritor Mia Couto lançou (…) em Lisboa o livro infanto-juvenil Menino no Sapatinho, baseado num conto publicado pela primeira vez em 2001 na obra Na Berma de Nenhuma Estrada, agora reescrito com ilustrações de Danuta Wojciechowska.
O Menino no Sapatinho é um livro que "joga com um imaginário mitológico cristão e de uma tradição animista" e "critica a sociedade de consumo e particularmente um Natal de consumo", resumiu a professora de Literatura, Artes e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Inocência Mata, durante a apresentação da obra.
A estória do livro de Mia Couto, Prémio Camões-2013, com ilustrações de Danuta Wojciechowska, começa com o "era uma vez", o convencional arranque das fábulas, mas não se trata exatamente de um conto para crianças.
"É um jogo que nós vamos descobrindo, que é um livro para todas as idades", afirmou Inocência Mata sobre a estória, que fala de um "menino pequenito, tão 'minimozito' que todos os seus dedos eram mindinhos".
"Mia Couto trabalha com o secretismo discursivo", afirmou a apresentadora do livro, assegurando: "neste conto, nitidamente de Natal, vamos ler o Mia Couto de sempre".
O lançamento ocorreu no mesmo dia em que o escritor moçambicano foi homenageado em Portugal pelos 30 anos de vida literária, numa cerimónia em que também recebeu a Medalha de Mérito Grau Ouro e uma cadeira denominada "Princesa de África".
A distinção denominada "Mia Couto. 30 anos a escrever, 30 anos de maravilhamento" foi aprovada por todos os partidos com representação na Câmara Municipal de Lisboa, mas foi feita por personalidades da cultura residentes em Portugal, grupo de académicos, representantes da embaixada de Moçambique em Lisboa e responsáveis e colaboradores das editora LeYa e Caminho.


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Cinco obras para um Natal: cinco livros para ler ou ouvir ler e não apenas para ver

Ilustração de Florence Mason para o livro Holidays & Happy Days, de H. Hendry, 1901
O Cavaleiro da Dinamarca (1964), de Sophia de Mello Breyner Andresen, é já um clássico da nossa literatura para os mais jovens. Está lá tudo: a grande viagem probatória, um cavaleiro impoluto, a aventura, o perigo e o heroísmo; o amor e a arte; a tensão entre a visão teocêntrica e a visão antropocêntrica – e algumas das matrizes culturais da Europa exemplarmente narrativizadas. Pelo meio, a Dinamarca, Veneza, Florença, a Flandres, a Terra Santa…; Cimabué, Giotto, Dante e os descobridores portugueses. Actualizando, a cada momento, o mito do contador de histórias, um livro que é, também, uma vertiginosa viagem pelas narrativas da grande tradição cultural europeia e um comovente tributo ao espírito do Natal. O talento de contar aliado a uma sedutora prosa poética, de prosódia inconfundível. Não faltam, por aí, edições mais antigas (as da Figueirinhas, por exemplo) ou mais recentes (a da Porto Editora) deste livro exemplar: basta procurá-las.
Quanto a Histórias Tradicionais Portuguesas Contadas de Novo, de António Torrado, com ilustrações de Maria João Lopes (Civilização, 2002), direi que eram nove os contos populares portugueses que o autor tinha dispersos por outros tantos livros e que, aqui, surgem reunidos num só volume de grande formato e com novas ilustrações. Para perfazer as dez, Torrado acrescenta-lhes «Maria Rosa e os sete veados barbudos», variante do conhecido «Os sete corvos» dos Grimm. Lido o conjunto, pode-se dizer que poucos têm sido capazes de recontar estas velhas histórias com tanto humor e tão apurado sentido de preservação do oral ao nível da escrita. Outro clássico.
Por último, O Menino Nicolau, O Menino Nicolau e os seus Amigos e As Brincadeiras do Menino Nicolau (Teorema, col. Sésamo), de Sempé e Goscinny. A pedagogia, os rankings, as malditas «lideranças», eu sei lá o que mais de rastos. Professores, alunos, funcionários e encarregados de educação como personagens de uma anedota interminável. Uma poética da irrisão que não seria o que é sem o humor único dos desenhos de Sempé. Ideal para uma catarse em tempo de pausa lectiva (que se aproxima).


José António Gomes
IEL-C (Investigação em Estudos Literários e Culturais (antigo NELA) da Escola Superior de Educação do Porto



quinta-feira, 4 de julho de 2013

Presença e Significado de Manuel António Pina na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude, de Sara Reis da Silva: um estudo de fundo sobre um dos nomes maiores da literatura contemporânea escrita em português


Presença e Significado de Manuel António Pina na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude (Lisboa: Gulbenkian / FCT, 2013), de Sara Reis da Silva, é um estudo de leitura imprescindível a todos os investigadores, professores, estudantes do ensino superior e outros estudiosos da literatura para crianças e jovens em Portugal. Um estudo, acrescente-se, que os mediadores da leitura, em geral, deveriam conhecer.
Principia a obra com uma pertinente revisão crítica da historiografia da literatura infantil e juvenil portuguesa, à qual a autora acrescenta o seu próprio contributo, centrando-se na produção editada entre os anos de 2001 e 2006 e tecendo assim o necessário enquadramento histórico-literário da obra de Manuel António Pina – objeto principal de atenção no trabalho que nos é apresentado, em bela edição, acrescente-se, com ilustração, na capa, de Francisco Vaz da Silva.
Surge, em seguida, o estudo sobre Pina e a sua escrita para crianças e jovens. Um estudo rigoroso e fundamentado que tem como pressupostos metodológicos a dimensão da intertextualidade – pertinentíssima no caso em apreço –, permitindo à autora evidenciar o seu fundo conhecimento de dezenas de obras contemporâneas com as quais as de Pina fecundamente interagem, as reflexões teóricas sobre o humor e o nonsense na literatura – igualmente pertinente – e a questão da educação literária (aborda-se o contributo da escrita de Pina para a conformação de uma competência literária, aspeto de especial interesse para mediadores da leitura). Deve-se, no entanto, acrescentar que outros pressupostos teóricos, além dos já citados, presidem a esta leitura crítica multifacetada, fundamentando-a e orientando-a de modo seguro. Registe-se, assim, a frequente convocação da Teoria e da História da Literatura Infantil – com base em bibliografia credível e atualizada, provinda de investigadores de diferentes latitudes linguísticas e culturais –, os estudos teóricos sobre narratologia, sobre escrita dramática e teatro e sobre ilustração, a teoria dos géneros, a Poética, a Retórica, a Estilística.
Mas é sobretudo a capacidade analítica e hermenêutica de Sara Reis da Silva o que ressalta da leitura deste livro, visto a sua abordagem dos textos de Manuel António Pina ser sempre muito amadurecida e sedutora, quer ao nível das perspetivas originais de interpretação que nos abre quer por efeito da qualidade e da elegância da escrita da autora. Reconhece-se uma análise atentíssima e coerente dos textos que nunca secundariza a sua condição de objetos linguísticos e que nunca os encerra numa interpretação unívoca; e surpreende, além do mais, a análise arguta das ilustrações que os acompanham e iluminam, com frequentes pontes para a pintura (e esta leitura inter-semiótica da imagem e do texto literário é um dos aspetos mais originais da obra).
Trabalho de minúcia e de absoluta seriedade intelectual, de devoção crítica à obra de um escritor maior, a obra de Sara Reis da Silva não ignora as abundantes reflexões teóricas que o autor de O Inventão produziu sobre literatura infantil e juvenil em particular e a criação literária em geral, e sobre a relação da sua produção «para adultos», chamemos-lhe assim, com aquela outra que as crianças também podem ler – e isto para finalmente se concluir, a partir dos estudos de Sandra Lee Beckett, que nos encontramos ante um exemplo paradigmático de crossover literature, de escrita de receção transgeracional, que põe em causa as fronteiras entre livros para público adulto e livros para crianças e jovens.
Diremos, a terminar: imperdoável não ler. E acrescentaremos: é reconfortante saber que Manuel António Pina viveu o suficiente para conhecer o texto-base desta investigação de fundo, canonizadora e conduzida com sensibilidade e respeito pelos textos. Sem dúvida, uma das melhores homenagens que se pode prestar a uma escrita absolutamente singular e à memória de um ser humano inesquecível.

José António Gomes
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

terça-feira, 26 de março de 2013

Para o Dia Internacional do Livro Infantil, 2 de Abril


Arthur Rackham (1867-1939) | Na ilustração "Young Beichan" ou 
"Young Beckie", Child  ballad n.º 53: Burd Isobel woken by Belly 
Blin with the warning that  Young Beckie is about to marry | 1919


O Dia Internacional do Livro Infantil – 2 de Abril – é indissociável da memória do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, que nasceu precisamente nesta data, corria o ano de 1805. Contos como «O patinho feio», «O fato novo do rei», «O valente soldadinho de chumbo», «A Ondina», «A rapariguinha dos fósforos» e muitos outros são lidos actualmente por crianças em todo o mundo, contribuindo para o diálogo entre culturas e para uma comunhão humana em torno da leitura (tão necessária em tempos de crise). E embora a data nem sempre seja propícia a grandes manifestações em torno do livro – já que coincide, frequentemente, com períodos de férias escolares – constitui, pelo menos, um momento privilegiado de reflexão sobre dois temas: por um lado, o valor e a importância da leitura e, por outro, a relevante função social, lúdico-estética e educativa dos livros infantis e juvenis de qualidade – insubstituíveis se queremos ter como horizonte uma sociedade de leitores. Trata-se ainda de uma data em que as bibliotecas estão em festa e a cumprir um dos seus papéis cívicos e culturais mais nobres. O que suscita uma nota sobre a função nuclear de mediação entre o livro e o leitor que cabe a pais, educadores de infância, professores, bibliotecários e técnicos de animação, e uma outra sobre a urgência do alargamento a todos os concelhos do país da inestimável Rede Nacional de Bibliotecas Públicas e, a todas as escolas, da Rede de Bibliotecas Escolares.
Em 1999, o escritor e ilustrador espanhol Miguel Angel Fernández-Pacheco propunha-nos uma mensagem que pode funcionar como indicador do espírito que deveria prevalecer neste dia. Lembremos esse texto:
«Já sei que és muito velho, que tens milhares de anos. Sei que o teu coração anda por toda a parte, milhões de vezes repartido por centenas de milhar de bibliotecas. Sei que te proibiram muitas vezes e te queimaram outras tantas. Porém quero-te como se tivesses nascido ontem, como se foras só meu, e como se a tua salvação dependesse de mim.
E como havia de te não querer se já vivi tanto à tua luz e à tua sombra, se já sonhei tantas vezes contigo entre as mãos, se, graças a ti, escapei à dor e pude enfrentar a injustiça, se acabaste por te converter na minha memória inteira, e, melhor ainda, na memória inteira da minha espécie?
Por isso sinto que te amei desde menino e te amarei sempre. Por isso posso gritar que és a melhor ferramenta da minha liberdade e da liberdade de todos.
Reconheço que devo parecer exaltado, admito até que as pessoas sorriam ao ouvir estas coisas, mas nós, os namorados, somos assim. Na verdade não me envergonho, sinto-me, sim, orgulhoso dessas noites em claro passadas a teu lado... Dessa vibração emocionada, cada vez que te descubro... Da pena de te perder e da alegria de te reencontrar, e até da ansiedade que me consome se não te tenho à mão.
Confesso que me cega a paixão se digo que, de tudo o que os homens fizeram, és tu o melhor e o maior, meu livro, meu amor...» (Mensagem do Dia Internacional do Livro Infantil, IBBY, 1999)
Esta espécie de declaração de amor ao livro (que não poderá ser lida como mais um discurso piedoso como tantos outros) deve ser encarada também como homenagem aos criadores e ao seu talento. Falemos então desse dom de criar mundos possíveis, de nos fazer viajar no tempo e no espaço e de vibrar com as mais inacreditáveis aventuras, de proporcionar emoções contraditórias e de consolidar em nós a noção de alteridade. Falemos ainda da curiosidade em relação a outras culturas e da abertura de horizontes que o livro proporciona – desígnios fundamentais nos tempos que correm, em que a intolerância étnica e cultural e a guerra (a real e a económico-financeira e social) estão na ordem do dia. Tudo, enfim, graças a esse «sabor dos sabores» que é a palavra (a expressão é de Luísa Dacosta).
No passado, alguns autores produziram livros capazes de sobreviver ao desgaste do tempo – e não apenas por terem sido eventualmente escritos para um público infantil. As narrativas, textos dramáticos, poemas ou álbuns de Perrault, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, Jacob e Wilhelm Grimm, Collodi, Lewis Carroll, Edward Lear, Mark Twain, Stevenson, Jules Verne, Salgari, Beatrix Potter, James M. Barrie, L. Frank Baum, Dr Seuss, Edith Nesbit, Kenneth Grahame, A. A. Milne, Erich Kästner, Michael Ende, Geoffrey Trease, Roald Dahl, Scott O’Dell, Virginia Hamilton, Margaret Mahy, Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Gloria Fuertes, María Elena Walsh, Jean de Brunhoff, Shel Silverstein, Leo Lionni, Max Velthuijs, Maurice Sendak, Mario Ramos, mas também de Ana de Castro Osório, Afonso Lopes Vieira, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, António Sérgio, Maria Lamas, Pessoa (leiam-se os seus versos para crianças), Carlos Amaro, José Gomes Ferreira, Henrique Galvão, Olavo d’Eça Leal, Fernanda de Castro, Adolfo Simões Müller, Ricardo Alberty, Redol, Ilse Losa, Sidónio Muralha, Alice Gomes, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Papiniano Carlos, Matilde Rosa Araújo, Leonel Neves, Carlos Pinhão, Mário Castrim, Couto Viana, Manuel António Pina e tantos outros deixaram na sombra muitas obras de contemporâneos seus, essencialmente dirigidas a adultos, quantas vezes rodeadas de uma aura efémera, mas hoje votadas ao esquecimento.
As leituras para a infância e a juventude dos nossos dias não podem, contudo, limitar-se a estes clássicos. Nem podem ignorar a leitura da ilustração. Igualmente merecedores de tributo, artistas da imagem como Raul Lino, Raquel Roque Gameiro e sua irmã Mamia Roque Gameiro, Sarah Afonso, Augusto Gomes, José de Lemos, Tòssan, Júlio Resende, Maria Keil, Leonor Praça, António Lucena e muitos outros (quantos esqueci?) ilustraram narrativas, poesia ou textos dramáticos de qualidade literária. Tantos e tantos nomes (incluindo os que aqui não recordei, a par de todos os vivos e activos) que, no dia 2 de Abril, merecem ser lembrados, mas cujas obras são em geral esquecidas nos tradicionais compêndios de história literária.
A criatividade e a imaginação destes escritores e destes ilustradores permitirão talvez que, no futuro, muitos dos leitores que ajudaram a formar possam vir a dizer algo de semelhante ao que Marcel Proust escreveu um dia: «Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido.»


José António Gomes 
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)