domingo, 24 de maio de 2009

Os Barrigas e os Magriços ou a história da Revolução de Abril contada aos mais pequenos

Ao escrever o conto «Os Barrigas e os Magriços», Álvaro Cunhal (1913-2005), líder histórico do Partido Comunista Português, propõe-se narrar, numa linguagem adequada aos destinatários preferenciais, a história dos antecedentes que explicam a Revolução de Abril de 1974. Socorrendo-se de uma parábola e explicitando, de forma muito clara e visual, a oposição entre os exploradores e os explorados, o autor justifica a necessidade da mudança com o cansaço de anos e anos de exploração e sofrimento das classes operárias e mais desfavorecidas. Interpela directamente o narratário motivando-o a tomar partido ao lado dos «magriços» que, cansados da opressão e da fome, resolveram tomar o poder nas mãos e criar uma sociedade mais justa e mais solidária.

É curioso como o narrador explora a polissemia do conceito de magriço, tradicionalmente associado à imagem do português leal e justo, combatente ao lado dos perseguidos e injustiçados – relembre-se o episódio das novelas de Cavalaria (que Camões também aproveita na sua epopeia para definir e exemplificar o verdadeiro cavaleiro português) onde o jovem Magriço, depois de atravessar, por terra, parte significativa dos territórios europeus, combate em defesa da honra de uma donzela inglesa ofendida por um seu conterrâneo – mas também aqui interpretado de forma literal, como associado à excessiva magreza resultante das difíceis condições de vida existentes. Esta ideia sai ainda mais reforçada perante a oposição face aos «barrigas» opressores e exploradores, bem nutridos à custa do trabalho e do sofrimento alheios. A oposição – algo simplista pelo maniqueísmo que encerra – entre estes dois grupos de personagens não deixa margem para dúvidas sobre o significado do confronto e sobre a posição do autor/narrador. Do ponto de vista linguístico, veja-se como o narrador, pela utilização de repetições e de estruturas paralelísticas na descrição dos dois grupos em confronto, clarifica a oposição estrutural que está aqui em causa. Com um discurso acessível, construído com base no diálogo, nos seus comentários esporádicos, no uso de comparações, imagens e na própria metáfora que estrutura todo o conto, o narrador alude, de forma implícita mas acessível e facilmente compreendida, às ideias de exploração, de censura, de perseguição, mas também de revolução, de igualdade, de justiça, de liberdade e até de reforma agrária…

Esta edição da Junta de Freguesia de Portimão preenche uma lacuna importante no panorama editorial português, uma vez que o texto de Álvaro Cunhal nunca tinha sido editado em formato livro. E bem o merecia! Ilustrado por crianças do pré-escolar, o texto encontra-se finalmente com os leitores a quem se destinava e é visto e recriado a partir dos seus olhares e das suas cores. Atente-se na genuína ingenuidade com que são representadas as personagens, nas fisionomias que buscam fidelidade ao texto e no cuidado arranjo visual da edição, comemorativa dos 35 anos do 25 de Abril, nomeadamente na variação cromática dos fundos das páginas.

 

 

Referência bibliográfica

 

CUNHAL, Álvaro (2009): Os Barrigas e os Magriços, Portimão: Junta de Freguesia de Portimão (ilustrações de alunos do pré-escolar das escolas do Fojo, Quinta do Amparo e Major David Neto).

Também acessível em

http://www.jf-portimao.pt/pub/os_barrigas_e_os_magri%C3%A7os.pdf

 

 

Ana Margarida Ramos (Universidade de Aveiro); membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 10 de maio de 2009

A Vida Mágica da Sementinha, de Alves Redol

Texto clássico da literatura portuguesa para a infância, esta história do trigo, da autoria de Alves Redol, constitui uma referência obrigatória pela forma como o autor, num discurso aparentemente simples e acessível, cruza uma multiplicidade de temas e apela a uma distribuição mais justa da riqueza. A pequena sementinha que protagoniza a narrativa, tal qual uma heroína de um conto de fadas, vive muitas aventuras até se transformar em planta e, novamente, em grão. Entre o espanto e o receio, são muitas as surpresas que a sua vida lhe reserva, pormenorizadamente descritas, desde que o semeador a retira da arca onde estava guardada com outras companheiras.

Mesmo antes de cair na terra, o seu destino leva-a a ser roubada por um rouxinol cantor, por quem se apaixona, e depois por um pardal faminto que a tenta devorar, quase interrompendo o ciclo de vida que a aguarda. O seu carácter especial, capaz de amadurecer antes de todas as outras sementes, impede-a de se transformar em farinha e depois em pão, como acontece com outras sementes com quem partilha da terra, e em alimento, matando a fome aos trabalhadores que, árdua e alegremente, cuidam dos campos. Em vez disso, será alvo de estudos e de experiências, num elogio da ciência e das suas capacidades que o autor reserva para o final da narrativa, manifestando nela a sua esperança do fim da fome através da abundância de farinha.

Em alguns momentos, também em resultado da proximidade temporal e ideológica dos seus autores, podem ser estabelecidas pertinentes analogias quer com A Menina Gotinha de Água (1963), quer com O Cavalo das Sete Cores (1977), ambas obras de Papiniano Carlos, não só pela sugestão enérgica que caracteriza os textos, assumidamente dinâmicos, plenos de vida a brotar de forma quase pujante, mas também pelo modo, quase ingénuo para o leitor contemporâneo, como revelam uma esperança ilimitada na ciência, espécie de panaceia universal para os males do mundo.

Combinando poesia e ciência, a obra recria o ciclo do grão de trigo, sem esquecer de narrar a sua história desde as origens mais remotas, dando conta do seu relevo na alimentação humana, mas também do seu contributo para a evolução da humanidade. Ao leitor adulto não escaparão, ainda, as alusões mais ou menos explícitas à realidade social e económica contemporânea da escrita do texto, como é o caso da menção à fome e às duras condições de vida dos trabalhadores agrícolas, dependentes de contingências climáticas.  

 

Ficha bibliográfica

 

A Vida Mágica da Sementinha

texto de Alves Redol

8ª edição, Lisboa: Caminho, 2008 (1ª edição de 1956)

ISBN: 978-972-21-0892-8

 

Ana Margarida Ramos

Universidade de Aveiro; membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)