Ao escrever o conto «Os Barrigas e os Magriços», Álvaro Cunhal (1913-2005), líder histórico do Partido Comunista Português, propõe-se narrar, numa linguagem adequada aos destinatários preferenciais, a história dos antecedentes que explicam a Revolução de Abril de 1974. Socorrendo-se de uma parábola e explicitando, de forma muito clara e visual, a oposição entre os exploradores e os explorados, o autor justifica a necessidade da mudança com o cansaço de anos e anos de exploração e sofrimento das classes operárias e mais desfavorecidas. Interpela directamente o narratário motivando-o a tomar partido ao lado dos «magriços» que, cansados da opressão e da fome, resolveram tomar o poder nas mãos e criar uma sociedade mais justa e mais solidária.
É curioso como o narrador explora a polissemia do conceito de magriço, tradicionalmente associado à imagem do português leal e justo, combatente ao lado dos perseguidos e injustiçados – relembre-se o episódio das novelas de Cavalaria (que Camões também aproveita na sua epopeia para definir e exemplificar o verdadeiro cavaleiro português) onde o jovem Magriço, depois de atravessar, por terra, parte significativa dos territórios europeus, combate em defesa da honra de uma donzela inglesa ofendida por um seu conterrâneo – mas também aqui interpretado de forma literal, como associado à excessiva magreza resultante das difíceis condições de vida existentes. Esta ideia sai ainda mais reforçada perante a oposição face aos «barrigas» opressores e exploradores, bem nutridos à custa do trabalho e do sofrimento alheios. A oposição – algo simplista pelo maniqueísmo que encerra – entre estes dois grupos de personagens não deixa margem para dúvidas sobre o significado do confronto e sobre a posição do autor/narrador. Do ponto de vista linguístico, veja-se como o narrador, pela utilização de repetições e de estruturas paralelísticas na descrição dos dois grupos em confronto, clarifica a oposição estrutural que está aqui em causa. Com um discurso acessível, construído com base no diálogo, nos seus comentários esporádicos, no uso de comparações, imagens e na própria metáfora que estrutura todo o conto, o narrador alude, de forma implícita mas acessível e facilmente compreendida, às ideias de exploração, de censura, de perseguição, mas também de revolução, de igualdade, de justiça, de liberdade e até de reforma agrária…
Esta edição da Junta de Freguesia de Portimão preenche uma lacuna importante no panorama editorial português, uma vez que o texto de Álvaro Cunhal nunca tinha sido editado em formato livro. E bem o merecia! Ilustrado por crianças do pré-escolar, o texto encontra-se finalmente com os leitores a quem se destinava e é visto e recriado a partir dos seus olhares e das suas cores. Atente-se na genuína ingenuidade com que são representadas as personagens, nas fisionomias que buscam fidelidade ao texto e no cuidado arranjo visual da edição, comemorativa dos 35 anos do 25 de Abril, nomeadamente na variação cromática dos fundos das páginas.
Referência bibliográfica
CUNHAL, Álvaro (2009): Os Barrigas e os Magriços, Portimão: Junta de Freguesia de Portimão (ilustrações de alunos do pré-escolar das escolas do Fojo, Quinta do Amparo e Major David Neto).
Também acessível em
http://www.jf-portimao.pt/pub/os_barrigas_e_os_magri%C3%A7os.pdf
Ana Margarida Ramos (Universidade de Aveiro); membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)