domingo, 21 de junho de 2009

O Sonhador, de Ian McEwan e Anthony Browne

O hiper-realismo fantástico de Anthony Browne, cujas imagens ambíguas nos situam quase sempre em cenários inquietantes, parece constituir o estilo de ilustração ideal para a narrativa de Ian McEwan, também ela percorrida pela consciência de uma impossibilidade: a existência de uma fronteira estável entre realidade e sonho. Bastaria ter sido esta a primeira vez que surgiram editadas, em Portugal, imagens do celebrado ilustrador inglês (prémio Hans Christian Andersen há alguns anos) para que O Sonhador (Lisboa: Gradiva, 1995; reed. 2007) merecesse destaque.

Impondo-se, no entanto, pelos seus méritos próprios, o texto revela uma história, ou antes, um conjunto de histórias vividas pela mesma personagem, cujo público não se esgota na faixa dos pré-adolescentes, para a qual, inicialmente, parece ter sido escrita. O que explica que, em França e na Itália, o livro de McEwan tenha sido editado em colecções não juvenis, constituindo porventura um exemplo daquilo a que Sandra Lee Beckett chama «crossover fiction».

Traduzida para português por Maria do Carmo Figueira, a obra afirma-se, justamente, pelo modo como consegue analisar, com notável minúcia adulta, o imaginário de Peter Fortune (um afortunado rapaz de dez anos, senhor de uma inteligência e de uma inventiva invulgares), bem como o seu modo peculiar de, através de uma vivência física e afectiva, descobrir e de (se) identificar (n)o mundo e (n)os seres que o povoam: o gato, a família, um colega de escola, um primo de poucos meses, os adultos que integram o círculo de relações dos pais e mesmo uma futura namorada.

Peter é um daydreamer (título original do livro): «na escola (...) deixava muitas vezes o corpo sentado na cadeira enquanto o espírito partia em viagem; e, em casa, o facto de sonhar acordado causava-lhe frequentemente problemas.» (p. 10 da 1.ª ed. portuguesa). Como todos os sonhos, os de Peter não são gratuitos, pois ajudam-no a compreender o real e o seu próprio lugar no mundo. A realidade, porém, é geradora de insegurança e, por vezes, difícil, penosa. E «sonhá-la» tem menos a ver com a sensação de omnipotência do sujeito que, dando livre curso aos seus devaneios, constrói um universo à medida dos seus desejos – interpretação a que uma primeira leitura de um capítulo dedicado à derrota do «rufião» da escola, a páginas 55-65, nos poderia conduzir. A questão prende-se, antes, com a possibilidade de Peter observar e viver o real com um olhar novo, ou seja, de o ver e de o integrar nos seus múltiplos matizes.

Os sonhos obrigam, pois, o herói a descentrar-se de si mesmo para conhecer o outro, assim se socializando, aprofundando a sua visão do mundo e, deste modo, alargando o seu campo de consciência. Leiam-se, a este propósito, os notáveis capítulos sobre o gato e o primo. No primeiro caso, Peter troca de corpo e de vida com o animal, selando definitivamente uma relação afectiva que o vai preparar para enfrentar a morte do companheiro de sempre; no segundo, regressa à condição de bebé, experimentando as sensações dos primeiros meses de vida e aprendendo, desse modo, a conviver com uma criança cujo comportamento inicialmente o perturbava. Estas vivências são descritas com singular intuição e, no segundo capítulo referido, com um sentido de humor contido, mas irrecusável.

«O meu objectivo é falar de corpos que se transformaram em formas de outro tipo» – escreve Ovídio no livro I das Metamorfoses. Partindo deste paratexto, McEwan constrói um extraordinário texto sobre a importância de viver o corpo, nomeadamente o nosso no outro e o do outro através do nosso, como metáfora de um processo dialéctico: o do crescimento social, afectivo e ético.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)