terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Hipólito, o Filantropo, de Eric Many

As palavras «novas», de estranha ressonância, possuem o condão de atrair a atenção dos mais pequenos e de os despertar para a poesia. É esta virtualidade que o álbum para crianças Hipólito, o Filantropo (Afrontamento, 2006), de Eric Many, explora com sensibilidade e humor, lançando como que um arco entre duas dessas palavras – «filantropo» e «misantropo» – e recorrendo, no texto, às possibilidades sémicas e expressivas da visualidade dos signos, através de variações no corpo de letra.

A história é simultaneamente simples e engenhosa. Diga-se, em primeiro lugar, que num bom livro os nomes das personagens nunca são aleatórios. E assim acontece com este álbum. Um bondoso hipopótamo, de seu nome Hipólito, tem uma amiga, a rata Rita, que um dia lhe diz: «Hipólito, tu és o maior filantropo da floresta.» (p. 10). Figuração da criança em fase de aprender palavras novas e sobre elas se interrogar, nem sempre lhes atribuindo o significado mais correcto, o inquieto Hipólito decide consultar outros animais da selva africana. Todos, porém, ignoram a palavra «filantropo» e, por isso, a interpretam de modo equívoco, dando-lhe sentidos pejorativos. A angústia de Hipólito, ante a imagem que vai construindo de si próprio, apenas cessa com a explicação do sábio elefante: «Eu também acho que és um filantropo, pois tu és amigo de todos e todos gostam de ti.» (p. 26). A acção termina com novo diálogo entre o hipopótamo e a amiga rata: «Na verdade, não sei se sou o maior filantropo da floresta, mas sei que gosto muito de ti e que tu não és nada misantropa.» (p. 30).

Assim se completa o arco e assim se abordam tópicos fundamentais e de larga tradição na literatura para crianças: a amizade e a socialização, a construção da identidade e da auto-imagem, a aprendizagem de novos termos e, naturalmente, esses pequenos-grandes alçapões da linguagem, tantas vezes geradores de equívocos nas relações interpessoais, para os quais já alertava o «clássico» Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.

Estreia em livro de um jovem e promissor autor, docente na Escola Superior de Educação do Porto, Hipólito, o Filantropo surpreende pela qualidade e humor da ilustração, pela singularidade do traço e pela capacidade de figurar, com talento artístico, o universo infantil por meio de um entrecho animalista em que a dimensão emocional está sempre presente. Acrescente-se que se trata de um daqueles casos em que a economia de meios expressivos não é inimiga da complexidade temática. Eric Many, que assume a dupla condição de escritor e de ilustrador, dá-nos, assim, um álbum infantil em que imagem e texto dialogam entre si e mutuamente se completam, como aliás sucede nos melhores exemplos do género.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Os Amigos de Lia, de Inês de Oliveira

Inês de Oliveira pertence a uma nova geração de ilustradores, mas com créditos já firmados, considerando o número de obras em que participou, mas sobretudo a excelência dos trabalhos que tem publicado. De referir que as suas opções estéticas a vinculam ao magistério da grande ilustradora austríaca Lisbeth Zwerger, do qual aos poucos tem vindo a libertar-se.

Em Os Amigos de Lia (Porto: Porto Editora, 2006), propõe uma narrativa breve e divertida cujos sentidos assentam na relação de complementaridade entre texto e ilustração, característica dos álbuns («picture story books») para crianças. Num registo que se distingue pela sobriedade e elegância, mas sobretudo pela singular qualidade e bom gosto do desenho, da composição e da utilização da cor, esta notável ilustradora proporciona aos mais novos uma experiência peculiar. Trata-se, aqui, de desvendar esse pequeno-grande mundo, feito de coisas reais e imaginadas, onde vive Lia, uma menina especial. Uma menina que gosta de ler, com olhos de artista, o que se passa em seu redor. E por isso o nome lhe assenta como uma luva. Outros verão em Lia uma criança à procura de companhia, mas que sabe encontrar na sua própria capacidade de inventar e realizar uma saída possível para a solidão.

Um livro, em suma, feito para que o olhar nele se demore.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Novas Histórias ao Telefone, de Gianni Rodari: imagens de um mundo alternativo

Novas Histórias ao Telefone (Lisboa: Teorema, 1987) – livro incluído nas listas do Plano Nacional de Leitura – é uma colecção de contos breves, editada pela primeira vez em 1962 (Turim: Einaudi), do escritor e pedagogo italiano Gianni Rodari, nascido em 1920, na Lombardia, e falecido em 1980, na cidade de Roma. Em 1970, pelo conjunto da obra, Rodari foi galardoado com o Prémio Hans Christian Andersen, que veio reconhecer a qualidade da sua escrita e o seu extraordinário contributo para a literatura infantil.

Uma nota ainda para lembrar que é possível descobrir outros títulos deste autor traduzidos para português, desde meados dos anos 80: As Aventuras de Cebolinho (Presença, 1984), Histórias para Brincar (Círculo de Leitores, 1985), Pequenos Vagabundos (Caminho, 1986), Histórias ao Telefone (Teorema, 1987), Zé Jasmim na Terra dos Aldrabões (Caminho, 1990) Gramática da Fantasia (Caminho, 1993), autêntico manual de criatividade e da arte de inventar histórias, para uso de educadores e promotores da leitura. Mais recentemente, um editor italiano promoveu a publicação em álbum de composições de Rodari extraídas de colectâneas de textos breves do autor. Alguns desses álbuns surgiram editados em Espanha e Portugal pela Kalandraka. São os casos de Inventando Números (Sevilha: Kalandraka Ediciones Andalucia, 2007), que utiliza um texto de Histórias ao Telefone, e de Baralhando Histórias 1 (Lisboa: Kalandraka, 2007), em que se recorre a uma das Novas Histórias ao Telefone, ambos ilustrados por Alessandro Sanna.

Em trinta e seis contos breves (os incluídos na obra que aqui nos ocupa), Gianni Rodari convida o leitor a empreender uma viagem dentro e fora de si mesmo, encontrando um espaço que se renova e revigora a cada nova narrativa e que se caracteriza pelo insólito, o extemporâneo, o absurdo e a diversão.

Para além de certos jogos narrativos próprios deste autor (alguns explicitados na sua Gramática da Fantasia), para além das velhas metáforas e das mensagens tradicionais, como as fronteiras que delimitam o bem e o mal ou, ainda, a recompensa por uma benfeitoria, neste conjunto de histórias, encontramos também uma dimensão que extravasa os limites mágicos dos contos tradicionais e nos convida a entrar no mundo das regras instituídas, que é o espaço físico, real e convencional em que o próprio leitor se inscreve. Não se trata já de um lugar emoldurado por florestas sombrias e densas, habitado por seres mágicos, gigantes ou anões, mas do retrato de um mundo em evolução, para o bem e para o mal. Um mundo saído do pós-Segunda Guerra, gerador de uma sociedade crescentemente consumista e egocêntrica, arquetípica de uma economia contemporânea, frenética e empreendedora, simbolizada, a título de exemplo, na história «O rebuçado instrutivo». Da mesma forma, também não encontramos o tradicional herói, mas personagens que espelham o próprio leitor, porque em tudo semelhantes a ele, permitindo, assim, a quem lê, que se revisite por dentro e avalie a sua posição e o seu contributo na e para a sociedade de que faz parte, como acontece, por exemplo, em «O homem que roubava o Coliseu» (pp. 43-47), em «O trólei número 75» (pp. 51-54) e em «O poço de Cascina Piana» (pp. 65-68). Leiam-se ainda, a este propósito, «O pedreiro da Valtelina» (pp. 60-62), «A manta do soldado» (pp. 62-65), «Casas e prédios» (pp. 68-70), «O rebuçado instrutivo» (pp. 78-80), para não mencionar outras que exploram a perda de valores e de princípios e aludem a uma sociedade em que o alheamento em relação ao outro campeia, uma sociedade em processo de desagregação.

A título ilustrativo, e sumariando apenas os três primeiros contos dentre os sete supramencionados, em «O homem que roubava o Coliseu», estamos ante um exemplo de egoísmo e de megalomania burguesa que, em dado momento, se confronta com a evidência da alteridade. O homem em causa decidira levar o Coliseu para sua casa, «queria-o todo para si porque não lhe agradava ter de dividi-lo com os outros» (p. 43). Assim, todos os dias, excepto aos Domingos, pedra a pedra, ia roubando o monumento. E os anos passavam, as pedras do Coliseu amontoavam-se em casa, por todo o lado, e o ladrão estava cansado, velho e moribundo. Ao perceber que o Coliseu continuava igual, chegou a pensar que talvez tivesse sido uma má escolha e questionava-se: «Se calhar teria sido preferível roubar a cúpula da Catedral de São Pedro» (p. 44). Mas, apesar de se sentir quase sem forças para continuar o seu empreendimento, dizia de si para si, determinado: «Bom, adiante! Coragem! Quando se toma uma decisão é preciso saber levá-la até ao fim» (p. 44). Num certo dia de sol, o velho ladrão sobe ao último varandim do monumento romano, invadido por turistas, e ouve uma criança dizer, deslumbrada, que aquela grandeza era toda sua. Percebeu nesse momento quão feio era aquele pronome e «desejaria tê-lo ensinado a dizer “nosso”, em vez de “meu”, mas faltaram-lhe as forças» (p. 46).

«O trólei número 75» retrata os membros de uma sociedade, esquecidos de certos valores que os conformam enquanto seres humanos, como se se tivessem convertido em autómatos. O trólei resolve desgovernar-se e obrigar os passageiros a passear pelo campo, não obstante os protestos: «– Que raio de serviço!», resmungava um, «– São nove menos dez e às dez em ponto tenho de estar no tribunal; – gritou um advogado – se perder o processo, faço queixa à companhia» (p. 51). O trólei detém-se então num campo verdejante e florido. Depois de uma senhora ter decidido sair para apreciar os ciclames, e como o autocarro não mostrava sinais de querer partir, todos os outros passageiros a seguiram e foram contaminados por aquela paisagem ainda virgem: «já não pareciam os mesmos empregados que há uns instantes atrás pretendiam linchar os funcionários do trólei» (p. 53). Entretanto, o trólei resolvera partir e, para surpresa dos passageiros, o tempo não tinha passado, eram nove menos dez e, no jornal que uma senhora comprara, podia ler-se a data: «21 de Março! Tudo é possível no primeiro dia de Primavera!» (p. 53).

Em «O poço de Cascina Piana», temos uma cidade, Cascina Piana, formada por três quintais e onze famílias, e um poço comum que servia a água a todas as famílias. Esse poço, contudo, não tinha corda e cada família levava a sua corda sempre que precisava de tirar água do poço. Outra particularidade: as onze famílias eram inimigas: «E se não acreditam, vão lá inteirar-se, que vos hão-de contar, como a mim me contaram, que aquelas onze famílias não viviam em concórdia e andavam continuamente a arreliar-se e que teriam preferido encher o poço de terra e ervas ruins a comprar conjuntamente uma bela corrente e a fixá-la na roldana para que todos pudessem servir-se» (p.65). O tempo de Paz acabara e estalara a Guerra e a invasão alemã. Certo dia, um resistente moribundo pede auxílio a uma das famílias que não recusa a ajuda, mas tenta escondê-lo, em vão, a todo o custo, dos vizinhos. Mal a notícia se espalhou, todas as mulheres, porque os homens tinham sido chamados para o serviço militar, contribuíram para a recuperação do resistente. Quando melhorou, e já quase terminada a Guerra, o resistente, estupefacto, não compreendia por que motivo o poço não tinha corda. As mulheres perceberam, então, que já não eram inimigas e, prontamente, compraram uma corda comunitária, e «o resistente tirou o primeiro balde de água e foi como a inauguração de um monumento» (p. 67). Observe-se, neste caso, a ligação do resistente a um código moral positivo, em que sobressaem traços de altruísmo, em contraste com o individualismo exacerbado dos residentes. Como se um novo mundo, em suma, estivesse para nascer.

Em certos momentos, Novas Histórias ao Telefone (contos breves, como o título indicia) parece apontar para a ideia de que o estabelecimento de uma nova ordem social, mais justa, mais equilibrada e mais consensual, é simples e está ao alcance de todos os cidadãos. Trata-se pois de desmistificar a crença de que uma sociedade baseada e edificada na e pela equidade é uma utopia. A força motora destas histórias reside precisamente na ideia de que a Humanidade pode construir um futuro melhor desde que os homens se lembrem a todo o instante que uns só existem porque existem os outros, e, para isso, parece suficiente o respeito pela pessoa humana, a consciência actuante de que se não é um mero consumidor, mas, e acima de tudo, o gerador de uma Cultura que é sempre um legado único e comum a todos, sendo, por isso, obrigatório valorizá-lo e preservá-lo. Apesar de encontrarmos nos mundos narrados traços de uma visão distópica, encontramos também uma praxis que permite transformar a sociedade e desmontar a ideologia dominante, tal como nos ensinara Marx. O próprio Gianni Rodari parece apontar nesse sentido, ao escrever, em Gramática da Fantasia (p. 138), «Se, apesar tudo, não tivéssemos esperança num mundo melhor, quem nos convenceria a ir ao dentista?» 

Nota

1 É de referir que a qualidade da tradução/revisão deste texto para língua portuguesa é lamentável. Contém erros inadmissíveis como «no praça» em vez de «na praça» e «esqueçe» em vez de «esquece». Infelizmente, estes descuidos não são raros em livros da Kalandraka vertidos para português.

Ana Vasconcelos 

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)