domingo, 30 de novembro de 2008

Versos quase Matemáticos, de João Pedro Mésseder

Será que a poesia rima com a matemática? Dirão os menos atentos que escrever e calcular são coisas muito diferentes. Mas talvez assim não seja. No livro Versos Quase Matemáticos, João Pedro Mésseder entrelaça o contar das letras com o contar dos números, mostrando como os números e as letras se articulam no bailado ritmado das pequenas grandes coisas da vida. É que adicionar pode querer dizer juntar, subtrair pode querer dizer tirar, multiplicar pode querer dizer aumentar e dividir pode querer dizer repartir. E depois estamos sempre a contar coisas a que damos nomes com que explicamos muitas coisas. Quatro são as estações, dois são os pedais de uma bicicleta e cantar pode ser feito em dueto, terceto, quarteto, quinteto...
Num livro de extrema sensibilidade, o autor faz dançar as letras com os números, proporcionando uma aproximação envolvente a estes domínios que devem permanecer unos no desenvolvimento da sensibilidade e da inteligência.
Título: Versos quase Matemáticos
Autor: João Pedro Mésseder
Ilustração: Catarina Fernandes
N.º de páginas: 24
Classificação: infanto-juvenil

Informação produzida pela editora Pé de Página, www.pedepagina.pt

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Dois italianos de vulto: Calvino e Rodari

Atraída, quase sempre, pelo imediato, a crítica de livros infantis e juvenis (e não apenas esta) tende, por vezes, a esquecer as grandes vozes de referência, sobretudo quando já só temos a possibilidade de escutar os seus ecos, consubstanciados nos belos livros que nos legaram. Mas que ecos!, dir-se-ia. Lembrarei, por isso, duas dessas vozes – as quais nunca permitiram, acrescente-se, que a sua intervenção artística surgisse dissociada de uma qualificada acção cívica e política com ressonância pública (coisa que, salvo honrosas excepções, parece cada vez mais em desuso, neste tempo de mentes entorpecidas que é o nosso).  

A primeira é a de um dos maiores escritores do século XX, Italo Calvino (1923-1985), de que recordo aqui Um Mistério no Labirinto (Teorema, 2002). A acção poderia ser assim sumariada: vindo da guerra, o rei Clodoveu dirige-se para a capital, Arvoreburgo. Ansioso por chegar, depara com um bosque tão espesso que o impede de encontrar o caminho. Na cidade, a rainha e o primeiro-ministro conspiram contra ele. A princesa suspira pela chegada do pai, enquanto vê a cidade, sitiada pelo bosque, despir-se paradoxalmente de árvores e plantas. Ao adensar-se em torno da muralha, a floresta converte o percurso destas e doutras personagens em errância desesperada num labirinto, onde se invertem as relações entre cimo e base, ramos e raízes.

Cegueira e lucidez, ambição e amor, esterilidade e fecundidade são alguns dos temas desta enigmática história de final feliz, bem traduzida por Colaço Barreiros, na qual ecoam velhos mitos, contos tradicionais e narrativas de raiz medieval – um universo de que Calvino foi aliás um apaixonado conhecedor. Para crianças – ou para todos?

A segunda voz em apreço é a de Gianni Rodari (1920-1980), contemporâneo de Calvino, e o título a lembrar é Histórias ao Telefone (2ª ed., Teorema, 1999).

Sendo embora um dos autores estrangeiros da chamada literatura para a infância mais traduzidos em Portugal, estou convicto que Gianni Rodari (Prémio Hans Christian Andersen em 1970) continua a ser, infelizmente, um nome apenas conhecido de uma minoria de leitores infantis. Novas Histórias ao Telefone (Teorema, 1987) e Pequenos Vagabundos (Caminho, 1986) contam-se entre os seus títulos publicados em português, aos quais deveremos juntar a fundamental Gramática da Fantasia (Caminho, 1993), dirigida ao público adulto, razoavelmente lida por professores e promotores da leitura, e por isso talvez a sua obra de maior sucesso no nosso país.

Este último livro resulta da longa experiência de educador e animador vivida por Rodari na Itália das décadas que se seguiram à 2ª Guerra, época em que foi cronista do jornal L’Unitá e fundou e dirigiu o Pionere, um semanário infantil de inspiração democrática. Gramática da Fantasia, por seu turno, aborda, nas palavras do autor, «alguns modos de inventar histórias para crianças e de ajudar as crianças a inventarem sozinhas as suas histórias», na perspectiva de «quem acredita na necessidade de a imaginação ter o seu lugar na educação» e de «quem sabe o valor de libertação que pode ter a palavra».

Não é por acaso que refiro esta obra. Com efeito, Histórias ao Telefone resulta em parte da aplicação prática de princípios e técnicas enunciados em Gramática da Fantasia, que se encontram na base daquilo a que alguns críticos têm chamado o «fantástico rodariano». De forma necessariamente sumária, apontarei alguns dos seus traços distintivos: enredos breves que nos apresentam mundos surpreendentes, por vezes gerados a partir da descoberta de sentidos ocultos em certas palavras, frases feitas e provérbios, ou em neologismos formados a partir de outros bem conhecidos, como acontece com o «Extrageneral» e o «Mortechal», o «des-país» e o «descanhão» («o contrário do canhão», pois «serve para desfazer a guerra», p. 25). O humor quase corrosivo e os retratos críticos da sociedade italiana raramente estão ausentes dos contos de Rodari, os quais trilham com frequência os caminhos de um nonsense nunca gratuito e que colhe inspiração no surrealismo. Ao estimular reflexões sobre a comunicação e sobre a palavra, aqui e acolá evocando, de modo divertido, personagens dos velhos contos tradicionais para crianças, e fazendo apelo ao que, na alma infantil, existe de irredutível à ordem adulta, cada uma destas 34 histórias que o caixeiro Bianchi contava à filha pelo telefone – dado que se encontrava permanentemente em viagem – revela-se como um prodígio de imaginação. Para que as chamadas não fossem muito demoradas, as narrativas tinham de ser curtas e quase todas eram tão surpreendentes como a história de «O país sem ponta», onde aqueles que infringiam as leis eram condenados a esbofetear polícias: «É claro que é injusto, é claro que é terrível – disse o polícia. – A coisa é tão odiosa que as pessoas, para não serem obrigadas a esbofetear os pobrezinhos sem culpa, evitam a todo o custo fazer seja o que for contra a lei» (p. 22).    

 José António Gomes 

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Histórias com Juízo, de Mário Castrim

Histórias com Juízo (4ª ed., Lisboa: Caminho, 1993) foi um livro inicialmente publicado em 1969 e sujeito, na edição em apreço, a alterações de pormenor. Assinale-se, desde já, que o título, à primeira vista, é enganador, pois é possível encontrar na obra o poema em verso ou em prosa e a historieta (uma a duas páginas, por vezes dois ou três escassos parágrafos) – a lembrar, aqui e acolá, as Favole al Telefono, esses pequenos prodígios de humor surrealizante publicados por Gianni Rodari em 1962 e 1971, e traduzidos e editados pela Teorema em 1987 e 1988.Negrito
Juntamente com O Livro de Marianinha (1967), de Aquilino Ribeiro, O Cantar da Tila (1967), de Matilde Rosa Araújo, e Conversas com Versos (1968) e Figuras Figuronas (1969), de Maria Alberta Menéres, Histórias com Juízo constitui um dos títulos mais interessantes da poesia para crianças e jovens editada em finais dos anos 60, numa altura em que este tipo de escrita ousava, enfim, libertar-se de um certo infantilismo e da expressão de tendências nacionalistas que, em décadas anteriores, a haviam inquinado.

Com alguns dos textos deste livro, Mário Castrim inaugura, na nossa poesia para jovens, uma atitude mais experimental, em alguns aspectos próxima até de certas práticas da chamada poesia concreta. Destaque-se, a título de exemplo, a criativa organização grafico-visual de três ou quatro textos – a qual, na antiga edição da Plátano, chegava a surgir em interacção dinâmica com a própria ilustração. Registe-se ainda que o autor aprofundará esta experiência, em 1977, com um livro de assinalável qualidade escrito a partir do alfabeto: Estas São as Letras.

Os textos povoam-se de objectos, frutos e animais, ocasionalmente humanizados, e oscilam, como já se disse, entre o poema e o micro-conto em prosa, destacando-se aqui e ali, adivinhas poéticas, textos imbuídos de um aparente nonsense – que nunca é inocente – e pequenos poemas em prosa de um lirismo tocante: «Tapete voador – Eu sou o tapete. || Conheço os passos das pessoas. Quando as pessoas estão quietas, oiço bater o coração delas na planta dos pés. || Aqui onde me vêem, já fui uma pessoa muito importante. Quando não havia aviões e helicópteros, era eu quem levava os homens a viajar. Em vez de gasolina, os homens diziam umas palavras. Era mais barato, mas muito mais difícil, porque as tais palavras é preciso conhecê-las. || Se tu as conheces, diz. Diz depressa. Faz de mim agora e sempre um tapete voador.» (p. 74).

Na esclarecedora apresentação da contracapa (saída, por certo, da pena do autor) pode-se ler que «todas as histórias têm juízo. Todas. Principalmente aquelas que parecem não ter juízo nenhum.» Na verdade, é disto que se trata, ou seja de diálogos e poemas que estimulam a descobrir a verdade escondida de cada coisa, a encontrar o nexo poético que estrutura o aparente (?) absurdo da realidade, aproveitando para minar, uma vez mais, a confiança na seriedade do discurso – e, neste ponto, utilizo intencionalmente palavras de Fátima Maldonado, escritas a propósito de Lewis Carroll (um dos antepassados literários de Castrim). Leia-se, por exemplo, o texto «Corre, corre, corredor»: «Era uma vez um corredor atravancado de cadeiras, vasos, prateleiras, mesas. Era um corredor muito triste. || - Ó corredor, por que é que estás tão triste? || – Porque não me deixam correr – respondeu o corredor.» (p. 18).

Acrescente-se que, ao contrário do que se possa pensar, muito deste material literário foi, ao longo dos anos, ganhando popularidade em contextos escolares, mercê da sua frequente inclusão em manuais escolares de Português do 2º ciclo do Ensino Básico. Nesse quadro, tem evidenciado capacidade de motivar a criança quer para uma escrita criativa assente na leitura atenta de alguns textos, quer para actividades de recriação e prolongamento dos mesmos.

Pergunto-me, por vezes, por que razão a maioria dos autores de literatura para a infância adora reafirmar que um bom livro para crianças é aquele que agrada também a um adulto. Embora tal «verdade» não tenha real fundamento, Histórias com Juízo distingue-se, julgo eu, por essa polivalência. 

José António Gomes

NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto