terça-feira, 31 de maio de 2011

A inocência descompensada… Que fazer então?

No Público de 30-5-2011, pode-se ler que, em Portugal, “duas em cada cinco crianças vivem em situação de pobreza”. A notícia, assinada por Andreia Sanches, refere: “Não são apenas as crianças que vivem com rendimentos abaixo do limiar de pobreza que são pobres. São também aquelas cujo bem-estar é afectado por condições de vida “deficientes” – e que, por isso mesmo, se considera que estão “em privação”. É com base nesta abordagem que uma equipa de investigadores do Instituto Superior de Economia e Gestão, da Universidade Técnica de Lisboa, conclui que cerca de 40 por cento das crianças portuguesas vivem em "situação de pobreza". Um estudo encomendado pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, a que o Público teve acesso – e que será apresentado (…) [no] Dia Mundial da Criança, no ISEG –, mostra que as crianças até aos 17 anos são o grupo mais vulnerável à pobreza, tendo ultrapassado o dos idosos.” (Andreia Sanches, Público, 30-05-2011).

Quem se preocupa com a infância, com o seu bem-estar, com a educação e a cultura – e este sítio é sobre a literatura da infância – não pode ficar indiferente a números tão cruéis: 40% das crianças portuguesas vivem em situação de pobreza!

Deram nisto trinta e tal anos de mau governo dos três partidos que gostam de se auto-designar como os do “arco da governação” e a que nós preferimos chamar os do “arco da desgovernação”.

Aproximam-se eleições (mais umas) e os portugueses são chamados a votar. Votar nos mesmos ou nos seus sósias, para tudo se manter igual ao que tem sido ou ficar pior ainda? Para Dupond suceder a Dupont e 40% das crianças portuguesas continuarem a viver em situação de pobreza?

E que tem a literatura a ver com isto? Tudo, é claro.

Vale a pena, a propósito, citar estes dois textos, intencionalmente quase sem metáforas, encontrados num livro de Ana Roiz:

.

Razões eleitorais que a razão desconhece

Que os ricos - a minoria -

votem naqueles que defendem seus interesses

é coisa que se compreende.

São ricos, não é?

Que os outros - a maioria -

votem contra si mesmos

(continuando, nos ombros, com o peso

dos que vivem do trabalho alheio

e da moral na ponta da língua)

está para lá de toda a compreensão.

Será que a maioria vota

pelo direito à diferença,

essa estranha diferença que é a liberdade de explorar

e de gerar maiorias de pobres

que elegem os representantes dos ricos?

.

.

Adivinha

Mal a lebre se levanta,

qual é a primeira frase, qual é ela,

que o corrupto dirige aos jornalistas?

.

Solução:
«Sinto-me de consciência tranquila.»

.Ana Roiz. Derrocada do Parnaso. Serpa: Edições Meridionais, 1990, pp. 12 e 24.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Manuel António Pina (Prémio Camões) e O Têpluquê e outras Histórias

Com pequenas alterações, O Têpluquê e Outras Histórias (2.ª ed., Porto: Afrontamento, 1995, ilustrações de José Guimarães; 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, ilustrações de Bárbara Assis Pacheco) reúne cinco textos em prosa e três em verso, antes publicados em Gigões & Anantes (1974) e O Têpluquê (1976), desta feita antecedidos de um poema que o Autor dedica «à Ana no dia dos anos». A dedicatória aponta, desde logo, para um dos traços distintivos da obra: à matéria literária não é alheia uma certa cumplicidade estabelecida entre o Escritor e as suas filhas Sara e Ana, transformadas em personagens de seis das histórias.

O humor, as interrogações em torno da linguagem, da conversa e da desconversa, bem como a reflexão sobre as relações entre pensamento e linguagem constituem aspectos a ter em conta na abordagem de uma obra que, sendo um caso singular na nossa literatura para a infância, se inscreve numa tradição cujo representante máximo é, provavelmente, Lewis Carroll – autor que, juntamente com A. A. Milne, integra o núcleo das preferências literárias de Manuel António Pina.

Carrollianos são, de facto, a personagem do escaravelho Bocage e os diálogos que estabelece com Sara e Ana:

«– Então não estavas a crescer (...) estavas a diminuir.

– Não, disse o Bocage, depois de pensar um bocado. – Porque eu não estava a ficar cada vez menos, eu estava a ficar cada vez mais. Portanto estava a crescer. O que se passava é que estava a ficar cada vez mais baixo em vez de ficar cada vez mais alto. Percebes? (...)

“Este não regula bem” – pensou a Ana.» (2.ª ed., pp. 24-25)

À semelhança de Alice, na «Wonderland», o que Ana e Sara parecem compreender, nas suas primeiras experiências linguísticas, é que a linguagem verbal não é fiável, ou antes, é uma fonte de ambiguidades e duplos sentidos que convertem as relações interpessoais em espaços de insegurança, geradores de equívocos, mas também de situações cómicas.

Ao mesmo tempo, porém, é esta característica da linguagem que permite o eclodir da criatividade verbal e da poesia, por vezes interrompidas (ou talvez não) pela ilusão de que é possível criar uma língua nova, feita de palavras inventadas e «de toda a confiança» (2.ª ed., p. 30): não sabendo como distinguir os gigões dos anantes, Ana «arranjou uma teoria: / xixanava com eles e o que ficava / xubiante ou ximbimpante era o gigão, / e o anante o que fingia que não.» (p. 30).

Aqui e acolá piscando o olho ao leitor adulto, a escrita de Manuel António Pina não hesita em transformar o alfabeto numa espécie de espaço social dominado por conflitos de clara conotação política (é bom recordar que as primeiras edições destes textos datam de 1974 e 1976), já que a Ordem Alfabética, como todas as ordens mais ou menos arbitrárias, será posta em xeque por uma revolução: «depois das letras revoltaram-se as palavras, e depois os livros, e depois as bibliotecas, e depois tudo.» (p. 14).

Parece, pois, acertada a ideia de reunir esta produção num único volume. Percorrendo-o do princípio ao fim, o tópico da linguagem é introduzido pelo próprio título, o qual nos convida a centrar a atenção num texto bem-humorado, porventura o mais paradigmático e conseguido de toda a obra: «O Têpluquê» (p. 18), um achado em termos de criatividade linguística, com não poucos incentivos à reflexão, susceptíveis de estimular o chamado pensamento divergente.

Nas primeiras edições, de A Regra do Jogo, as imagens de João Botelho (ilustrador e cineasta) davam a ver o trabalho, conseguido, de um velho companheiro de jornada de Pina, responsável pelas ilustrações de outras obras do Escritor. A edição da Afrontamento, por sua vez, mostrava uma incursão de José de Guimarães na área do livro infantil. Quanto às ilustrações da edição da Assírio & Alvim, deram a conhecer uma nova ilustradora: Bárbara Assis Pacheco. Nascida em Lisboa, em 1973, licenciada em Arquitectura e em Filosofia e diplomada com um Curso de Desenho e um Curso Avançado de Artes Plásticas, esta pintora ilustrou também os livros Histórias para Ler e Sonhar e Natal na Quinta, ambos de Pedro Strecht.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)