Com pequenas alterações, O Têpluquê e Outras Histórias (2.ª ed., Porto: Afrontamento, 1995, ilustrações de José Guimarães; 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, ilustrações de Bárbara Assis Pacheco) reúne cinco textos em prosa e três em verso, antes publicados em Gigões & Anantes (1974) e O Têpluquê (1976), desta feita antecedidos de um poema que o Autor dedica «à Ana no dia dos anos». A dedicatória aponta, desde logo, para um dos traços distintivos da obra: à matéria literária não é alheia uma certa cumplicidade estabelecida entre o Escritor e as suas filhas Sara e Ana, transformadas em personagens de seis das histórias.
O humor, as interrogações em torno da linguagem, da conversa e da desconversa, bem como a reflexão sobre as relações entre pensamento e linguagem constituem aspectos a ter em conta na abordagem de uma obra que, sendo um caso singular na nossa literatura para a infância, se inscreve numa tradição cujo representante máximo é, provavelmente, Lewis Carroll – autor que, juntamente com A. A. Milne, integra o núcleo das preferências literárias de Manuel António Pina.
Carrollianos são, de facto, a personagem do escaravelho Bocage e os diálogos que estabelece com Sara e Ana:
«– Então não estavas a crescer (...) estavas a diminuir.
– Não, disse o Bocage, depois de pensar um bocado. – Porque eu não estava a ficar cada vez menos, eu estava a ficar cada vez mais. Portanto estava a crescer. O que se passava é que estava a ficar cada vez mais baixo em vez de ficar cada vez mais alto. Percebes? (...)
“Este não regula bem” – pensou a Ana.» (2.ª ed., pp. 24-25)
À semelhança de Alice, na «Wonderland», o que Ana e Sara parecem compreender, nas suas primeiras experiências linguísticas, é que a linguagem verbal não é fiável, ou antes, é uma fonte de ambiguidades e duplos sentidos que convertem as relações interpessoais em espaços de insegurança, geradores de equívocos, mas também de situações cómicas.
Ao mesmo tempo, porém, é esta característica da linguagem que permite o eclodir da criatividade verbal e da poesia, por vezes interrompidas (ou talvez não) pela ilusão de que é possível criar uma língua nova, feita de palavras inventadas e «de toda a confiança» (2.ª ed., p. 30): não sabendo como distinguir os gigões dos anantes, Ana «arranjou uma teoria: / xixanava com eles e o que ficava / xubiante ou ximbimpante era o gigão, / e o anante o que fingia que não.» (p. 30).
Aqui e acolá piscando o olho ao leitor adulto, a escrita de Manuel António Pina não hesita em transformar o alfabeto numa espécie de espaço social dominado por conflitos de clara conotação política (é bom recordar que as primeiras edições destes textos datam de 1974 e 1976), já que a Ordem Alfabética, como todas as ordens mais ou menos arbitrárias, será posta em xeque por uma revolução: «depois das letras revoltaram-se as palavras, e depois os livros, e depois as bibliotecas, e depois tudo.» (p. 14).
Parece, pois, acertada a ideia de reunir esta produção num único volume. Percorrendo-o do princípio ao fim, o tópico da linguagem é introduzido pelo próprio título, o qual nos convida a centrar a atenção num texto bem-humorado, porventura o mais paradigmático e conseguido de toda a obra: «O Têpluquê» (p. 18), um achado em termos de criatividade linguística, com não poucos incentivos à reflexão, susceptíveis de estimular o chamado pensamento divergente.
Nas primeiras edições, de A Regra do Jogo, as imagens de João Botelho (ilustrador e cineasta) davam a ver o trabalho, conseguido, de um velho companheiro de jornada de Pina, responsável pelas ilustrações de outras obras do Escritor. A edição da Afrontamento, por sua vez, mostrava uma incursão de José de Guimarães na área do livro infantil. Quanto às ilustrações da edição da Assírio & Alvim, deram a conhecer uma nova ilustradora: Bárbara Assis Pacheco. Nascida em Lisboa, em 1973, licenciada em Arquitectura e em Filosofia e diplomada com um Curso de Desenho e um Curso Avançado de Artes Plásticas, esta pintora ilustrou também os livros Histórias para Ler e Sonhar e Natal na Quinta, ambos de Pedro Strecht.
José António Gomes
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)