sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Manuela Bacelar: da ilustração ao álbum




No Jornal de Notícias on-line de 6 de Setembro de 2023, é possível ler: «Bienal de Ilustração de Guimarães atribui Prémio Carreira a Manuela Bacelar. || A Bienal de Ilustração de Guimarães (BIG) deste ano vai atribuir o Prémio Carreira a Manuela Bacelar, que vai ter uma exposição dos seus trabalhos mais representativos no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG).»

É esta excelente notícia o pretexto para evocar aqui aspectos da obra da principal ilustradora portuguesa que o pós-25 de Abril de 1974 nos deu a conhecer, autora de uma obra ímpar, marcada por um traço inconfundível.Os melhores livros ilustrados por Manuela Bacelar (n. Coimbra, 1943) têm envelhecido bem. O mesmo é dizer: mantêm a juventude que os distinguia quando foram editados pela primeira vez. São os casos, entre outros, de História da Égua Branca (Porto: ASA, 1977) de Eugénio de Andrade, O Menino Chamado Menino (Porto: ASA, 1983) e O Reino Perdido (Porto: ASA, 1986) de Álvaro Magalhães, ou Um Artista Chamado Duque (Porto: ASA, 1990) de Ilse Losa, a par dos títulos premiados a que adiante farei referência.

Tendo publicado desenhos seus em livro ainda antes de Abril de 1974, e assinado as ilustrações de dezenas e dezenas de volumes, escritos pelos principais autores portugueses de literatura para crianças (Ilse Losa, Matilde Rosa Araújo, Luísa Dacosta, Luísa Ducla Soares, António Torrado, Alice Vieira, Manuel António Pina, Álvaro Magalhães, José Jorge Letria e muitos outros), além de ter ilustrado livros «para adultos», como Cimo de Vila, de Carlos Tê (2010), ou o livro de poesia A Transparência do Seu Nome (1994), de minha autoria, Manuela Bacelar, viu crescer o seu prestígio, reconhecido em Portugal e no estrangeiro. Foi duplamente galardoada, por exemplo, com o Prémio Calouste Gulbenkian e a Maçã de Ouro da Bienal de Ilustração de Bratislava / 1989 pelo segundo conjunto de imagens para Silka (1.ª ed.: 1984; 1.ª ed. com novas ilustrações, Porto: Afrontamento, 1989), da escritora alemã, de origem judaica, Ilse Losa, uma das suas principais parceiras e amigas. Tratava-se, no caso em apreço, de uma narrativa inspirada numa história tradicional da região báltica, que podia ser lida como parábola sobre a intolerância e também como meditação, cifrada, em torno do destino do povo judeu. Desta obra de desfecho trágico soube Manuela Bacelar traduzir, em singulares ilustrações a óleo, a ambiência angustiante e carregada. Mas, entre outros reconhecimentos públicos obtidos pela autora de Este É o Tobias, registem-se ainda as distinções no âmbito dos Prémios Octogones e Pier Paolo Vergerio, a candidatura portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen / 1994 e o Prémio Nacional de Ilustração do Ministério da Cultura e da Secção Portuguesa do IBBY, em 1996 – este atribuído ao livro A Sereiazinha (Porto: Afrontamento, 1996) de Andersen –, a que vieram somar-se o Prémio António Botto, em 2000, e a selecção para importantes exposições nacionais e internacionais (como as de Bratislava e Sarmede).

De assinalar, por outro lado, que Manuela Bacelar – toda a vida uma artista visual de paixões literárias, ao contrário doutros ilustradores – sempre gostou de iluminar clássicos. E, por isso, lhe devemos livros ilustrados de contos de Charles Perrault, de Hans Christian Andersen, de Carlo Collodi (As Aventuras de Pinóquio, Lisboa: Caminho, 1999), sem falar das belíssimas ilustrações que realizou para os diários de Kafka e que apenas foram publicadas, algumas delas, em formato de postal.

Outro domínio em que a arte de Manuela Bacelar ganhou especial notoriedade foi o dos álbuns destinados a crianças em idade pré-escolar e escolar (1.º ciclo), tendo, neste caso, optado por ilustrações muito diversas das que executara para Silka ou das que é possível admirar em A Sereiazinha e António e o Principezinho (Porto: Ambar, 1993) de José Jorge Letria, dois dos seus trabalhos mais conseguidos. Nos álbuns para os mais pequenos, os contornos ganham visibilidade, o traço é por vezes caricatural e as imagens distanciam-se da pintura, evidenciando também o humor e a graça que distinguem outros trabalhos de uma ilustradora cujo trabalho se caracterizou sempre, também, por gestos artísticos de grande liberdade, com gosto pelo insólito e pela alusão, mais ou menos evidente, a aspectos de cunho autobiográfico e até metatextual (veja-se, a este propósito, Gatos, Lagartos e Outros Poemas (Porto: Trampolim, 2011), de João Pedro Mésseder).

A publicação de tais álbuns surgia num período em que ainda eram raras, em Portugal, as apostas na edição do livro ilustrado para os mais pequenos, contendo uma única narrativa – situação que, pelos finais da década de 90, começaria a conhecer sinais de evolução positiva. Na senda dos trabalhos de Leonor Praça, da dupla Maria Isabel César Anjo / Maria Keil (O Inverno É o Tempo já Velho; A Primavera É o Tempo a Crescer, 1971, etc.), ou do par Luísa Dacosta e Armando Alves em O Elefante Cor de Rosa (1974), e à semelhança ainda do que fizera Maria Keil – em O Pau de Fileira (1976) e Os Presentes (1979) –, Bacelar passa a assinar ilustração e texto, fundando a colecção «Triciclo Voador» e publicando, em 1990, dois títulos – O Meu Avô e O Dinossauro –, aos quais se seguiu um terceiro, quatro anos depois, com texto de Luísa Ducla Soares: Os Ovos Misteriosos. Editados pela Afrontamento, traduzidos para francês, e dois deles premiados, estes livros divertidos e de assinalável qualidade estética e educativa merecem figurar em qualquer bibliografia selectiva portuguesa de obras para uma faixa etária situada entre os 3 e os 7 anos. Acrescente-se que alguns destes livros atingiram um número de edições considerável. Como assinala um texto da BIG, assinado por Jorge Silva, em 2017, Os Ovos Misteriosos conhece a 22.ª edição, e AEIOU, História das Cinco Vogais (Afrontamento), igualmente escrito por Luísa Ducla Soares, alcança a sua 13.ª edição.

Na sua colecção «Tobias» (nove volumes da Porto Editora), Manuela Bacelar ofereceu-nos outros álbuns destinados a crianças pequenas (como Este É o Tobias, 1989, Tobias, os 7 Anões e Etc., 1990, e Tobias às Fatias, 1991), a juntar a obras mais vocacionadas para a faixa dos 6-8 anos (como Tobias Encontra Leonardo, 1991, ou Tobias O que Eu Passei para Chegar Aqui!, 1992), num louvável e pioneiríssimo esforço de renovação do panorama português dos livros ilustrados com pouco texto, em formato de álbum narrativo. Este trabalho prolonga-se na publicação de Era Uma Vez a Bublina e do livro de actividades Bublina e as Cores (Porto: 1996), ambos da Desabrochar e dirigidos a crianças em idade pré-escolar. Em todas estas obras, de cunho mais lúdico, a artista continua a revelar o seu estilo inconfundível, mas também uma conseguida pluralidade de registos gráficos e expressivos, que se alarga ao livro A Nau Mentireta (Porto: 1991), editado pela Civilização e com texto, mais uma vez, de Luísa Ducla Soares.

Aos mais desmemoriados vale a pena recordar o final dos anos oitenta e os inícios da década de noventa do século passado. Com a edição das colecções «Tobias» e «Triciclo voador», diversas vozes se precipitaram a diminuir, de modo injusto, a escrita de alguém que, até essa altura, apenas se afirmara como ilustradora. Na verdade, escapava-lhes o essencial do projecto de Manuela Bacelar, apostada em impulsionar a criação de álbuns para pré-leitores e primeiros leitores, em que se entrosavam uma ilustração e um texto da responsabilidade de uma e a mesma pessoa. Importa não esquecer que a artista se formara na antiga Checoslováquia e, nas décadas de sessenta e setenta (período em que a evolução do álbum conheceu momentos decisivos em alguns países europeus e nos Estados Unidos), convivera com a produção europeia neste campo – o que não era seguramente o caso de alguns dos seus detractores.

No panorama editorial português de finais dos anos oitenta, continuavam a destacar-se, em termos quantitativos, o romance juvenil (principalmente de série), a obra de informação e divul­gação, e sobretudo o livro de contos para crianças em idade escolar, escasseando o álbum para crianças dos quatro aos oito anos – essa tipologia de obra para a infância a que os anglos-saxónicos chamam picture storybook e os francófonos album. Caracterizemo-lo então em poucas palavras: estamos a falar de um livro de capa dura, quase sempre impresso em quadricromia, contendo uma história breve, contada numa estreita correlação entre palavras e imagens (em alguns casos, prescinde-se do texto – mas nunca do peritexto – linguístico). As dificuldades na publicação de álbuns prendiam-se, então, com os elevados custos de produção, os quais tinham repercussões no preço de venda ao público. Uma vez no mercado, o álbum defrontava-se com diversos problemas, o menor dos quais não era a escassa utilização do livro na educação pré-escolar e no 1.º ciclo do Ensino Básico. Outro obstáculo à prolife­ração deste tipo de obras residia na quase inexistên­cia, em Portugal, de autores com a dupla vocação da escrita e da ilustração (situação que, com algumas excepções, perdura). Acrescia que raramente haviam surgido equipas, compostas por um argumentista / escritor e por um ilustrador / designer gráfico, capazes de conceber um produto de nível globalmente sa­tisfatório, em termos de articulação texto / imagem.

Familiarizada com o panorama da edição internacional, capaz de reunir os dois requisitos em causa, é natural que tenha sido a mais experiente das ilustradoras portuguesas uma das primeiras a abalançar-se ao projecto de conceber este tipo de obras.

Centremo-nos, pois, em O Meu Avô e O Dinossauro. Ambos apresentam narrativas simples, no plano diegético, com ilustrações que logram fazer «sonhar o texto» (para usar uma expressão de Georges Jean). Mimetizando uma enunciação de criança (ao estilo «composição escrita» infantil), O Meu Avô descreve o quotidiano de uma relação feliz e divertida entre avô e neto. Abrangendo por vezes duas páginas, as imagens exprimem tal relação por meio de uma esfusiante e apelativa combinação de vermelhos, roxos e verdes, da qual se desprende uma grande sensação de liberdade em termos plásticos. Além disso, a leitura permite à criança reter uma representação não estereotipada da pessoa idosa, apresentada como activa e cúmplice, marcada por visíveis traços de positividade. O companheirismo e o relacionamento afectuoso dos mais pequenos com alguém muito mais velho constituem, pois, imagens de marca deste álbum, cuja actualidade e frescura se mantêm intactas.

Servido por uma história igualmente simples, surrealizante, e adoptando também uma focalização de aparência infantil, O Dinossauro conta como um monte verde, onde se ergue uma aldeia com casas e árvores, era afinal o gigantesco dorso de um dinossauro. Certo dia, o animal acorda de um sono milenar e, metendo pés ao caminho, dá um longo passeio até regressar ao lugar de origem e, de novo, adormecer. O passeio transforma-se numa viagem pelo mundo, que revela, de modo sucinto mas poético, a sua infinita variedade: a diversidade dos lugares e das gentes que os povoam, as diferenças no clima e nas habitações e a passagem do tempo. Existe, por conseguinte, uma vertente formativa que parece valorizar a diversidade cultural e paisagística. Mas a ela sobrepõem-se a poesia das ima­gens e o humor (veja-se por exemplo a referência, em post scriptum, ao facto de as muitas fotografias tiradas pelo professor nunca terem chegado a existir, em virtude de a personagem se ter esquecido de inserir o rolo na câmara). A evolução temporal e dos ambientes é su­gerida pelo jogo gradativo das cores e pelas nuances de tonalidade, o que faz do livro uma pequena festa para o olhar. Ou não fosse este o elemento aglutinador de uma obra em que o discurso linguístico e a sequência das ilustrações mutuamente se complementam: o olhar do narra­dor e dos deslumbrados aldeões em viagem, o do professor­-fotógrafo e, por que não dizê-lo, o do próprio leitor.

Com estes álbuns, Manuela Bacelar dava pois, no início da década de noventa, um impulso decisivo ao álbum português destinado a crianças pequenas e revelava, uma vez mais, a versatilidade do seu talento. Outros álbuns seus, na mesma linha (alguns sem palavras), se seguiram, tais como Sebastião (2004), Bernardino (2005), 24 Horas Antes do Natal (2016), todos editados pela Afrontamento, tal como O Livro do Pedro (2005), primeira obra portuguesa para crianças a abordar, assumidamente, um modelo familiar centrado na relação de uma criança com um casal homossexual.

Sinto-me, em suma, particularmente feliz, por ter sido premiada pela BIG uma velha amiga, e a artista que ilustrou belissimamente livros meus. E não consigo deixar de recordar que sobre a obra marcante de Manuela Bacelar diversos escritos produzi, além de ter arguido, na Universidade de Aveiro, uma tese de doutoramento de Carina Rodrigues, orientada por Ana Margarida Ramos, sobre os seus álbuns destinados aos mais pequenos.


José António Gomes

IEL-C da Escola Superior de Educação do Porto