domingo, 12 de dezembro de 2010

Sonhos de Natal, de António Mota

Selectiva, feita de fidelidades ao vivido mas também de pequenas ou grandes infidelidades, a memória da infância rural de António Mota é de novo convocada para recriar um tempo que não foi ainda o do autor empírico – o período da emigração para o Brasil –, mas o de um narrador ficcionado (Manuel), com perto de "quarenta mais trinta anos" (p. 12)1, ou seja quase da idade de uma figura tutelar da sua própria meninice, o sr. Afonso. Grande desvendador de mundos e de sabores desconhecidos, contador de histórias cativante, o sr. Afonso é a imagem viva de uma infância que se eterniza, o que o leva a alinhar nos jogos das crianças (Manuel, Ana, Joana, Pedro e Ricardo) e a proporcionar-lhes a primeira e deslumbrada visão de um presépio cujas figuras, aos olhos do narrador, ganham de repente vida própria. Estamos, em suma, perante mais um dos muitos velhos – meio sábios, meio loucos, mas sempre dignos – que povoam as histórias de António Mota.

Sonhos de Natal não se limita, contudo, a narrar a deslumbrada descoberta do mundo e dos seus mistérios – a neve e os jogos a ela associados, os mistérios do mundo animal, o sabor dos comeres tradicionais, as meias palavras dos adultos plenas de sentidos ocultos, a magia inquietante do Menino Jesus ou a ansiosa espera pelos presentes de Natal. A narrativa de António Mota é também um discurso sobre a ausência desse pai que Manuel descobre estar emigrado no Brasil. O sentimento incerto que tal ausência provoca é apenas sugerido, de modo difuso, quer nas conversas entre as crianças acerca da figura do Menino Jesus, quer no olhar do narrador que se alonga sobre a imagem da família arquetípica representada no presépio. Não surpreendem, por isso, as suas palavras: "Já não têm conta as vezes que sonhei acordado. E muitos sonhos compartilhei com os meus amigos. Mas nada foi tão especial como aquele dia que calhou a vinte e quatro de Dezembro desse ano que agora relembro." (p. 46)

O sonho maior é, pois, aquele que acaba por se concretizar: o regresso inesperado do pai, justamente na véspera de Natal. A dimensão afectiva deste sonho tornado realidade ganha especial relevo pelo facto de à figura paterna ficar associada a dádiva dos presentes, alguns deles durante tanto tempo desejados: um livro de capa dura para escrever histórias, uma caneta de tinta permanente, um par de meias, um tambor e uma gravata vermelha como símbolo do sucesso social. Presentes que não valem apenas por aquilo que são, mas sobretudo por aquilo que representam e simbolicamente antecipam: o escritor que Manuel virá a ser, um destino determinado pelo próprio, mas também pelo pai.

Evocação comovida e comovente da figura paterna e da magia do Natal, vista pelos olhos de uma criança na idade de todos os deslumbramentos, e num tempo em que ainda não havia "televisão, vídeo e jogos de computador" (p. 25), o texto de António Mota utiliza um registo realista (mas não neo-realista), evidenciando aquilo a que Luís Miguel Queirós, a propósito de outra obra do autor, chamou "a capacidade de nos levar até ao último capítulo narrando apenas coisas verosímeis, descritas num estilo chão e directo" (Público, 6/10/1991).

Utilizando o lápis-de-cor, o discurso visual de Manuela Bronze (que ilustra a 1.ª edição, da Desabrochar) não se limita a uma relação pleonástica com a palavra. Procura, sim, dar forma aos implícitos do texto verbal, criando uma atmosfera poética, concedendo uma atenção intencional ao pormenor e realçando alguns elementos de fantasia que o texto apenas deixava adivinhar. Através da imagem, procurou-se também restituir um tempo e um espaço sinalizados pela presença viva de algumas tradições da vida rural nortenha.

Conjugando texto e ilustrações, segmentando, por vezes, estas últimas e isolando esses segmentos na página para enfatizar certos elementos, para melhor pontuar a narrativa ou ainda para realçar o conteúdo principal de cada capítulo, o arranjo gráfico de Acácio Carvalho e de Jorge Carvalho, na 1.ª edição da obra, transformou Sonhos de Natal num livro atractivo que apetece folhear e ler.

A 2.ª edição, datada de 2003, tem imagens de Júlio Vanzeler, que recorre à ilustração digital, obtendo também um produto final de elevada qualidade artística.

Nota

1 As citações são feitas a partir da 1.ª edição de Sonhos de Natal.

Ficha técnica

Autor do texto – António Mota

Ilustrador/a – Manuela Bronze (1.ª ed.); Júlio Vanzeler (2.ª ed.)

Local – Porto (1.ª ed.); Vila Nova de Gaia (2.ª ed.)

Editora – Desabrochar (1.ª ed.); Gailivro (2.ª ed.)

Data – 1997 (1.ª ed.); 2003 (2.ª ed.)

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)