domingo, 13 de dezembro de 2009

Duas notas sobre o Natal em Sophia

A Noite de Natal (1960), de Sophia de Mello Breyner Andresen (nas edições mais recentes, com ilustrações a aguarela de Júlio Resende), oferece-nos uma renovada imagem do maravilhoso cristão (e do ideal que o inspira), plena de significado social e individual. Várias das personagens infantis de Sophia apresentam-se, é certo, como crianças sem dificuldades materiais. Mas, além da solidão e de uma certa orfandade afectiva que por vezes as caracteriza, e que são também atributos da protagonista de A Noite de Natal, surge, neste conto para crianças, a orfandade social de Manuel, como uma reencarnação de Cristo, imagem que, no final, vem conferir sentido aos valores da amizade, da partilha, da parcimónia e da busca de uma união entre humano e sagrado.

Obra de síntese, por seu lado, afirmando a vitória da inteireza moral e da abnegação sobre a vertigem e as forças da perversão, mais longa e complexa que os restantes livros infantis da autora, a narrativa O Cavaleiro da Dinamarca (1964) ilustra a grande viagem iniciática e probatória que – colocando o protagonista ante uma sucessão de figuras humanas, eventos e lugares míticos – tudo revela a esse cavaleiro impoluto: o perigo e as tentações, o valor da família, os exemplos de heroísmo, a paixão e a arte. Para não falar da tensão (não inteiramente resolvida) entre uma visão teocêntrica – que tem na glorificação do Natal o seu elemento de maior alcance simbólico – e um novo olhar antropocêntrico que emerge do Renascimento. Uma tensão, acrescente-se, que abre caminho para uma das zonas de interpretação mais estimulantes da obra. Pelo meio, é possível revisitar a Dinamarca, a Terra Santa, as cidades italianas do norte e a Flandres. Sente-se o fascínio pelo esplendor humanista (a acção desenrola-se no século XV) e pela grande aventura dos «descobridores» portugueses, no que é apresentado como «um tempo novo» para a Europa e o mundo, sem contudo se ignorarem as tensões decorrentes do (des)encontro de culturas e até de etnias – e, por isso, O Cavaleiro da Dinamarca é uma das primeiras narrativas portuguesas para crianças a colocar a questão da necessidade do diálogo intercultural. Tudo plasmado num encadeamento de narrativas modelizadoras encaixadas na história principal: a história de Vanina (quase uma versão de Romeu e Julieta, de final não deceptivo), as vidas de Giotto, de Dante, e as aventuras de um marinheiro flamengo e de um português, Pero Dias. Deste modo, a obra representa também uma apaixonada homenagem, quase sempre implícita, às narrativas da grande tradição cultural do Ocidente: a Bíblia, a Divina Comédia, o Deccameron, os livros de viagens, as crónicas navais...

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)