domingo, 28 de junho de 2009

As Cores dos Animais, de Michael Rosen e John Clementson

No prefácio à sua antologia de Os Melhores Contos Populares de Portugal (Rio de Janeiro, 1944), Luís da Câmara Cascudo define os «contos etiológicos» como histórias que «explicam a peculiaridade morfológica de um animal, a forma de uma árvore, o aspecto de um monte».

Lembrar-se-á o leitor mais atento de uma deliciosa colectânea de Contos do Tio Porquê, de origem africana, publicada, em 1978, pelas Edições 70? O que o livro As Cores dos Animais, de Michael Rosen (um dos mais populares poetas e autores de narrativas para crianças do Reino Unido), propõe é, justamente, uma série de nove contos etiológicos, muitos dos quais nos trazem à memória as histórias do tio Porquê. Aqui, porém, surge mais nítida a vinculação de tais narrativas a mitos ancestrais de várias regiões do mundo, explicando-se, de modo fantasioso, as razões da coloração que determinados animais apresentam.

Tomemos o sexto conto como exemplo. Aí se narram as desventuras do leopardo, que é vítima da sua arrogância perante o leão. Este envolve-se em combate com aquele arrancando-lhe bocados. Antes de ser morto pelo leão, o leopardo foge, «até que encontra um charco de lama fresca. Com as patas apanha bocados de lama e (...) mete-os nos buracos que o Leão lhe fizera (...) até não haver quaisquer vestígios. (...) Tudo ficou bem com o Leopardo, mas agora a sua pele está malhada para sempre» (p. 32).

No livro, é possível encontrar breves contos do mesmo tipo, originários de várias regiões, acerca do coiote (Estados Unidos), dos peixes voadores (Nova Guiné), da rã (Itália), do tigre (China), da brolga (Austrália), do leopardo (Libéria), do pavão (Índia), do grou (Uganda) e do jaguar, do puma e da cobra (Bolívia e Paraguai). Um útil apêndice final informa sobre as raízes míticas e históricas destes contos, cujas fontes bibliográficas são, por sua vez, referenciadas no início da obra.

Recolhidas a partir dessas fontes (essencialmente colectâneas de narrativas da tradição oral), as histórias foram recontadas pelo escritor inglês Michael Rosen e bem ilustradas por John Clementson. O arranjo gráfico é excelente e integra, de modo feliz, título, texto e ilustração.

A tradução merece, contudo, reparos, considerando a pobreza estilística de certos segmentos do texto português. Acresce que a revisão do mesmo denota, igualmente, alguma desatenção. É pena, já que um livro tão interessante, tanto pelo texto como pela ilustração, reclamava, neste aspecto, um cuidado especial.

Ficha bibliográfica

As Cores dos Animais (How the animals got their colours)

Michael Rosen (texto); John Clementson (ilustração)

Lisboa: Editorial Notícias, 1992 (sem indicação de tradutor)

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 21 de junho de 2009

O Sonhador, de Ian McEwan e Anthony Browne

O hiper-realismo fantástico de Anthony Browne, cujas imagens ambíguas nos situam quase sempre em cenários inquietantes, parece constituir o estilo de ilustração ideal para a narrativa de Ian McEwan, também ela percorrida pela consciência de uma impossibilidade: a existência de uma fronteira estável entre realidade e sonho. Bastaria ter sido esta a primeira vez que surgiram editadas, em Portugal, imagens do celebrado ilustrador inglês (prémio Hans Christian Andersen há alguns anos) para que O Sonhador (Lisboa: Gradiva, 1995; reed. 2007) merecesse destaque.

Impondo-se, no entanto, pelos seus méritos próprios, o texto revela uma história, ou antes, um conjunto de histórias vividas pela mesma personagem, cujo público não se esgota na faixa dos pré-adolescentes, para a qual, inicialmente, parece ter sido escrita. O que explica que, em França e na Itália, o livro de McEwan tenha sido editado em colecções não juvenis, constituindo porventura um exemplo daquilo a que Sandra Lee Beckett chama «crossover fiction».

Traduzida para português por Maria do Carmo Figueira, a obra afirma-se, justamente, pelo modo como consegue analisar, com notável minúcia adulta, o imaginário de Peter Fortune (um afortunado rapaz de dez anos, senhor de uma inteligência e de uma inventiva invulgares), bem como o seu modo peculiar de, através de uma vivência física e afectiva, descobrir e de (se) identificar (n)o mundo e (n)os seres que o povoam: o gato, a família, um colega de escola, um primo de poucos meses, os adultos que integram o círculo de relações dos pais e mesmo uma futura namorada.

Peter é um daydreamer (título original do livro): «na escola (...) deixava muitas vezes o corpo sentado na cadeira enquanto o espírito partia em viagem; e, em casa, o facto de sonhar acordado causava-lhe frequentemente problemas.» (p. 10 da 1.ª ed. portuguesa). Como todos os sonhos, os de Peter não são gratuitos, pois ajudam-no a compreender o real e o seu próprio lugar no mundo. A realidade, porém, é geradora de insegurança e, por vezes, difícil, penosa. E «sonhá-la» tem menos a ver com a sensação de omnipotência do sujeito que, dando livre curso aos seus devaneios, constrói um universo à medida dos seus desejos – interpretação a que uma primeira leitura de um capítulo dedicado à derrota do «rufião» da escola, a páginas 55-65, nos poderia conduzir. A questão prende-se, antes, com a possibilidade de Peter observar e viver o real com um olhar novo, ou seja, de o ver e de o integrar nos seus múltiplos matizes.

Os sonhos obrigam, pois, o herói a descentrar-se de si mesmo para conhecer o outro, assim se socializando, aprofundando a sua visão do mundo e, deste modo, alargando o seu campo de consciência. Leiam-se, a este propósito, os notáveis capítulos sobre o gato e o primo. No primeiro caso, Peter troca de corpo e de vida com o animal, selando definitivamente uma relação afectiva que o vai preparar para enfrentar a morte do companheiro de sempre; no segundo, regressa à condição de bebé, experimentando as sensações dos primeiros meses de vida e aprendendo, desse modo, a conviver com uma criança cujo comportamento inicialmente o perturbava. Estas vivências são descritas com singular intuição e, no segundo capítulo referido, com um sentido de humor contido, mas irrecusável.

«O meu objectivo é falar de corpos que se transformaram em formas de outro tipo» – escreve Ovídio no livro I das Metamorfoses. Partindo deste paratexto, McEwan constrói um extraordinário texto sobre a importância de viver o corpo, nomeadamente o nosso no outro e o do outro através do nosso, como metáfora de um processo dialéctico: o do crescimento social, afectivo e ético.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)