domingo, 13 de dezembro de 2009

Duas notas sobre o Natal em Sophia

A Noite de Natal (1960), de Sophia de Mello Breyner Andresen (nas edições mais recentes, com ilustrações a aguarela de Júlio Resende), oferece-nos uma renovada imagem do maravilhoso cristão (e do ideal que o inspira), plena de significado social e individual. Várias das personagens infantis de Sophia apresentam-se, é certo, como crianças sem dificuldades materiais. Mas, além da solidão e de uma certa orfandade afectiva que por vezes as caracteriza, e que são também atributos da protagonista de A Noite de Natal, surge, neste conto para crianças, a orfandade social de Manuel, como uma reencarnação de Cristo, imagem que, no final, vem conferir sentido aos valores da amizade, da partilha, da parcimónia e da busca de uma união entre humano e sagrado.

Obra de síntese, por seu lado, afirmando a vitória da inteireza moral e da abnegação sobre a vertigem e as forças da perversão, mais longa e complexa que os restantes livros infantis da autora, a narrativa O Cavaleiro da Dinamarca (1964) ilustra a grande viagem iniciática e probatória que – colocando o protagonista ante uma sucessão de figuras humanas, eventos e lugares míticos – tudo revela a esse cavaleiro impoluto: o perigo e as tentações, o valor da família, os exemplos de heroísmo, a paixão e a arte. Para não falar da tensão (não inteiramente resolvida) entre uma visão teocêntrica – que tem na glorificação do Natal o seu elemento de maior alcance simbólico – e um novo olhar antropocêntrico que emerge do Renascimento. Uma tensão, acrescente-se, que abre caminho para uma das zonas de interpretação mais estimulantes da obra. Pelo meio, é possível revisitar a Dinamarca, a Terra Santa, as cidades italianas do norte e a Flandres. Sente-se o fascínio pelo esplendor humanista (a acção desenrola-se no século XV) e pela grande aventura dos «descobridores» portugueses, no que é apresentado como «um tempo novo» para a Europa e o mundo, sem contudo se ignorarem as tensões decorrentes do (des)encontro de culturas e até de etnias – e, por isso, O Cavaleiro da Dinamarca é uma das primeiras narrativas portuguesas para crianças a colocar a questão da necessidade do diálogo intercultural. Tudo plasmado num encadeamento de narrativas modelizadoras encaixadas na história principal: a história de Vanina (quase uma versão de Romeu e Julieta, de final não deceptivo), as vidas de Giotto, de Dante, e as aventuras de um marinheiro flamengo e de um português, Pero Dias. Deste modo, a obra representa também uma apaixonada homenagem, quase sempre implícita, às narrativas da grande tradição cultural do Ocidente: a Bíblia, a Divina Comédia, o Deccameron, os livros de viagens, as crónicas navais...

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

sábado, 21 de novembro de 2009

Alice Vieira – 30 anos de livros e leituras (1979-2009)

Alice Vieira está a celebrar 30 anos de actividade literária. Neste longo percurso, iniciado em 1979 com a publicação de Rosa, minha irmã Rosa, obra distinguida com o Prémio de Literatura Infantil Ano Internacional da Criança, tem particular relevo a produção da autora dirigida preferencialmente ao universo infantil e juvenil, ainda que também tenha publicado obras para adultos.

Objecto de vários prémios, em Portugal e no estrangeiro (o mais recente, a Estrela de Prata do Prémio Peter Pan, acaba de ser atribuído à edição sueca de Flor de Mel), incluindo, em 1994, o Grande Prémio Gulbenkian, pelo conjunto da sua obra, a autora foi mesmo finalista, em 1998, do Prémio Hans Christian Andersen para o qual foi nomeada duas vezes.

A sua produção reparte-se por diferentes géneros, dos quais se destaca a reescrita da tradição oral, em especial de contos populares – leiam-se os volumes da colecção “Histórias Tradicionais Portuguesas” (Caminho), mas também os textos insertos em Eu bem vi nascer o sol (1994), onde a autora agrupa um conjunto significativo de produções do património oral, desde as lengalengas aos trava-línguas, incluindo textos do romanceiro, cantigas populares e rimas infantis muito variadas; a edição de contos literários (colecção “Livros com Cheiro”; 2 Histórias de Natal (2002) e Contos e Lendas de Macau (2002)); e de teatro, com o livro Leandro, Rei da Helíria (1991), obra que se aproxima do texto shakespeareano King Lear, construída com base no conto tradicional A Comida sem Sal, que lhe serve de intertexto. No âmbito da poesia, para além da edição da antologia poética O meu primeiro álbum de poesia (2008), a autora deu à estampa A Charada da Bicharada (2008), obra que integra um conjunto de poemas-adivinhas, subordinados à temática animal. Neste especial bestiário poético, a dimensão lúdica dilui-se subtilmente no lirismo das composições poéticas, onde, através do olhar e da voz do sujeito poético, às vezes identificado com o próprio animal, é proposta uma revisitação particular, muitas vezes metafórica e simbólica, das várias espécies.

Contudo, é no âmbito da narrativa juvenil, incluindo novelas e romances, que Alice Vieira se assume como particularmente inovadora, constituindo uma referência incontornável no nosso país. Iniciada com a edição de um tríptico composto pelas narrativas Rosa, Minha Irmã Rosa (1979), Lote 12, 2º Frente (1980) e Chocolate à Chuva (1982), percorridas por uma certa unidade de concepção, a produção literária da autora é percorrida por um conjunto de eixos cuja assiduidade assegura a sua coesão ideotemática, configuradores de um macro-texto singular. Estruturadas em torno de problemáticas relevantes, reiteradamente perspectivadas a partir focalizações internas, capazes de recriar os dilemas existenciais de personagens adolescentes e os seus processos de crescimento, as narrativas e os conflitos que as enformam nunca são lineares ou apresentam unívocas possibilidades de leitura. O universo feminino, alvo de especial atenção, é recriado nas suas múltiplas e complexas dimensões. Diferentes gerações de mulheres, pertencendo a estratos sociais também diversificados, integram uma polifacetada galeria ficcional que acompanha a evolução da sociedade portuguesa nas últimas décadas, dando conta, simultaneamente, dos seus elementos estruturantes, assim como das suas tensões e fracturas, problematizando estereótipos e comportamentos tipificados, em obras como Águas de Verão (1985), Às Dez a Porta Fecha (1988), Úrsula, a Maior (1988), Caderno de Agosto (1995), Se Perguntarem por Mim Digam que Voei (1997) ou Um Fio de Fumo nos Confins do Mar (1999). Apesar de fortemente ancoradas no universo juvenil, a partir do qual são narradas, as intrigas não passam ao lado de um conjunto muito abrangente de preocupações de outros grupos etários, dando voz a outras personagens, recriando diálogos geracionais particularmente ricos e afectivamente produtivos. Situações traumáticas, como a perda, a negligência ou abandono afectivos, são alvo de tratamento frequente, permitindo a problematização de experiências e emoções. Leiam-se, nesta linha, textos como Paulina ao Piano (1985), Flor de Mel (1986), Os Olhos de Ana Marta (1990) e, mais recentemente, O Casamento da minha Mãe (2005).

Estruturas afectivas e sociais, como a família, são submetidas a intensos processos de análise e questionamento, revelando as suas falhas e forças. A questão da identidade, tanto em termos individuais como nacionais ou culturais, incluindo a relação com o passado e com a História, é outra das linhas de força da produção narrativa de Alice Vieira. Esta última questão, particularmente relevante, alvo de tratamento romanesco no díptico composto pelas obras A Espada do Rei Afonso (1981) e Este Rei que Eu Escolhi (1983), volta a surgir com particular relevância em Promontório da Lua: histórias (1991). Seguindo as tendências contemporâneas da moderna metaficção historiográfica (ver Linda Hutcheon (1988) ou Elisabeth Wesseling (1991)), é proposta uma perspectiva alternativa em relação ao discurso historiográfico oficial, dando voz a outros intervenientes. Esta tendência para questionar a escrita da História serve igualmente de mote a Vinte e Cinco a Sete Vozes (1999), onde sete personagens, de diferentes gerações, dão conta das suas perspectivas particulares sobre o 25 de Abril de 1974, submetendo-o ao seu crivo pessoal e subjectivo, forma de apropriação íntima da própria História.

Do ponto de vista da organização narrativa, sublinhe-se o recurso a estruturas romanescas particularmente complexas, como acontece com o cruzamento de diversos fios narrativos, com o recurso ao monólogo interior ou ao discurso indirecto livre e, sobretudo, com a introdução de níveis diegéticos distintos através da técnica de encaixe. O tempo, alvo de várias manipulações, é também um elemento determinante para a construção de uma estrutura narrativa que foge a modelos lineares e sequenciais. Recorrendo a um estilo e uma linguagem muito pessoais, Alice Vieira cria um registo único, capaz de cruzar momentos de grande humor, em resultado da combinação de vários tipos de cómico que explora com singular mestria, com outros de forte tonalidade lírica e intensidade dramática e emocional. A vivacidade dos diálogos e a fluidez das descrições resultam, em grande medida, da forma como a autora explora todas as potencialidades da língua, criando expressivos jogos de palavras, tanto em termos sonoros, como morfológicos e sintácticos. O recurso assíduo à enumeração e à anáfora, a criação de paralelismos estruturais e a exploração das potencialidades simbólicas da adjectivação são responsáveis pela criação de um discurso simultaneamente acessível e cativante, também do ponto de vista rítmico e melódico.

Em conclusão, saliente-se, pois, o relevo de Alice Vieira no panorama literário e editorial português, autora de dezenas de obras cuja leitura não cabe, naturalmente, nos limites deste texto. Alvo de várias investigações de teor académico, em Portugal e no estrangeiro, para além dos estudos mais pontuais de Natércia Rocha, Álvaro Salema, Maria Lúcia Lepecki, José António Gomes, Natividades Pires, Isabel Vila-Maior, e outros, as suas novelas e romances juvenis determinam e ilustram uma mudança do paradigma literário, por altura do final dos anos 70, no que respeita à escrita para crianças e jovens, valorizando uma certa introspecção e complexidade temática e diegética em detrimento da tendência da narrativa de aventuras de estrutura mais ou menos codificada.

Ana Margarida Ramos (2009): «Alice Vieira – Trinta anos de livros e

leituras», JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1015,

26 de Agosto a 8 de Setembro, p. 12

sábado, 7 de novembro de 2009

Já saiu o número 18 da revista Malasartes

Destaques:

Violeta Figueiredo | Xosé Cobas | Álvaro Magalhães | colecção “Fora de Xogo”.

E ainda:

Bernardo Carvalho | Fina Casalderrey | Banda Desenhada | Maria Keil e Isabel César Anjo | Paula Carballeira | Agustín Fernández Paz | David Machado e muito mais.

sábado, 3 de outubro de 2009

Malasartes 18: quase a sair

A atenção de Malasartes está longe de se cingir ao eixo Galiza-Portugal e, por isso, na revista, colaboram articulistas do Brasil, poderão vir a colaborar autores de outras latitudes, além do que as matérias publicadas incidem, não raro, em obras estrangeiras, traduzidas ou não (neste número prestes a sair, inauguram-se, por exemplo, as abordagens à banda desenhada de recepção juvenil e adulta com um ensaio de Miguel Ramalhete Gomes). Contudo, o eixo mencionado começa a funcionar a níveis mais profundos. Pela primeira vez, é possível ler, no número 18, uma parelha autoral luso-galaica: Ana Margarida Ramos e Marta Neira Rodríguez propõem-nos uma leitura da obra da galega Paula Carballeira, contadora bem conhecida em Portugal e já com vários títulos traduzidos para a língua portuguesa. Ana Vasconcelos, por seu turno, escreve sobre o escritor galego Agustín Fernández Paz (que, uma vez mais, merece destaque na revista, em dois artigos) e confronta uma das suas obras com o primeiro livro do português David Machado.

Dir-se-á, no entanto, que uma temática de grande actualidade atravessa este novo número – questão, diga-se de passagem, para a qual os mediadores da leitura não se encontram ainda suficientemente sensibilizados. Referimo-nos à análise da ilustração e, consequentemente, ao problema do desenvolvimento da literacia visual, tão necessário como o desenvolvimento da literacia verbal e como a própria educação literária. Razões mais do que suficientes para a leitura de um trabalho centrado num picture story book só com imagens, de Bernardo Carvalho (importante ilustrador português da actualidade), estudo esse elaborado por outra jovem ilustradora e estudiosa da ilustração: Gabriela Sotto Mayor. A questão da leitura da imagem está, no entanto, presente noutros artigos, como o que Sara Reis da Silva e Miriam Reis dedicam a um conjunto de obras infantis de referência, da autoria de Maria Keil e Maria Isabel César Anjo, ou como a recensão crítica de um recente livro de Xosé Ballesteros e Juan Vidaurre que nos é proposta por José Maria Mesías Lema.

Também um dos perfis é desta vez dedicado a um dos mais relevantes ilustradores galegos dos dias de hoje, Xosé Cobas. O outro dá a conhecer, um pouco melhor, a escrita e a personalidade da portuguesa Violeta Figueiredo, cujos livros se destacam pela sua singularidade, por um estilo muito pessoal e por uma notável criatividade linguística a que não falta o sentido da comunicabilidade com os seus destinatários preferenciais, os mais jovens.

Nas secções Estudos (com um artigo sobre Álvaro Magalhães), Referências (em que se destaca a importante colecção juvenil galega «Fóra de Xogo») e Práticas, encontrarão os leitores outras matérias de interesse a que se juntam as habituais recensões críticas de obras publicadas em português e em língua galega.

Motivos de sobra, pensamos, para uma leitura proveitosa por parte dos mediadores da leitura e dos estudiosos e investigadores, ou seja, o público preferencial de Malasartes.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 13 de setembro de 2009

Poesia e humor sob a forma de conselhos de animais: “Dança quando chegares ao fim”, de Richard Zimler e Bernardo Carvalho

Livro de estreia de Richard Zimler, reconhecido e premiado romancista, no âmbito da literatura de potencial recepção infantil, Dança Quando Chegares ao Fim distingue-se pela eficácia comunicativa que o caracteriza, resultado de uma estreita cumplicidade estabelecida entre o texto do autor de origem norte-americana, já naturalizado português, e as imagens de Bernardo Carvalho.

O grande público, que se habituou a seguir a saga da família Zarco, desde O Último Cabalista de Lisboa (1999), passando por Meia-Noite ou O Princípio do Mundo (2003), Goa ou O Guardião da Aurora (2005) até, mais recentemente chegar ao volume A Sétima Porta (2007), ou a navegar hesitante, entre a realidade e a ficção em À Procura de Sana (2006), pode surpreender-se com esta incursão num universo tradicionalmente tido como menor ou mesmo marginal. E, contudo, o autor não só se revela extremamente hábil na mudança de registo como exprime, pela forma como manuseia a língua portuguesa e brinca com as suas sonoridades e sentidos, o encanto da descoberta da ludicidade das rimas em português, numa espécie de viagem tardia – talvez mesmo apócrifa – às memórias de infância.

Podendo incluir-se no âmbito do álbum, mesmo estando ausente a estruturação típica da narrativa, esta publicação reúne um conjunto de quase três dezenas de conselhos que, com recurso à rima e a uma estrutura próxima da poética, junta animais e humanos, apresentando os primeiros como conselheiros dos segundos. O subtítulo do livro – «bons conselhos de amigos animais» – esclarece acerca da autoria dos pareceres, ao mesmo tempo que colabora na identificação do género da obra.

Combinando a herança dos bestiários medievais com a da literatura sapiencial, patente nos livros de conselhos, contemporâneos dos primeiros, este volume que agora vem a lume funciona como uma espécie de paródia subversiva daqueles géneros literários, caracterizados pelo didactismo do seu discurso.

A presença do humor, em resultado dos jogos de linguagem, e também as associações imprevistas de animais, atenuam o carácter aparentemente moralista que define este género, identificado desde o subtítulo, sem deixarem de promover a reflexão pela mensagem que encerram. A construção do texto, seguindo a sequência de conselhos e a identificação dos respectivos autores, cria um ritmo particular, acentuado pela rima e pelos paralelismos sonoros e sintácticos. Caracterizado por uma certa hibridez genológica para a qual contribuem a combinação de características da poesia, como os efeitos sonoros e melódicos que o texto explora, como é o caso do ritmo binário que resulta da apresentação do texto em dísticos, com outras acentuadamente narrativas, permitindo identificar personagens, acções e até ambientes, o texto parece recuperar uma rotina particular e uma forma de organização do tempo – o dia-a-dia infantil –, sobretudo no final do livro, os momentos associados ao fim do dia, à noite e aos preparativos para o sono. Promovendo o reconto, possivelmente a leitura em família, o álbum associa-se a uma espécie de ritual que antecede o sono e os sonhos.

Implicitamente, a mensagem do livro aponta também no sentido de entender os animais (e a Natureza) como conselheiros e professores/educadores dos humanos, sugerindo que os primeiros vivem num estádio de perfeição e de desenvolvimento superior em relação aos segundos. Aconselhando, entre outras qualidades, prudência, ponderação, calma, curiosidade e espírito crítico, esperança e alegria, perseverança, reflexão, solidariedade e altruísmo, verdade, fidelidade aos sonhos e ideais, calma e tranquilidade, os animais seleccionados parecem oferecer a receita para uma vida feliz e descomprometida (mas intensamente vivida), capaz de conduzir a «sonhos tranquilos e felizes», como aconselham as sábias perdizes.

Particularmente diversificado e rico, o vasto bestiário aqui recriado inclui espécies conhecidas e próximas, facilmente identificáveis pelos leitores mais pequenos, a par de outras mais exóticas e mais estranhas, apelando à curiosidade e ao espírito de descoberta do público preferencial – mas não exclusivo – a que se destina. No primeiro grupo, incluem-se, entre outras, a leoa e o leão, o cão e a cadela, o lagarto, o ratinho e o gato, o ganso e a gansa ou os elefantes, enquanto, no segundo, podem contar-se o lama e o papa-figo, o pangolim e o guaxinim, o furão e o bico-agulha, ou as hienas e os chacais. Individualmente ou em pares, formando um casal da mesma espécie ou juntando rivais, os vários animais convocados desfilam pelas páginas como se se dirigissem a uma original Arca de Noé, também ela destinada a redimir os homens pelo conselho e pelo exemplo, devolvendo-os a uma espécie de paraíso perdido.

A assiduidade da temática animal no universo da literatura de potencial recepção infantil permite entendê-la como um eixo ideotemático semanticamente produtivo pelo reconhecimento imediato que permite e por todas as potencialidades simbólicas e imagéticas que evoca. Combinando e cruzando diferentes heranças – literárias, linguísticas, culturais e simbólicas – o autor reinventa a tradição, brincando com as palavras, promovendo associações invulgares e inusitadas, próximas do universo nonsensical.

As ilustrações de Bernardo Carvalho, como é seu hábito, acrescentam elementos significantes ao texto, dialogando com ele e completando-o. Com recurso a uma técnica simples e altamente eficaz, o ilustrador não só sugere os elementos centrais da narrativa, nomeadamente as personagens humanas e animais, como conota expressivamente as imagens, transmitindo emoções e sublinhando a vertente humorística do texto. No estilo que o caracteriza, o criador explora os jogos com as formas, os volumes e as cores potenciando impressões de movimento e de dinamismo que caracterizam as ilustrações, também em resultado de uma certa sugestão de traço ágil, vigoroso e quase espontâneo, como as pequenas manchas coloridas parecem revelar. A expressividade que delas sobressai é sublinhada pelos contrastes e variações cromáticas, com especial ênfase para a valorização das tonalidades mais escuras e pelo grande impacto resultante do recurso ao sinal contorno que assegura, em alguns casos, a separação das personagens do fundo colorido. Caracterizadas pela máxima eficiência que resulta do uso de um mínimo de recursos, as imagens, muito contidas, quase sempre de página simples, com uma outra ou outra excepção que permite que se estendam à dupla página, revelam, ainda, influências dos movimentos modernistas, como fica patente nas guardas, sobrepondo elementos e jogando com perspectivas, transparências e opacidades. Assegurando a coesão do livro e a articulação dos vários segmentos textuais, nomeadamente pela representação de uma mesma figura humana (ou várias com afinidades físicas entre si, vejam-se as riscas identificativas da camisola) em diferentes situações, posições e interacções, as imagens sugerem uma certa narratividade, completando e complementando um texto assumidamente contido e plurissignificativo. Ao nível do projecto gráfico, também da responsabilidade do ilustrador, destaque-se a opção por um papel mate de elevada gramagem capaz de fixar as cores e de apelar ao manuseio.

Combinando cuidado estético – artístico e literário – com ludicidade, da qual não está ausente uma dimensão formativa, a construção deste álbum assenta na exploração dos efeitos cómicos das associações sonoras e semânticas. Tendo, como elemento coesivo, o universo animal, inova ao propor que sejam aquelas espécies a aconselhar as crianças e, em última instância, os Homens, enumerando princípios básicos de comportamento e de actuação. Sabiamente matizada, sobretudo pelos jogos linguísticos e pelo humor, a componente moralizante dilui-se num volume que traz, para o panorama literário português, ecos das associações nonsensicais que caracterizam a literatura tradicional infantil anglo-saxónica, conciliando, num mesmo livro, influências e tradições literárias distintas.

Ana Margarida Ramos

Universidade de Aveiro; membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 30 de agosto de 2009

“O Zbiriguidófilo e Outras Histórias” ou um trampolim oferecido ao espírito de quem escuta

“Les mots, les images ne s’offrent que comme trem­plins à l’esprit de celui qui écoute.

André Breton, Manifeste du Surréalisme

O entendimento da literatura para crianças como arte que revela e desnuda o homem nas diferentes fases da sua vida, e não apenas num primeiro estádio vital, a infância, através da presença do cómico, do humor e do não sentido, é o que encontramos no livro O Zibiriguidófilo e Outras Histórias, escrito por Pitum Keil do Amaral e ilustrado por Luísa Brandão (Edições ASA, 1991). Uma obra que nos propomos aqui recordar pela sua singularidade.

O livro é composto por cinco contos: “O Senhor que Lia o Jornal” (pp. 3-6), “O Zbiri­gui­dó­filo” (pp. 7-11), “O Menino e o Touro” (pp. 12-20), “Uma História de Pinguins” (pp.21-24) e “Uma História de Pira­tas...” (pp. 25-28). O título do macrotexto é dado pela segunda história, “O Zbiriguidófilo”, inaugurando a entrada do leitor em narrativas inscritas no mundo do “faz-de-conta” e, algumas vezes, às avessas, um mundo construído ao contrário, invertido e renovador de estruturas e valores narrativos instituídos. É também por isso que se inicia a leitura por aquela que será a primeira história das “outras histórias” e não por aquela que empresta o seu título à colectânea.

A inversão e o riso, tão presentes na infância, são também duas das categorias que marcam a obra. A primeira inversão dá-se na história que abre o livro, e logo a começar pelo seu título, “O Homem que Lia o Jornal”, indicando-nos, à partida, e se seguirmos as indicações dadas e definidas pela tipologia dos títulos, que a personagem principal será esse “Homem”.

Assim, “O Homem que Lia o Jornal” recria a situação, comum nas sociedades modernas, da falta de disponibilidade dos pais em relação aos filhos. Num mundo assustadoramente empreendedor, o pai desta “criança”, depois de um dia de trabalho, tudo o que deseja é chegar a casa, sentar-se e poder ler tranquilamente o jornal. No entanto, essa tranquilidade não é conseguida, pois “O senhor tinha um filho que era pequenino” (p. 3) e, persistentemente, pedia ao pai que “lhe contasse uma história” (p. 3), iniciando-se assim o drama familiar: “Ó Ilda – chamava o pai –, leva daqui esta criança, que eu não consigo ler o jornal” (p.4). Como o adulto, apesar das súplicas, não atendia ao seu pedido, a “criança” resolveu destruir o objecto da atenção do pai transformando o jornal, de uma das vezes, num chapéu, de outra vez num avião, o que enervou seriamente o pai e o levou a ir para a rua ler o jornal, longe do filho. Tão absorto estava na leitura que “(...) uma vez, ele vinha a andar, assim... e vinha um candeeiro em sentido contrário, assim... E... BOOING!” (p. 5). Da “porção de luzes a acender e a apagar” (p.5) que viu, uma iluminou-o: percebeu então que devia fazer um esforço por dar atenção ao filho e “Ficou então combinado que o pai contava todos os dias uma história ao filho, antes de ler o jornal” (p. 5). O senhor só conhecia as histórias que lia na secção desportiva do jornal, e era essas que recontava, e “o menino ouvia tudo com a maior atenção” (p. 6), e até ajudava a acabar as histórias gritando “– Go­oooo­ooooo­ooooo­olo!)” (p. 6). A mãe, Ilda, comovida com a cena familiar, “ficava também tão contente que até limpava uma lágrima de alegria no pano da loiça (o que é uma porcaria, mas enfim, uma vez por outra, não tem problema...)” (p. 6).

Tomando como exemplo esta pequena narrativa, podemos facilmente perceber que a moralidade se dirige mais aos adultos do que às crianças. Neste caso, o adulto que lê a história à criança poderá rever-se na pequena narrati­va. No plano da linguagem, encontramos um certo coloquialismo na narração e sobretudo em algumas expressões, o que estimula uma maior proximidade e participação, por parte da criança, na constru­ção dos sentidos da narrativa, pela via do entendimento. De realçar ainda dois passos do texto que constituirão, por razões diferentes, motivo de riso para a criança e que surgem de duas formas. Uma prende-se com a inversão da ordem natural das coisas: o candeeiro que vinha em sentido contrário – ou seja, não foi o pai quem chocou com o candeeiro que estava erguido e imóvel no passeio, sabendo a criança que os candeeiros não andam. A outra tem que ver com a infracção de sentenças éticas, representada pela mãe a fazer uma “porcaria”, limpando a lágrima ao pano da louça, quebrando assim uma regra de higiene que a criança à partida já aprendera – e se não aprendera, actua então aqui a máxima latina do ridendo, castigat mores.

A segunda narrativa (pp. 7-11) é marcada pelo insólito, pelo absurdo, pelo fantástico para o qual o nome “Zbiriguidófilo” remete. Não se trata aqui de fazer uso de um processo linguístico que permite amalgamar dois significantes pertencentes ou não a um mesmo campo semântico num só, mas de construir um termo cujo primeiro elemento isolado não oferece qualquer significado para além de um sentido hipoteticamente onomatopaico. Assim, em “Zbiriguidófilo”, apenas reconhecemos o segundo termo, “philos”, que etimologicamente significa “amizade, amor”. Sabe-se que o Zbiriguidófilo é um animal especial e que foi oferecido a um menino por “um tio, que viajava muito” e “lhe trouxe um dia o zbiriguidófilo, das ilhas Sandwich na Polinésia, escondido numa lata de bolachas (pois, como sabem, é proibido trazer zbiriguidófilos de lá” (p. 7). Os apartes coloquiais, por vezes parentéticos, do narrador/contador são elementos que assumem grande importância na construção desta narrativa em particular, mas que se observam em todas as outras presentes no livro, pois não só asseguram certa cumplicidade com a criança/ouvinte – conduzindo, consequentemente, a um pacto entre as duas partes, pacto esse absolutamente indispensável para a aceitação do absurdo como realidade – mas também inscrevem o texto escrito numa tradição oral, até pelo recurso complementar a suspensões, interrogações e exclamações. Prosseguindo na construção deste mundo fantástico, a criatura vinda das ilhas Sandwich (de notar também a genialidade na escolha deste nome, visto levar a criança a pensar num referente imediato e familiar, a sande, e não no primitivo nome das ilhas do Havai ou nas Ilhas Sandwich do Sul), essa criatura, dizíamos, “tinha várias cores e, quando o punham ao sol, mudava as cores dumas para as outras (de maneira que ficava sempre com as mesmas, mas trocadas – não sei se estão a perceber: onde antes era amarelo, ficava verde, e onde era verde ficava amarelo...)” (p.7). Não se está a descrever um dos possíveis processos de mimetismo, mas uma transformação que não existe e que adquire sentido apenas pela explicação dada e que será perfeitamente inteligível pela criança. Para além dessa fantástica característica, o zbiriguidófilo tinha de ser lavado “com uma mistura de sumo de tomate e pó de talco” e secado “entre as folhas do caderno de matemática, pois é isso que faz os zbiriguidófilos felizes. Os zbiriguidófilos adoram papel quadriculado” (p.8).

Depois de algumas peripécias engraçadas, o menino leva o seu animal de estimação para a escola e, “como era de esperar, fez um sucesso” (p. 11). Num acto instru­tivo, a professora resolve então procurar a entrada no dicionário para dar a definição correcta de zbiriguidófilo, como se estivesse certa da sua existência: “– Vou ler aos meni­nos o que diz aqui sobre os zbiriguidófilos... (...) ora... zbiriguidófilo... zbirigui­dó­filo... vem na letra Z... (...) – Não, não está na Z... Ah! Claro, vem na letra S... Sebiriguidófilo, evidente­mente...” (p. 11). Só a professora não compreendera, parafraseando Breton, que há palavras que não têm compromisso com a etimologia ou com o sentido do dicionário. As crianças, essas, despreocupadas com a dimensão normativa e reguladora do código linguístico, sabiam perfeitamente o que era um zbiriguidófilo e podem, por isso, seguir o conselho do narrador: “Agora, o melhor é irem para a cama, e sonharem com o zbiriguidófilo!” (p. 11).

A capacidade de estas histórias desconstruírem os esquemas da vivência, representados por conceitos e códigos rígidos, e, a partir do não sentido, e pela exploração da capacidade criadora e imaginativa das crianças, construírem mundos dentro do mundo é o aspecto mais marcante deste que foi o único livro de literatura para a infância escrito por Pitum Keil do Amaral – filho de Francisco Keil do Amaral e de Maria Keil, arquitecto de renome, actor ocasional, ilustrador também de alguns livros para crianças 1. E, contrariando observações feitas por António Manuel Couto Viana, em 1992 2, os outros textos, “O Menino e o Touro”, “Uma História de Pinguins” e “Uma História de Piratas...”, valem tanto quanto este a que o título confere destaque. E a não conclusão da última história não faz prova da não competência do autor, mas antes denuncia o seu conhecimento da arte da fantasia: o fechamento de um texto destinado à infância pode impor-se como censura e recusa ao direito de a criança, fechado o livro, poder dialogar com o onírico. Defender, portanto, tal posição é não aceitar que as narrativas para a infância, muitas vezes, “não se oferecem senão como trampolim ao espírito de quem escuta”.

Notas

1 Como, por exemplo, Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma (Porto: Figueirinhas, s.d.), dessa grande escritora que foi Irene Lisboa.

2 A. M. Couto Viana. Recensão de “O Zbiriguidófilo e Outras Histórias”, Rol de Livros, Fundação Calouste Gulbenkian, leitur@gulbenkian, http://www.leitura.gulbenkian.pt/index.php?area=rol&task=view&id=14098 (20/1/2008)

Ana Vasconcelos

(NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da Escola Superior de Educação do Porto)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

No aniversário (ontem) do seu assassinato, ler Lorca, que também escreveu para crianças

Federico García Lorca (1898-1936) nasceu em Fuentevaqueros, perto de Granada, e é considerado um dos maiores poetas europeus do século XX. A sua influência fez-se sentir em muitos poetas portugueses dos anos 30, 40 e 50, nomeadamente nos neo-realistas, em Eugénio de Andrade – que o traduziu admiravelmente –, mas também em Matilde Rosa Araújo, já nos anos 60.

Na muita e variada poesia de Lorca (Canciones, 1927, Romancero Gitano, 1928, Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, 1935, Poeta en Nueva York (1929-30), 1940, etc.), cruzam-se veios diversos: o simbolismo e os ritmos e temas tradicionais (designadamente de raiz popular e andaluza) mas também uma linguagem em que já são visíveis traços das poéticas de vanguarda das primeiras décadas do século XX (entre as quais se conta, por exemplo, o surrealismo, rótulo que todavia Lorca sempre rejeitou). Em boa verdade, a sua voz poética era verdadeiramente singular. Personalidade de grande encanto, simpatia e talento, Lorca era também músico e cantor, encenador, actor e desenhador, além de grande dramaturgo (exemplos: Bodas de Sangue; Yerma; A Casa de Bernarda Alba), tendo escrito alguns poemas para crianças como “Canção tonta”. Conheceu ou foi amigo de artistas como o realizador de cinema Luís Buñuel, o poeta chileno Pablo Neruda, o pintor Salvador Dali.

Refugiando-se em Granada para fugir ao ambiente de agitação que se vivia em Madrid, acaba por ser surpreendido pelo levantamento fascista do General Franco (início da Guerra Civil em Espanha). Os franquistas prendem-no na tarde de 16 de Agosto de 1936 e, na madrugada de 18 para 19, fuzilam-no num campo dos arredores de Granada. O seu corpo nunca foi encontrado. Esta trágica circunstância, aliada à memória da própria personalidade de Lorca, viria a contribuir para tornar este poeta uma figura mítica.

Muitos outros poetas o prantearam, em particular companheiros seus do chamado “Grupo de 27” (Alberti, Manoel Altolaguirre, Luís Cernuda, Vicente Aleixandre, etc.), alguns dos quais viriam, eles também, a ser encarcerados, a morrer precocemente ou então a exilar-se para fugir à perseguição franquista.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Para saber mais sobre o autor e ler poemas seus:

http://www.garcia-lorca.org/

http://www.terra.es/personal2/ortz74/Fgl/inicio.htm

CANÇÃO TONTA

Mamã.
Eu quero ser de prata.
.
Filho,
terás muito frio.
.
Mamã.
Eu quero ser de água.
.
Filho,
terás muito frio.
.
Mamã.
Borda-me em tua almofada.
.
Está bem!
Agora mesmo!
.

FEDERICO GARCÍA LORCA, Antologia Poética, Lisboa, Relógio d’Água, p. 37 (trad. de José Bento)

sábado, 25 de julho de 2009

Saint-Exupéry: Contra o mundo das adições

Retiro da estante a minha velha edição de O Principezinho. Não refere data de publicação. Apenas me permite saber que se trata da 6.ª edição, com chancela da extinta Editorial Aster, em tradução assinada por uma voz, injustamente esquecida, da chamada literatura para crianças: Alice Gomes, poeta, autora de ficções e textos dramáticos, unida por laços familiares a dois outros vultos da escrita: Soeiro Pereira Gomes, seu irmão, e Adolfo Casais Monteiro, o marido.

Folheio o livro já amarelecido pelos anos e abro-o numa página ao acaso, justamente na passagem em que o Principezinho exprime a sua revolta contra os homens que apenas sabem fazer adições e nunca conheceram o prazer de aspirar o perfume de uma flor (pp. 28-30). Atentando na actualidade dessas palavras (e da obra de Saint-Exupéry), não consigo deixar de associar tal meditação a uma frase sobre os personagens que, na Europa de hoje, dominam a economia e a política. Escrita por Czeslaw Milosz, descubro-a numa crónica de Eduardo Prado Coelho («O velho continente», Público, 6/7/2000): «Estes homens de negócios com olhares nulos e sorrisos atrofiados… Foi a estes vermes que veio desembocar uma tão delicada e complexa civilização?»

O autor de Vol de Nuit foi, talvez, um dos derradeiros representantes dessa civilização e O Principezinho, além de poder ser lido como crítica ao envelhecimento do espírito e ao agressivo materialismo tecnocrático, anti-ecológico, do mundo contemporâneo, é também uma exaltação, já ferida pela melancolia, do valor dos ritos e da arte de construir afectos («Só há um luxo verdadeiro: o das relações humanas» – escreveu um dia o autor). Mas O Principezinho parece ser, acima de tudo, um canto à magia da infância que subsiste em cada adulto e que os anos não deveriam esboroar.

Talvez por tudo isto, não estejamos propriamente ante um livro para crianças. A dedicatória – «A Léon Werth quando era rapazinho» – parece confirmá-lo: «Quero dedicar este livro à criança que foi outrora essa pessoa crescida» (…) porque «todas as pessoas crescidas foram primeiro crianças» (p. 7).

Essa é, aliás, a única razão que encontro para o facto de o meu livro manter três flores, que o tempo secou, entre as já citadas páginas de censura aos «homens sérios», os que nunca aspiraram o perfume de uma flor nem contemplaram uma estrela. Impulso do adolescente que fui? Derradeiros traços desse período do fim da juventude em que descobri a obra de Saint-Exupéry? Talvez. Mas, precisamente porque não me olho ainda como um homem demasiado sério e entregue ao «mundo das adições», fecho O Principezinho e conservo as flores secas guardadas entre as suas páginas.

Uma última nota, quase deslocada neste testemunho: já se terá reparado que, sem as ingénuas aguarelas do autor, o texto de Saint-Exupéry era outra coisa? Na esteira de Beatrix Potter e de alguns outros, Saint-Ex, esse terno moralista, era quase um moderno e, conquanto não tenha produzido um picture story book, prenunciava, com o seu livro, a actual gramática do género, ou seja, a de uma narrativa construída segundo um princípio de articulação e complementaridade entre palavra e imagem.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 12 de julho de 2009

O Sofá Estampado, de Lygia Bojunga Nunes

Embora tenham sido editados no nosso país, escritores brasileiros como Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, Ruth Rocha ou Ziraldo não lograram ainda atrair a atenção que as suas obras inquestionavelmente merecem.

Na comunidade dos países de língua oficial portuguesa, o nome de Lygia Bojunga Nunes assume relevo especial, por se tratar do primeiro autor deste imenso espaço linguístico contemplado com a distinção internacional de maior prestígio no domínio da literatura para a infância e juventude: o Prémio Hans Christian Andersen (de 1982), atribuído pelo International Board on Books for Young People.

Após Corda Bamba (Lisboa: Caravela, 1988) e A Bolsa Amarela (Porto: Edinter, 1989), viria a lume O Sofá Estampado (Lisboa: Verbo, 1992; ilustrações de Cristina Malaquias), cujo texto, na edição portuguesa, surge fixado por Natércia Rocha – escritora, crítica e historiadora da literatura para a infância que, entre nós, desenvolveu um louvável trabalho, praticamente solitário, de divulgação da obra da escritora brasileira.

Em O Sofá Estampado, Lygia apresenta a história de Vítor, um jovem tatu tímido e inseguro, com dificuldade em impor-se num mundo que constantemente o agride e que não parece feito à sua medida. O problema agudiza-se perante Dalva, a gata angorá por quem se apaixona. Passando todo o tempo diante da televisão, Dalva vive numa desatenção exasperante em relação ao que se passa em seu redor. Em situações críticas como esta, Vítor tosse até quase sufocar e escava buracos no solo que o levam a viajar até tempos e espaços que marcaram a sua vida passada.

Este dispositivo ora permite o aparecimento de analepses explicativas, ora abre caminho rumo a outras histórias de vida, protagonizadas por personagens cujos caminhos se cruzaram, de uma forma ou de outra, com o do jovem tatu: sua Avó, Dona Popó, o Inventor, Dalva... Do contacto com as experiências de todos eles se vai nutrindo a personalidade que Vítor (o protagonista-animal-menino) a pouco e pouco constrói. À medida que cresce e aprende o mundo, socializa-se e sofre, num teatro de sentimentos e conflitos de assinalável riqueza em termos humanos (porque é da condição humana que aqui se fala, pese embora o herói ser um animal).

Da história o leitor guardará, sem dúvida, uma nota de esperança sobre a construção de uma identidade pessoal. A ela se sobrepõe, contudo, a consciência da complexidade da vida. E aí reside, enfim, o sentido educativo da obra. Recusando a simplificação e encaixando, na narração de uma via dolorosa e comovente, sequências extraordinariamente divertidas, O Sofá Estampado é bem um exemplo daquilo a que Natércia Rocha, no prefácio a Corda Bamba, chama «uma imaginação rica, colorida, com raízes no real mas não perdendo o contacto com o sonho, a reflexão interior, a aventura do viver futuro».

Ultrapassadas as primeiras páginas, o leitor percebe que não se encontra apenas perante mais uma história simplista de animais humanizados (e no entanto, as preocupações de ordem ambiental marcam presença), mas sim a ler um texto que, na sua extraordinária economia de meios, o confronta com um complexo de tópicos em que avultam a identidade e a alteridade, o isolamento e a socialização, a regressão e o crescimento, a morte e o desejo.

Se a isto se acrescentar a evidência de um estilo trabalhado com saber e minúcia, que aproxima o discurso escrito de um registo próximo do da narração oral, fácil será concluir que nos encontramos perante um livro de invulgar qualidade.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)