Livro de estreia de Richard Zimler, reconhecido e premiado romancista, no âmbito da literatura de potencial recepção infantil, Dança Quando Chegares ao Fim distingue-se pela eficácia comunicativa que o caracteriza, resultado de uma estreita cumplicidade estabelecida entre o texto do autor de origem norte-americana, já naturalizado português, e as imagens de Bernardo Carvalho.
O grande público, que se habituou a seguir a saga da família Zarco, desde O Último Cabalista de Lisboa (1999), passando por Meia-Noite ou O Princípio do Mundo (2003), Goa ou O Guardião da Aurora (2005) até, mais recentemente chegar ao volume A Sétima Porta (2007), ou a navegar hesitante, entre a realidade e a ficção em À Procura de Sana (2006), pode surpreender-se com esta incursão num universo tradicionalmente tido como menor ou mesmo marginal. E, contudo, o autor não só se revela extremamente hábil na mudança de registo como exprime, pela forma como manuseia a língua portuguesa e brinca com as suas sonoridades e sentidos, o encanto da descoberta da ludicidade das rimas em português, numa espécie de viagem tardia – talvez mesmo apócrifa – às memórias de infância.
Podendo incluir-se no âmbito do álbum, mesmo estando ausente a estruturação típica da narrativa, esta publicação reúne um conjunto de quase três dezenas de conselhos que, com recurso à rima e a uma estrutura próxima da poética, junta animais e humanos, apresentando os primeiros como conselheiros dos segundos. O subtítulo do livro – «bons conselhos de amigos animais» – esclarece acerca da autoria dos pareceres, ao mesmo tempo que colabora na identificação do género da obra.
Combinando a herança dos bestiários medievais com a da literatura sapiencial, patente nos livros de conselhos, contemporâneos dos primeiros, este volume que agora vem a lume funciona como uma espécie de paródia subversiva daqueles géneros literários, caracterizados pelo didactismo do seu discurso.
A presença do humor, em resultado dos jogos de linguagem, e também as associações imprevistas de animais, atenuam o carácter aparentemente moralista que define este género, identificado desde o subtítulo, sem deixarem de promover a reflexão pela mensagem que encerram. A construção do texto, seguindo a sequência de conselhos e a identificação dos respectivos autores, cria um ritmo particular, acentuado pela rima e pelos paralelismos sonoros e sintácticos. Caracterizado por uma certa hibridez genológica para a qual contribuem a combinação de características da poesia, como os efeitos sonoros e melódicos que o texto explora, como é o caso do ritmo binário que resulta da apresentação do texto em dísticos, com outras acentuadamente narrativas, permitindo identificar personagens, acções e até ambientes, o texto parece recuperar uma rotina particular e uma forma de organização do tempo – o dia-a-dia infantil –, sobretudo no final do livro, os momentos associados ao fim do dia, à noite e aos preparativos para o sono. Promovendo o reconto, possivelmente a leitura em família, o álbum associa-se a uma espécie de ritual que antecede o sono e os sonhos.
Implicitamente, a mensagem do livro aponta também no sentido de entender os animais (e a Natureza) como conselheiros e professores/educadores dos humanos, sugerindo que os primeiros vivem num estádio de perfeição e de desenvolvimento superior em relação aos segundos. Aconselhando, entre outras qualidades, prudência, ponderação, calma, curiosidade e espírito crítico, esperança e alegria, perseverança, reflexão, solidariedade e altruísmo, verdade, fidelidade aos sonhos e ideais, calma e tranquilidade, os animais seleccionados parecem oferecer a receita para uma vida feliz e descomprometida (mas intensamente vivida), capaz de conduzir a «sonhos tranquilos e felizes», como aconselham as sábias perdizes.
Particularmente diversificado e rico, o vasto bestiário aqui recriado inclui espécies conhecidas e próximas, facilmente identificáveis pelos leitores mais pequenos, a par de outras mais exóticas e mais estranhas, apelando à curiosidade e ao espírito de descoberta do público preferencial – mas não exclusivo – a que se destina. No primeiro grupo, incluem-se, entre outras, a leoa e o leão, o cão e a cadela, o lagarto, o ratinho e o gato, o ganso e a gansa ou os elefantes, enquanto, no segundo, podem contar-se o lama e o papa-figo, o pangolim e o guaxinim, o furão e o bico-agulha, ou as hienas e os chacais. Individualmente ou em pares, formando um casal da mesma espécie ou juntando rivais, os vários animais convocados desfilam pelas páginas como se se dirigissem a uma original Arca de Noé, também ela destinada a redimir os homens pelo conselho e pelo exemplo, devolvendo-os a uma espécie de paraíso perdido.
A assiduidade da temática animal no universo da literatura de potencial recepção infantil permite entendê-la como um eixo ideotemático semanticamente produtivo pelo reconhecimento imediato que permite e por todas as potencialidades simbólicas e imagéticas que evoca. Combinando e cruzando diferentes heranças – literárias, linguísticas, culturais e simbólicas – o autor reinventa a tradição, brincando com as palavras, promovendo associações invulgares e inusitadas, próximas do universo nonsensical.
As ilustrações de Bernardo Carvalho, como é seu hábito, acrescentam elementos significantes ao texto, dialogando com ele e completando-o. Com recurso a uma técnica simples e altamente eficaz, o ilustrador não só sugere os elementos centrais da narrativa, nomeadamente as personagens humanas e animais, como conota expressivamente as imagens, transmitindo emoções e sublinhando a vertente humorística do texto. No estilo que o caracteriza, o criador explora os jogos com as formas, os volumes e as cores potenciando impressões de movimento e de dinamismo que caracterizam as ilustrações, também em resultado de uma certa sugestão de traço ágil, vigoroso e quase espontâneo, como as pequenas manchas coloridas parecem revelar. A expressividade que delas sobressai é sublinhada pelos contrastes e variações cromáticas, com especial ênfase para a valorização das tonalidades mais escuras e pelo grande impacto resultante do recurso ao sinal contorno que assegura, em alguns casos, a separação das personagens do fundo colorido. Caracterizadas pela máxima eficiência que resulta do uso de um mínimo de recursos, as imagens, muito contidas, quase sempre de página simples, com uma outra ou outra excepção que permite que se estendam à dupla página, revelam, ainda, influências dos movimentos modernistas, como fica patente nas guardas, sobrepondo elementos e jogando com perspectivas, transparências e opacidades. Assegurando a coesão do livro e a articulação dos vários segmentos textuais, nomeadamente pela representação de uma mesma figura humana (ou várias com afinidades físicas entre si, vejam-se as riscas identificativas da camisola) em diferentes situações, posições e interacções, as imagens sugerem uma certa narratividade, completando e complementando um texto assumidamente contido e plurissignificativo. Ao nível do projecto gráfico, também da responsabilidade do ilustrador, destaque-se a opção por um papel mate de elevada gramagem capaz de fixar as cores e de apelar ao manuseio.
Combinando cuidado estético – artístico e literário – com ludicidade, da qual não está ausente uma dimensão formativa, a construção deste álbum assenta na exploração dos efeitos cómicos das associações sonoras e semânticas. Tendo, como elemento coesivo, o universo animal, inova ao propor que sejam aquelas espécies a aconselhar as crianças e, em última instância, os Homens, enumerando princípios básicos de comportamento e de actuação. Sabiamente matizada, sobretudo pelos jogos linguísticos e pelo humor, a componente moralizante dilui-se num volume que traz, para o panorama literário português, ecos das associações nonsensicais que caracterizam a literatura tradicional infantil anglo-saxónica, conciliando, num mesmo livro, influências e tradições literárias distintas.
Ana Margarida Ramos
Universidade de Aveiro; membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)