domingo, 30 de agosto de 2009

“O Zbiriguidófilo e Outras Histórias” ou um trampolim oferecido ao espírito de quem escuta

“Les mots, les images ne s’offrent que comme trem­plins à l’esprit de celui qui écoute.

André Breton, Manifeste du Surréalisme

O entendimento da literatura para crianças como arte que revela e desnuda o homem nas diferentes fases da sua vida, e não apenas num primeiro estádio vital, a infância, através da presença do cómico, do humor e do não sentido, é o que encontramos no livro O Zibiriguidófilo e Outras Histórias, escrito por Pitum Keil do Amaral e ilustrado por Luísa Brandão (Edições ASA, 1991). Uma obra que nos propomos aqui recordar pela sua singularidade.

O livro é composto por cinco contos: “O Senhor que Lia o Jornal” (pp. 3-6), “O Zbiri­gui­dó­filo” (pp. 7-11), “O Menino e o Touro” (pp. 12-20), “Uma História de Pinguins” (pp.21-24) e “Uma História de Pira­tas...” (pp. 25-28). O título do macrotexto é dado pela segunda história, “O Zbiriguidófilo”, inaugurando a entrada do leitor em narrativas inscritas no mundo do “faz-de-conta” e, algumas vezes, às avessas, um mundo construído ao contrário, invertido e renovador de estruturas e valores narrativos instituídos. É também por isso que se inicia a leitura por aquela que será a primeira história das “outras histórias” e não por aquela que empresta o seu título à colectânea.

A inversão e o riso, tão presentes na infância, são também duas das categorias que marcam a obra. A primeira inversão dá-se na história que abre o livro, e logo a começar pelo seu título, “O Homem que Lia o Jornal”, indicando-nos, à partida, e se seguirmos as indicações dadas e definidas pela tipologia dos títulos, que a personagem principal será esse “Homem”.

Assim, “O Homem que Lia o Jornal” recria a situação, comum nas sociedades modernas, da falta de disponibilidade dos pais em relação aos filhos. Num mundo assustadoramente empreendedor, o pai desta “criança”, depois de um dia de trabalho, tudo o que deseja é chegar a casa, sentar-se e poder ler tranquilamente o jornal. No entanto, essa tranquilidade não é conseguida, pois “O senhor tinha um filho que era pequenino” (p. 3) e, persistentemente, pedia ao pai que “lhe contasse uma história” (p. 3), iniciando-se assim o drama familiar: “Ó Ilda – chamava o pai –, leva daqui esta criança, que eu não consigo ler o jornal” (p.4). Como o adulto, apesar das súplicas, não atendia ao seu pedido, a “criança” resolveu destruir o objecto da atenção do pai transformando o jornal, de uma das vezes, num chapéu, de outra vez num avião, o que enervou seriamente o pai e o levou a ir para a rua ler o jornal, longe do filho. Tão absorto estava na leitura que “(...) uma vez, ele vinha a andar, assim... e vinha um candeeiro em sentido contrário, assim... E... BOOING!” (p. 5). Da “porção de luzes a acender e a apagar” (p.5) que viu, uma iluminou-o: percebeu então que devia fazer um esforço por dar atenção ao filho e “Ficou então combinado que o pai contava todos os dias uma história ao filho, antes de ler o jornal” (p. 5). O senhor só conhecia as histórias que lia na secção desportiva do jornal, e era essas que recontava, e “o menino ouvia tudo com a maior atenção” (p. 6), e até ajudava a acabar as histórias gritando “– Go­oooo­ooooo­ooooo­olo!)” (p. 6). A mãe, Ilda, comovida com a cena familiar, “ficava também tão contente que até limpava uma lágrima de alegria no pano da loiça (o que é uma porcaria, mas enfim, uma vez por outra, não tem problema...)” (p. 6).

Tomando como exemplo esta pequena narrativa, podemos facilmente perceber que a moralidade se dirige mais aos adultos do que às crianças. Neste caso, o adulto que lê a história à criança poderá rever-se na pequena narrati­va. No plano da linguagem, encontramos um certo coloquialismo na narração e sobretudo em algumas expressões, o que estimula uma maior proximidade e participação, por parte da criança, na constru­ção dos sentidos da narrativa, pela via do entendimento. De realçar ainda dois passos do texto que constituirão, por razões diferentes, motivo de riso para a criança e que surgem de duas formas. Uma prende-se com a inversão da ordem natural das coisas: o candeeiro que vinha em sentido contrário – ou seja, não foi o pai quem chocou com o candeeiro que estava erguido e imóvel no passeio, sabendo a criança que os candeeiros não andam. A outra tem que ver com a infracção de sentenças éticas, representada pela mãe a fazer uma “porcaria”, limpando a lágrima ao pano da louça, quebrando assim uma regra de higiene que a criança à partida já aprendera – e se não aprendera, actua então aqui a máxima latina do ridendo, castigat mores.

A segunda narrativa (pp. 7-11) é marcada pelo insólito, pelo absurdo, pelo fantástico para o qual o nome “Zbiriguidófilo” remete. Não se trata aqui de fazer uso de um processo linguístico que permite amalgamar dois significantes pertencentes ou não a um mesmo campo semântico num só, mas de construir um termo cujo primeiro elemento isolado não oferece qualquer significado para além de um sentido hipoteticamente onomatopaico. Assim, em “Zbiriguidófilo”, apenas reconhecemos o segundo termo, “philos”, que etimologicamente significa “amizade, amor”. Sabe-se que o Zbiriguidófilo é um animal especial e que foi oferecido a um menino por “um tio, que viajava muito” e “lhe trouxe um dia o zbiriguidófilo, das ilhas Sandwich na Polinésia, escondido numa lata de bolachas (pois, como sabem, é proibido trazer zbiriguidófilos de lá” (p. 7). Os apartes coloquiais, por vezes parentéticos, do narrador/contador são elementos que assumem grande importância na construção desta narrativa em particular, mas que se observam em todas as outras presentes no livro, pois não só asseguram certa cumplicidade com a criança/ouvinte – conduzindo, consequentemente, a um pacto entre as duas partes, pacto esse absolutamente indispensável para a aceitação do absurdo como realidade – mas também inscrevem o texto escrito numa tradição oral, até pelo recurso complementar a suspensões, interrogações e exclamações. Prosseguindo na construção deste mundo fantástico, a criatura vinda das ilhas Sandwich (de notar também a genialidade na escolha deste nome, visto levar a criança a pensar num referente imediato e familiar, a sande, e não no primitivo nome das ilhas do Havai ou nas Ilhas Sandwich do Sul), essa criatura, dizíamos, “tinha várias cores e, quando o punham ao sol, mudava as cores dumas para as outras (de maneira que ficava sempre com as mesmas, mas trocadas – não sei se estão a perceber: onde antes era amarelo, ficava verde, e onde era verde ficava amarelo...)” (p.7). Não se está a descrever um dos possíveis processos de mimetismo, mas uma transformação que não existe e que adquire sentido apenas pela explicação dada e que será perfeitamente inteligível pela criança. Para além dessa fantástica característica, o zbiriguidófilo tinha de ser lavado “com uma mistura de sumo de tomate e pó de talco” e secado “entre as folhas do caderno de matemática, pois é isso que faz os zbiriguidófilos felizes. Os zbiriguidófilos adoram papel quadriculado” (p.8).

Depois de algumas peripécias engraçadas, o menino leva o seu animal de estimação para a escola e, “como era de esperar, fez um sucesso” (p. 11). Num acto instru­tivo, a professora resolve então procurar a entrada no dicionário para dar a definição correcta de zbiriguidófilo, como se estivesse certa da sua existência: “– Vou ler aos meni­nos o que diz aqui sobre os zbiriguidófilos... (...) ora... zbiriguidófilo... zbirigui­dó­filo... vem na letra Z... (...) – Não, não está na Z... Ah! Claro, vem na letra S... Sebiriguidófilo, evidente­mente...” (p. 11). Só a professora não compreendera, parafraseando Breton, que há palavras que não têm compromisso com a etimologia ou com o sentido do dicionário. As crianças, essas, despreocupadas com a dimensão normativa e reguladora do código linguístico, sabiam perfeitamente o que era um zbiriguidófilo e podem, por isso, seguir o conselho do narrador: “Agora, o melhor é irem para a cama, e sonharem com o zbiriguidófilo!” (p. 11).

A capacidade de estas histórias desconstruírem os esquemas da vivência, representados por conceitos e códigos rígidos, e, a partir do não sentido, e pela exploração da capacidade criadora e imaginativa das crianças, construírem mundos dentro do mundo é o aspecto mais marcante deste que foi o único livro de literatura para a infância escrito por Pitum Keil do Amaral – filho de Francisco Keil do Amaral e de Maria Keil, arquitecto de renome, actor ocasional, ilustrador também de alguns livros para crianças 1. E, contrariando observações feitas por António Manuel Couto Viana, em 1992 2, os outros textos, “O Menino e o Touro”, “Uma História de Pinguins” e “Uma História de Piratas...”, valem tanto quanto este a que o título confere destaque. E a não conclusão da última história não faz prova da não competência do autor, mas antes denuncia o seu conhecimento da arte da fantasia: o fechamento de um texto destinado à infância pode impor-se como censura e recusa ao direito de a criança, fechado o livro, poder dialogar com o onírico. Defender, portanto, tal posição é não aceitar que as narrativas para a infância, muitas vezes, “não se oferecem senão como trampolim ao espírito de quem escuta”.

Notas

1 Como, por exemplo, Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma (Porto: Figueirinhas, s.d.), dessa grande escritora que foi Irene Lisboa.

2 A. M. Couto Viana. Recensão de “O Zbiriguidófilo e Outras Histórias”, Rol de Livros, Fundação Calouste Gulbenkian, leitur@gulbenkian, http://www.leitura.gulbenkian.pt/index.php?area=rol&task=view&id=14098 (20/1/2008)

Ana Vasconcelos

(NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da Escola Superior de Educação do Porto)