domingo, 12 de dezembro de 2010

Sonhos de Natal, de António Mota

Selectiva, feita de fidelidades ao vivido mas também de pequenas ou grandes infidelidades, a memória da infância rural de António Mota é de novo convocada para recriar um tempo que não foi ainda o do autor empírico – o período da emigração para o Brasil –, mas o de um narrador ficcionado (Manuel), com perto de "quarenta mais trinta anos" (p. 12)1, ou seja quase da idade de uma figura tutelar da sua própria meninice, o sr. Afonso. Grande desvendador de mundos e de sabores desconhecidos, contador de histórias cativante, o sr. Afonso é a imagem viva de uma infância que se eterniza, o que o leva a alinhar nos jogos das crianças (Manuel, Ana, Joana, Pedro e Ricardo) e a proporcionar-lhes a primeira e deslumbrada visão de um presépio cujas figuras, aos olhos do narrador, ganham de repente vida própria. Estamos, em suma, perante mais um dos muitos velhos – meio sábios, meio loucos, mas sempre dignos – que povoam as histórias de António Mota.

Sonhos de Natal não se limita, contudo, a narrar a deslumbrada descoberta do mundo e dos seus mistérios – a neve e os jogos a ela associados, os mistérios do mundo animal, o sabor dos comeres tradicionais, as meias palavras dos adultos plenas de sentidos ocultos, a magia inquietante do Menino Jesus ou a ansiosa espera pelos presentes de Natal. A narrativa de António Mota é também um discurso sobre a ausência desse pai que Manuel descobre estar emigrado no Brasil. O sentimento incerto que tal ausência provoca é apenas sugerido, de modo difuso, quer nas conversas entre as crianças acerca da figura do Menino Jesus, quer no olhar do narrador que se alonga sobre a imagem da família arquetípica representada no presépio. Não surpreendem, por isso, as suas palavras: "Já não têm conta as vezes que sonhei acordado. E muitos sonhos compartilhei com os meus amigos. Mas nada foi tão especial como aquele dia que calhou a vinte e quatro de Dezembro desse ano que agora relembro." (p. 46)

O sonho maior é, pois, aquele que acaba por se concretizar: o regresso inesperado do pai, justamente na véspera de Natal. A dimensão afectiva deste sonho tornado realidade ganha especial relevo pelo facto de à figura paterna ficar associada a dádiva dos presentes, alguns deles durante tanto tempo desejados: um livro de capa dura para escrever histórias, uma caneta de tinta permanente, um par de meias, um tambor e uma gravata vermelha como símbolo do sucesso social. Presentes que não valem apenas por aquilo que são, mas sobretudo por aquilo que representam e simbolicamente antecipam: o escritor que Manuel virá a ser, um destino determinado pelo próprio, mas também pelo pai.

Evocação comovida e comovente da figura paterna e da magia do Natal, vista pelos olhos de uma criança na idade de todos os deslumbramentos, e num tempo em que ainda não havia "televisão, vídeo e jogos de computador" (p. 25), o texto de António Mota utiliza um registo realista (mas não neo-realista), evidenciando aquilo a que Luís Miguel Queirós, a propósito de outra obra do autor, chamou "a capacidade de nos levar até ao último capítulo narrando apenas coisas verosímeis, descritas num estilo chão e directo" (Público, 6/10/1991).

Utilizando o lápis-de-cor, o discurso visual de Manuela Bronze (que ilustra a 1.ª edição, da Desabrochar) não se limita a uma relação pleonástica com a palavra. Procura, sim, dar forma aos implícitos do texto verbal, criando uma atmosfera poética, concedendo uma atenção intencional ao pormenor e realçando alguns elementos de fantasia que o texto apenas deixava adivinhar. Através da imagem, procurou-se também restituir um tempo e um espaço sinalizados pela presença viva de algumas tradições da vida rural nortenha.

Conjugando texto e ilustrações, segmentando, por vezes, estas últimas e isolando esses segmentos na página para enfatizar certos elementos, para melhor pontuar a narrativa ou ainda para realçar o conteúdo principal de cada capítulo, o arranjo gráfico de Acácio Carvalho e de Jorge Carvalho, na 1.ª edição da obra, transformou Sonhos de Natal num livro atractivo que apetece folhear e ler.

A 2.ª edição, datada de 2003, tem imagens de Júlio Vanzeler, que recorre à ilustração digital, obtendo também um produto final de elevada qualidade artística.

Nota

1 As citações são feitas a partir da 1.ª edição de Sonhos de Natal.

Ficha técnica

Autor do texto – António Mota

Ilustrador/a – Manuela Bronze (1.ª ed.); Júlio Vanzeler (2.ª ed.)

Local – Porto (1.ª ed.); Vila Nova de Gaia (2.ª ed.)

Editora – Desabrochar (1.ª ed.); Gailivro (2.ª ed.)

Data – 1997 (1.ª ed.); 2003 (2.ª ed.)

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Francisco Duarte Mangas, domador de palavras

Se me perguntarem sobre que é este Sílvio, Domador de Caracóis (Caminho, 2010), livro de Francisco Duarte Mangas (texto) 1 e Madalena Moniz (ilustrações), dificilmente saberei dizê-lo. E livros como este são, em geral, os que me atraem. Aqueles que guardam em si qualquer coisa de indefinível, de irresumível, de imparafraseável, livros cuja teia de sentidos possíveis parece torná-los irredutíveis à moldura crítica.

Trata-se de um livro sobre a amorosa e terna relação entre uma mãe e o seu filho pequeno, curioso e descobridor? Sim e não. É sobre a conversa entre ambos, funcionando como lição sobre a liberdade e a poesia, mas também sobre os constrangimentos da vida? É e não é. É sobre os sonhos irrealizáveis das crianças? É e não é (até porque tenho dúvidas de que alguns deles sejam irrealizáveis…). É sobre o desconsolo da vida adulta, em que a imaginação infantil se afigura por vezes deslocada e perigosa? É e não é. Insinua-se como exemplo de ecopoesia? Sim e não. É sobre a paixão pela mãe Natureza (vemos, com efeito, uma mãe – que, até certo ponto, constitui um reflexo especular da Natureza – e um filho, chamado Sílvio 2, que edipianamente a ama), insinuada numa conversa em torno do fascínio pelos seres e coisas que conformam o mundo natural? (E este foi sempre um dos tópicos de eleição de Francisco Duarte Mangas, em especial naquele aspecto em que tal paixão o conduz, depois, à ternura filial por esses outros «seres vivos» que são as palavras 3. Uma atracção, em suma, pelas suas misteriosas combinações, susceptíveis de edificar mundos possíveis: «cultivar palavras no jardim», ser «domador de caracóis», «carteiro das toupeiras», «arquitecto das cegonhas»…) É sobre tudo isto? É e não é. Encontramos neste livro uma tentativa de conferir materialidade a algumas sedutoras metáforas? Sim e não. É uma meditação sobre a condição de poeta – que Sílvio, no fundo é, porque pretende vir a «cultivar palavras»? Talvez seja, talvez não. É uma narrativa breve ou um breve texto dramático? Possui elementos, é certo, que a ambos os modos pertencem, mas não é uma coisa nem outra, a ambos fugindo para, definitivamente, se instalar no limbo da poesia. É um texto de desarmante simplicidade? É e não é, porque é tão simples quanto denso. É um livro para crianças? Não tenho a menor dúvida que seja. Mas é, também, daqueles livros a que um leitor literário, adulto, não resiste. Daqueles livros que certos adultos podem ler com um gosto imenso, sem se lembrarem de que estão a ler um livro para crianças.

É tudo isto que torna o pequeno grande livro de Francisco Duarte Mangas e Madalena Moniz num objecto simultaneamente simples e complexo, notável de leveza e de densidade (e, quando digo leveza, estou a falar obviamente daquela a que se refere Italo Calvino 4). Um livro que, além do mais, desperta em nós a memória de certas composições, de estrutura dialogal, quer do cancioneiro popular quer das cantigas de amigo medievais, galaico-portuguesas, em que mãe e filha conversam, quer ainda de vários poemas infantis de Eugénio de Andrade e de Matilde Rosa Araújo, e, principalmente, a memória de algumas Canciones (1921-1924) de Federico García Lorca, em especial as Canciones para Niños, como a «Canción tonta» ou a «Cancioncilla sevillana» 5 (e são bem conhecidos os ecos do andaluz na poética do autor de O Ladrão de Palavras que, como todos os poetas dignos desse nome, sabe que a infância é a terra onde germina a poesia – como também Lorca sabia).

Tomando em mãos esta breve mas admirável composição de Francisco Duarte Mangas, a ilustradora Madalena Moniz transformou-a num álbum. Um álbum entre o poético e o narrativo, onde a Natureza respira e respiram também os olhos do leitor, um álbum onde os tons de verde se revestem de importância fundamental, concordante com a possível intencionalidade do texto, e a que nem sequer faltam certos elementos desse paradigma simétrico do picture story book, a que obedecem alguns dos mais bem-amados álbuns narrativos para crianças 6 (verifica-se certa circularidade no texto que, por outro lado, repousa, do princípio ao fim, numa estrutura dialogal 7 mais ou menos repetitiva).

Recorrendo com mestria ao lápis de cor, numa ilustração cujo traço evidencia originalidade e frescura, além de sensibilidade para traduzir a dimensão psicológica, a ilustradora desenha a própria letra utilizada no livro, conferindo à obra um cariz artesanal, conforme com a componente semantico-pragmática do texto de Francisco Duarte Mangas.

Uma parceria feliz, em suma, para uma obra feliz, uma obra que revaloriza a imaginação e os seus poderes e que insta a uma reconciliação com uma Natureza em perigo; um livro na «margem da alegria», necessário para o tempo tristíssimo e cheio de equívocos morais e ideológicos em que vivemos; um livro que convida a pensar, que estimula na criança o pensamento divergente e do qual, não tenho dúvidas, os leitores infantis (e os adultos também) vão gostar.

José António Gomes

(NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Notas

1 Nascido em Rossas (Vieira do Minho), em 1960, jornalista de profissão, romancista premiado (Diário de Link, Teorema, 1993; Geografia do Medo, Teorema, 1997; A Morte do Dali, Teorema, 2001; O Coração Transido dos Mouros, Teorema, 2002, etc.), contista e poeta (Pequeno Livro da Terra, Teorema, 1996; Transumância, Campo das Letras, 2002, etc.), Francisco Duarte Mangas é já autor de uma obra considerável no domínio da literatura para a infância, repartida pelo conto, pelo conto em formato de álbum e pela poesia: Elefantezinho Verde (Elefante Editores, 1999; 2.ª ed., Campo das Letras, 2001), O Gato Karl (Caminho, 2005), O Ladrão de Palavras (Caminho, 2006), O Noitibó, a Gralha e Outros Bichos (Caminho, 2009), além de Breviário do Sol (Caminho, 2002) e Breviário da Água (Caminho, 2004), ambos em co-autoria com João Pedro Mésseder. Vários dos seus livros para adultos foram traduzidos e editados em Espanha e na Itália.

2 Nome de evidentes conotações simbólicas, já que, como ensinam os dicionários, silv(i)… é um elemento latino de composição de palavras que exprime a ideia de selva, floresta, mata (v. J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo et alii. Dicionário da Língua Portuguesa. 5.ª ed., Porto: Porto Editora, s.d., p. 83.). Sílvio, o protagonista deste livro, deseja, entre outras profissões sonhadas, vir a ser «médico das árvores», tratar-lhes do coração, e ama a floresta e os seres, por assim dizer, selvagens.

3 Leia-se esta passagem do texto: «(…) Vou cultivar palavras no jardim, sempre foi esse o meu sonho. || Que palavras? – diz a mãe. || A palavra “Verão”, a palavra “sede”, a palavra “golfinho”… || Bebem muita água, gastam muito adubo – diz a mãe. || Adubo?! || O fertilizante das palavras é a ternura, Sílvio – diz a mãe. || E que água bebem? || A água pura dos teus olhos – diz a mãe. || A ternura é toda para ti, mãe.»

4 Italo Calvino. Seis Propostas para o Próximo Milénio. Lisboa: Teorema, s.d. (originalmente editado em Itália, em 1990). pp. 15-44.

5 Canción tonta: «Mamá, / yo quiero ser de plata. / Hijo, / tendrás mucho frío. / Mamá. / Yo quiero ser de agua. / Hijo, / tendrás mucho frío. / Mamá. / Bórdame en tu almohada. / ¡Eso sí! / ¡Ahora mismo!» – http://users.fulladsl.be/spb1667/cultural/lorca/canciones/canciones_para_ninos/cancion_tonta.html (acedido em 5/11/2010); Cancioncilla sevillana: «Amanecía en el naranjel. / Abejitas de oro / buscaban la miel. // ¿Dónde estará / la miel? // Está en la flor azul, / Isabel. / En la flor, / del romero aquel. // (Sillita de oro / para el moro. / Silla de oropel / para su mujer.) // Amanecía / en el naranjel.» –http://users.fulladsl.be/spb1667/cultural/lorca/canciones/canciones_para_ninos/cancioncilla_sevillana.html (acedido em 5/11/2010).

6 O «symmetrical picture storybook paradigm» é estudado por Eve Heidi Bine-Stock em How to Write a Children’s Picture Book: Learning from The Very Hungry Caterpillar, Chicka Chicka Boom Boom, Corduroy, Where the Wild Things Are, The Carrot Seed, Good Night, Gorilla, Sylvester and the Magic Pebble and Other Favorite Stories. USA: Lightning Source | Ingram and Baker & Taylor, E & E Publishing, 2003 (sumário disponível em http://www.eandegroup.com/Publishing/How-to-Write.html (acedido em 30-3-2009)).

7 Recorde-se que o modo dialogal sempre conheceu larga fortuna na literatura para a infância desde os seus primórdios, quer enquanto forma privilegiada, e mais viva, de transmissão de noções edificantes quer assumindo a forma de diálogos autónomos, sem didascálias (ou quase), incorporados no tecido narrativo – releia-se, por exemplo, a Condessa de Ségur; imagine-se os Diálogos entre uma Avó e sua Neta, de Mathilde de Sant’Anna e Vasconcellos (volume publicado em 1862 que Henrique Marques Júnior, em Algumas Achegas para uma Bibliografia Infantil (1928), afirma não ter conseguido consultar); e lembre-se certos textos de Virgínia de Castro e Almeida (exemplo: Em Pleno Azul (1.ª ed., 1907). 11.ª ed., Lisboa: Clássica Editora, 1988, pp. 72-78, 113-114 e outras) e de Ana de Castro Osório (exemplo: Viagens Aventurosas de Felício e Felizarda ao Brasil (1.ª ed., 1923). Lisboa: Instituto Piaget, 1998, pp. 83-88 e outras). Saindo do âmbito do livro infantil, mas indo às raízes do modo dialogal em literatura, mencione-se por exemplo o modelo estabelecido pelos Diálogos de Platão ou o cultivo, no período barroco, dos livros de diálogos sobre a vida na corte ou de índole moral – e não só, já que os temas abordados poderiam ir da crítica social à crítica literária (releia-se, para só referir dois exemplos da literatura portuguesa do século XVII, Francisco Rodrigues Lobo e a sua Corte na Aldeia (1619) ou D. Francisco Manuel de Melo e os seus Apólogos Dialogais (1721), de publicação póstuma).

domingo, 14 de novembro de 2010

Malasartes n.º 20 – em breve nas livrarias e nas mãos dos assinantes

2010 é um ano de luto para todos os que estudam ou fazem uso, enquanto mediadores da leitura, da literatura para crianças e jovens, e se habituaram à presença de algumas figuras tutelares. Sem Matilde Rosa Araújo, sem Madalena Gomes, sem António Manuel Couto Viana, sem José Saramago, sem João Paulo Seara Cardoso ficámos sem dúvida mais pobres. Mas – certo é também – temos a sorte de herdar destas vozes um legado literário que perpetuará no tempo a sua memória; um legado que importa continuar a ler, a estudar e, sobretudo, a dar a ler aos mais jovens – razão de ser do nosso trabalho como mediadores da leitura e defensores de uma literatura de qualidade para a infância.

Natural é, por isso, que evoquemos estes Autores no n.º 20 de Malasartes.

20, por outro lado, é um número carregado de simbolismo. Contrariando a tendência de boa parte das revistas literárias e científicas – nomeadamente em Portugal –, a circunstância de Malasartes – Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude ter logrado, contra ventos e marés, atingir o seu vigésimo número, em onze anos, reveste-se de enorme significado. E resulta também de um esforço de paciência e persistência que deve incutir orgulho em todos os colaboradores da revista, portugueses e galegos. Mas muito há ainda a fazer: para sobreviver às intempéries da crise, Malasartes precisa urgentemente de maior divulgação e de crescer, em número de assinantes e leitores. Uma tarefa que deveria ser assumida por todos os interessados nesta área (bibliotecários e professores incluídos) e não apenas pelo núcleo de colaboradores mais próximos. Seria lamentável não conseguir manter vivo e actuante este projecto que corresponde ao desejo de muitos: o da única revista luso-galega, de perfil científico aberto, dedicada ao estudo, à crítica e à divulgação do livro para crianças e jovens.

Continue-se, pois, o caminho iniciado. Aprofundando o conhecimento, neste vigésimo número, de mais dois escritores da maior relevância no panorama das literaturas infantis e juvenis galega e portuguesa: Paco Martín (uma presença actual e singular) e Maria Lamas (uma das figuras do período de ouro da escrita para crianças em Portugal). Revisitando, por outra parte, obras de referência de Autores como Jules Verne, Raymond Léopold Bruckberger, Sidónio Muralha, Xosé Neira Vilas, Maria Victoria Moreno ou Max Velthuijs. E concentrando-nos, ainda, em criações recentes que atestam a vitalidade da escrita e da ilustração contemporâneas – de nomes como o já referido Paco Martín, Manuela Bacelar, Agualusa, Henrique Cayatte, Fernando Pinto do Amaral, Nuno Higino e de muitos outros, cujos livros, neste número, são objecto de atenção crítica.

Nas habituais secções de Práticas, de Estudos e de recensões de estudos e revistas, continuarão, certamente, os leitores de Malasartes a encontrar respostas a outras questões que o seu trabalho de investigação ou de mediação da leitura lhes suscita.

sábado, 30 de outubro de 2010

Cinderela: o último gesto criador de João Paulo Seara Cardoso

Foi um dos mais inovadores protagonistas do teatro para a infância, em Portugal, nas décadas que se seguiram ao 25 de Abril de 1974. Fundador e director artístico do Teatro de Marionetas do Porto, cenógrafo, escritor e professor de interpretação teatral, João Paulo Seara Cardoso (1956-2010) imprimiu, desde sempre, ao seu trabalho uma dimensão investigativa. Sem fazer tábua rasa da tradição, ao contrário de outros, a sua paixão pelas marionetas radicava num estudo dedicado à pesquisa e reconstituição do Teatro Dom Roberto (fantoches populares portugueses). Costumava, assim, afirmar que herdara de Mestre António Dias esta secular tradição a que quis e soube dar continuidade. Neste contexto, a criação do Museu da Marioneta, na histórica e camiliana Rua das Flores, no Porto, era o seu mais recente projecto.

O talento e saber de João Paulo Seara Cardoso foram postos, também, ao serviço de diversas companhias e instituições ligadas ao teatro e à ópera, para as quais encenou espectáculos. William Shakespeare, António José da Silva, Lewis Carroll, A. A. Milne, Alfred Jarry, Almada Negreiros, Aquilino Ribeiro, Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Gregory Motton, Heiner Müller, Marguerite Duras, Al Berto e Luísa Costa Gomes foram alguns dos autores cujos textos levou à cena.

Com um impressivo currículo de encenação e montagem de espectáculos, em Portugal e no estrangeiro, a que se somam inesquecíveis trabalhos para televisão (A Árvore dos Patafúrdios, Os Amigos do Gaspar, Mópi e No Tempo dos Afonsinhos), João Paulo Seara Cardoso era também um relevante autor de livros para a infância, quase todos resultantes da sua actividade teatral (Óscar, Campo das Letras, 2003; Bichos do Bosque, Campo das Letras, 2008; O Senhor…, Porto Editora, 2008, entre outros títulos). Merece, por isso, releitura atenta o ensaio de Paula Garcia, «João Paulo Seara Cardoso: uma escrita “funcional” no teatro para a infância», em boa hora publicado no n.º 18 de Malasartes, de Maio de 2010 (pp. 36-43).

A derradeira produção teatral de Seara Cardoso, em cena no Porto à data da sua morte (29-10-2010), foi Cinderela, que se encontra na origem do último livro infantil que publicou (em Outubro de 2010), com a chancela da Porto Editora, na colecção Oficina dos Sonhos – texto potenciado pelas excelentes ilustrações de João Vaz de Carvalho.

Singular exemplo de recriação hipertextual e de releitura parodística de um clássico (que nos traz à memória Gianni Rodari ou Roald Dahl e as suas Revolting Rhymes), Cinderela constitui um admirável momento de humor, caricatura e ritmo dramáticos, quer pelo cómico de situações e de linguagem que tão bem explora (incorporando, por exemplo, um registo abrasileirado no discurso de várias personagens) quer pelo modo como entretece prosa e verso, narrativa e drama, quer ainda pela convocação de figuras oriundas de outros contos. E isto para não falar da cómica subversão dos traços psicológicos de algumas das personagens da história tradicional, ou das muitas alusões jocosas e críticas ao presente, a permitirem manter vivo, actual e actuante o velho enredo contado por Perrault (em finais do século XVII), por Jacob e Wilhelm Grimm (no século XX) e por outros ainda.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Literatura para a infância e ilustração – Leituras em Diálogo, de Ana Margarida Ramos

Segundo volume da colecção "Percursos da Literatura Infanto-Juvenil", editada pela Tropelias & Companhia, Literatura para a Infância e Ilustração – Leituras em diálogo constitui uma colectânea de ensaios sobre a produção literária de potencial recepção infantil, os seus desenvolvimentos e as suas tendências mais recentes no contexto editorial português. Na tentativa de sensibilizar o mediador adulto para a sua importância e as suas mais variadas potencialidades no desenvolvimento precoce de competências literácitas na criança, a autora confere especial atenção à componente ilustrativa (e paratextual) dos livros vocacionados para o público mais novo, em particular no álbum ilustrado, cuja evolução, em Portugal, nos últimos anos, tem exigido uma observação atenta e uma análise cada vez mais aprofundada das suas publicações.

Sem por isso coibir a iluminação de obras clássicas que concorreram para a conformação do actual panorama editorial, a cristalização de um período mais recente da produção, nos diversos percursos de leitura, diacrónica e/ou crítica, propostos, possibilita não só uma actualização da história da literatura infantil e juvenil portuguesa como a compreensão, através da sua avaliação analítico-descritiva, das opções temáticas, genológicas e discursivas, actualmente, mais recorrentes nas edições que às crianças se consagram.

Além disso, as reflexões aqui reunidas também mostram que a reedição e tradução de álbuns clássicos em língua portuguesa – muitos deles depois de largas décadas de espera –, assim como o prosseguimento de outros vultos consagrados do panorama literário nacional, influenciaram o surgimento de uma nova geração de autores, e, em especial, de ilustradores, fortemente responsáveis pelo notável impulso criativo da edição portuguesa contemporânea para a infância.

Apoiada num vasto e diversificado corpus, a autora procura descrever as potencialidades de um dos segmentos mais dinâmicos e inovadores da criação gráfica e literária universal, um fenómeno editorial notável pela sua amplitude e pelo seu sucesso, que tem despertado o interesse por parte de inúmeros investigadores, educadores/professores e demais mediadores no domínio da literatura para a infância. Partindo da reflexão sobre aspectos ligados à concepção destes volumes, nomeadamente ao nível da sua edição e criação gráfica, bem como à leitura das imagens que os integram, a autora sublinha a relevância da articulação icónico-verbal na potencialização de um processo interpretativo complexo e diferente e na celebração de pacto de leitura com a criança visivelmente desconhecido noutros tipos de livros ilustrados.

Em perfeita consonância com alguns dos mais actuais interesses investigativos no domínio em epígrafe, esta obra revela-se, pois, uma ferramenta de grande utilidade para todos os que se interessem pela literatura de potencial recepção infantil, constituindo uma referência imprescindível ao estudo do álbum narrativo ilustrado.

Ficha

Literatura para a Infância e Ilustração – Leituras em diálogo

Ana Margarida Ramos

Tropelias & companhia, 2010

Col. Percursos da Literatura Infanto-juvenil

ISBN: 978-989-96256-8-6

Carina Rodrigues (Bolseira FCT/Universidade de Aveiro)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O Cavalinho de Pau do Menino Jesus e outros contos de Natal, de M. António Pina e Inês do Carmo – Prémio Bissaya Barreto de Literatura para a Infância

Ao conto “O cavalinho de pau do Menino Jesus” – originalmente editado, em 2004, pelo jornal Expresso, numa pequena colecção de três volumes, com uma componente visual muito apelativa da autoria de Danuta Wojciechowska – juntam-se, nesta obra de Manuel António Pina (MAP), ilustrada por Inês do Carmo, as narrativas “O sorriso” e “Mais depressa, Reis Magos, mais depressa!”.

No primeiro texto referido, “O cavalinho de pau do Menino Jesus”, convivem, num mesmo espaço ficcional, o Pai Natal e o Menino Jesus. Elidindo-se as fronteiras entre o universo cristão e o universo pagão e aproximando-se dois tempos distantes, conta-se, aqui, sempre num registo vivo e frequentemente dialógico, os preparativos, a viagem e a chegada do Pai Natal a Belém, depois de longas horas de trenó desde o Pólo Norte até ao estábulo onde nasceu o Menino Jesus, aludindo-se, ainda, sem apagar o seu natural dramatismo, ao desfecho da sua vida. A associação do Menino Jesus ao universo da infância e ao seu natural gosto infantil pelos brinquedos, desde logo, sugeridos pelo título, representa um dos aspectos mais atractivos do ponto de vista da recepção infantil deste texto. Numa apelativa construção literária de carácter lúdico, marcada por ecos de textos tão variados como o Evangelho ou o poema «Twas the night before Christmas», escrito, em 1822, por Clement Clark Moore, MAP dessacraliza figuras e episódios e, inventando gestos e situações católica ou biblicamente erradas, diverte o leitor.

No segundo conto mencionado, que se intitula “O sorriso” e é o primeiro da colectânea, o Menino Jesus ainda se encontra dentro da barriga da mãe, centrando-se o discurso nas próprias sensações, impressões e dúvidas do Deus-Menino. A humanização das figuras bíblicas e, em particular, a densidade psicológica que os dilemas confessados pelo Menino Jesus deixam pressentir fazem desta narrativa, cremos, uma das mais tocantes do universo literário português de destinatário preferencial infanto-juvenil. Um dos textos mais geniais de MAP, este conto confirma exemplarmente o carácter imaginativo e independente deste autor, já anunciado, aliás, em textos como “O menino Jesus não quer ser Deus”, presente em O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973).

A terceira narrativa que integra a colectânea, sendo protagonizada pelos Reis Magos, acompanhados pelas Rainhas Magas, desenvolve-se em torno do nascimento de Jesus. Este acontecimento é anunciado pela Estrela de Belém que se desloca à “Arábia Feliz” e, depois de uma espera quase desesperada, acaba por acompanhar os três (atrasados) Reis Magos até ao estábulo, já no dia de ano novo. No fundamental, o humor, frequentemente de raiz nonsensical, estrutura-se a partir da recriação dessacralizadora dos comportamentos das personagens ou, por outras palavras, na atribuição de certas características perfeitamente humanas e algumas, até, a reflectirem determinadas marcas de contemporaneidade. Recorde-se, por exemplo, que a “Estrela de Belém estava irritadísssima, farta de esperar. Ainda por cima tinha chegado o Dia de Ano Novo e o barulho era tal em toda a cidade, com fogo-de-artifício por todo o lado e gente a atirar latas e panelas para a rua, que a Estrela, muito aborrecida, quando os Reis Magos finalmente chegaram ao Palácio, os repreendeu...” (Pina, 2009: 17). Atente-se também no facto dos Reis Magos, já pais de “Principezinhos Magos”, serem casados com as Rainhas Magas e de estas também quererem ir adorar o Menino Jesus, tencionando levar-lhe “Uma (...) um bibe de seda, outra um guizo de prata e a terceira uma caixa de música com canções de Natal.” (idem, ibidem). Mesmo a figura bíblica da Nossa Senhora é alvo de um tratamento manifestamente inesperado: “(...) Nossa Senhora fitou-os com severidade: ‘Já estamos a 6 de Janeiro, viestes muito atrasados. Temos estado à vossa espera desde o Dia de Natal, pois estava escrito que viríeis nesse dia. Por pouco já não teríamos tempo de fugir para o Egipto.’” (idem, ibidem).

O efeito cómico deste conto surge reforçado ainda, de forma determinante, pelo uso insistente e muito pessoal da maiusculização de um número elevado de vocábulos e de expressões, criando-se, quanto a este aspecto, uma espécie de norma gramatical muito própria, como se verifica em “Piquenique”, “Escudeiro Mago”, “Caixa de Magia”,”Hipóteses”, “Florestas e Oásis”, “Alimentos”, “Outro Caminho”, entre outros.

Carla Maia de Almeida, que declara num atento post do seu blog, “Jardim Assombrado”, dedicado a este último livro de MAP, «A eleger um livro infantil do Natal de 2009, só pode ser este: O cavalinho de pau do Menino Jesus e outros contos de Natal», conclui «E se algum leitor considera isto [tudo, ou melhor, «essa história de um Menino Jesus inventado no Céu, nascido de uma mulher que "não tinha amado antes de o ter", como diz o poema de Alberto Caeiro, é a coisa mais triste que há»] uma heresia, é melhor passar ao lado do livro.». E, na verdade, importa sublinhar que estes três textos, com temática natalícia, mas aqui redimensionada segundo o estilo do autor, se estruturam sob o signo da paródia, substantivando, assim, um recurso paradigmático muito frequente na literatura pós-moderna. Tendo como ponto de partida a intertextualidade, a deformação criativa de um texto preexistente (principal proposição inerente à paródia enunciada por Carlos Ceia, no E-Dicionário de Termos Literários), neste caso concreto, do texto bíblico, facilmente um objecto tido como historicamente modelar (na acepção do mesmo estudioso), alimenta a escrita dos textos da colectânea em divulgação, sendo, por vezes, alvo de uma salutar ironia e de uma contagiante criatividade, sustentadas por uma “liberdade livre”.

As ilustrações, em tons fortes e contrastantes, procuram seguir de perto o texto verbal, ainda que nem sempre com a eficácia e a coerência esperadas (veja-se, por exemplo, a recriação icónica discrepante do “cavalo de pau de crina dourada e arreios vermelhos”). Além disso, o discurso visual, apesar de ensaiar a representação dos momentos nucleares da acção e das personagens principais, carece, em certos momentos, de perspectiva, aspecto que, em determinados casos, é superado pelos jogos de luz e sombra, bem como de texturas. Genericamente feliz do ponto de vista da materialização pictórica de algumas das temáticas mais relevantes dos textos de MAP – por exemplo, o Natal, a infância, o amor ou a maternidade –, a componente ilustrativa parece, porém, “abstrair-se” do humor subtil e da intencionalidade subversiva que distinguem estas narrativas e que representam, aliás, dois dos traços mais singularizadores da produção literária do autor em causa.

Referência bibliográfica

PINA, Manuel António (2009). O Cavalinho de Pau do Menino Jesus e outros contos de Natal (ilustrações de Inês do Carmo). Porto: Porto Editora.

Sara Reis da Silva

(Universidade do Minho | Membro associado do NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Inicialmente publicado em Malasartes, n.º 19, Abril 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A Mamã Pôs um Ovo, de Babette Cole

Conhecíamo-la de alguns álbuns ingleses de humor irresistível, como The Trouble with Gran (1987), The Trouble with Grandad (1988), e de outros mais antigos, em tempos publicados pela Sá da Costa. Por isso, é bom ver Babette Cole editada em português, no seu suporte de eleição: o álbum para crianças nas primeiras idades. Em A Mamã Pôs um Ovo (Terramar, 1997), o texto é escasso, já que a ilustração diz quase tudo, num registo caricatural, de um humor um pouco selvagem a lembrar o "cartoon" – e com alguns olhares cúmplices dirigidos ao adulto.

Duas crianças riem-se de uma lição sobre sexualidade e reprodução, dada pelos pais de modo ridiculamente fantasista e pretensamente pedagógico. A opção dos mais pequenos é, então, explicar tudo, em termos realistas e descontraídos: "Pensamos que vocês não sabem como é que realmente se faz um bebé. Portanto, vamos fazer uns desenhos para vos mostrar como é!" Infantis, os desenhos são elucidativos. E – podemos garantir – sem pouparem no pormenor.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Celine, de Brock Cole

Brock Cole, o autor de Celine (Caminho, 1993; col. "Caminho Jovens", trad. de Vitória Cortes, 244 págs.), nasce numa pequena cidade do Michigan em 1938. Doutorado em Filosofia, ensina, durante vários anos, na Universidade de Wisconsin, iniciando, em 1975, uma carreira de autor de livros para crianças que, em 1989, passa pela publicação da obra que constitui objecto deste comentário.

Para rapidamente se ter uma ideia do seu conteúdo, digamos que algo nela nos traz à memória um filme de Woody Allen que tivesse por narrador-protagonista a jovem de 16 anos cujo nome é adoptado como título do livro. No discurso entrelaçam-se a ironia, o humor e a amargura, numa narrativa de registo realista que é também uma pequena lição de escrita romanesca, por vezes, quase cinematográfica.

Como acontece, com frequência, no romance juvenil contemporâneo, a personagem principal, adolescente, encontra-se no centro de um conflito (neste caso mais do que um) cuja origem tem que ver com o abandono forçado da situação parental tradicional e com a adaptação, difícil, a uma insólita recomposição do núcleo familiar. Divorciado, o pai da protagonista está ausente, dando conferências na Europa. A mãe encontra-se no Brasil, trabalhando para uma organização governamental americana. Celine fica entregue a Catherine, a madrasta, seis anos mais velha do que ela. Na vaga esperança de uma curta aventura com o seu professor de arte, Catherine ausenta-se da cidade para assistir a uma conferência sobre psicologia educativa.

Como se tudo isto não bastasse, a protagonista é apanhada no meio de uma outra quezília, a da vizinha com o seu ex-marido, cuja vítima directa é Jacob, o filho de ambos. Em consequência dos egoísmos e distracções dos adultos, tão frequentes ao longo do enredo, o pequeno Jake fica, por alguns dias, à guarda de Celine. Embora em níveis diferentes, ambas as personagens são, até certo ponto, o espelho uma da outra, crescendo entre as duas uma relação de cúmplice amizade. Disto vai ganhando consciência a jovem heroína, perdida num turbilhão de sentimentos contraditórios acerca do mundo adulto, dos seus confusos e dolorosos jogos afectivos, das suas preocupações com uma carreira, das suas pequenas traições inconfessáveis.

Exemplo do vazio afectivo em que Celine se vê imersa, nesse momento crucial do seu crescimento, é uma passagem de um diálogo com Catherine, onde não é difícil adivinhar, por trás da ironia, uma amargura mal contida. Aí, a palavra "vigilância" admite sentidos claramente relacionados com a necessidade de afecto e atenção: "Preciso de vigilância. A gente da minha idade precisa de vigilância quase constante. Toda a gente sabe isso. Somos um monte de hormonas enraivecidas. O que é que o meu pai vai dizer quando voltar e souber que foste passar o fim-de-semana fora e me deixaste sozinha?" (p. 157).

Celine procura organizar e afirmar o seu ego, gerindo, de modo complicado, as suas inclinações afectivas e sexuais, as suas ambições artísticas e o despontar dos seus instintos maternais, sob a pressão de uma escola mergulhada, ela também, em insuperáveis contradições internas. Neste quadro, o seu discurso converte-se num comentário irónico, por vezes amargo, que tem como objecto esse teatro de sentimentos onde os adultos se tornam de repente frágeis e dignos de pena, incapazes de se impor, como modelos credíveis, em relação àqueles que constroem ainda a sua identidade. Daí que, num tom que tem tanto de humorístico como de pungente, Celine possa afirmar, quase no final: "Olhando para leste, do outro lado do lago, vê-se um brilho no céu. Ou é o Sol a nascer ou o fim do mundo. O meu pai anda por lá, algures. Provavelmente a fazer as malas num hotel de Frankfurt ou a saltar do passeio, debaixo de chuva, para chamar um táxi. E Mrs. Barker (a mãe de Jake) também anda por qualquer lado, fazendo telefonemas, escrevendo memorandos e dando explicações, vestindo o casaco e pondo o chapéu. É tudo muito reconfortante, a sério. Aposto que até a Catherine vem a caminho de casa, o narizito espetado por fora da gola do casaco, enquanto contempla a paisagem cinzenta pela janela da camioneta. Andam todos por lá, correndo para casa a fim de salvar as crianças. Vão chegar cansados e cheios de fome. Pergunto-me se não deveria fazer uns bolinhos." (p. 226).

História a um tempo densa e divertida, com um narrador notável de lucidez, humor e ironia, Celine confirma, uma vez mais, a "Caminho Jovens" como a melhor colecção de romances juvenis que em Portugal se editou nos anos 80 e 90 do século XX, graças à sábia selecção do editor José Oliveira.

Obra dirigida a adolescentes e a jovens adultos, Celine, acrescente-se, integra as listas do Plano Nacional de Leitura. Ainda bem que assim é.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 25 de julho de 2010

Ilse Losa e O Senhor Pechincha

Se algum dia nos fosse dado organizar uma antologia de contos portugueses para crianças da segunda metade do século XX, seria difícil resistir a nela integrar a primeira das duas histórias que compõem o volume O Senhor Pechincha, a qual, em tempos, deu pelo título de Mosquito e o Senhor Pechincha – por exemplo na velha edição de 1973, da Inova, com belas ilustrações a preto e branco de Júlio Resende, onde este conto ombreia com algumas das melhores narrativas de Ilse Losa, sob o título de Um Fidalgo de Pernas Curtas e Outras Histórias.

Merece, pois, apreço a reedição, em 1993, de O Senhor Pechincha (Porto: Afrontamento), quer pela nova roupagem que lhe é dada pelas ilustrações de António Lucena (um dos pseudónimos do pintor António Quadros que, na escrita, dava pelo nome de João Pedro Grabato Dias), quer pela companhia da história divertida do irreverente Bonifácio (a segunda do livro, inicialmente editada, em 1980, por Livros Horizonte, sob o título Bonifácio, com ilustrações do cartoonista Miranda). Este conto dá a conhecer um papagaio invulgar que, começando por ser bicho doméstico e acarinhado, terminou exibindo a sua incomodativa arte de imitar buzinas e autoclismos num hipermercado, um desses lugares que, nas palavras do narrador, «talvez sejam grandiosos, não sei bem, mas são lugares tristes para lá se passar a vida» (p. 47).

Não é difícil que ocorra o termo «realismo», quando nos dispomos a falar da maioria das narrativas infantis de Ilse Losa (que, diga-se de passagem, não ficou imune à influência neo-realista). Talvez por isso, esses contos possuam o condão de simultaneamente inquietar e cativar os seus pequenos leitores, como, por várias vezes, tivemos ocasião de comprovar. Com o seu final aberto e ambíguo, recusando moralismos fáceis, O Senhor Pechincha é justamente um desses casos.

Com acção situada numa pequena povoação do litoral nortenho, num quadro social de pobreza e fome (a qual determina boa parte da actuação de um dos protagonistas: o senhor Pechincha), a história expõe-nos a situação de Mosquito, criança de cinco anos iludida por um esfomeado vendedor de pequenos nadas. O terceiro protagonista é o pai da criança. Habitam ambos um casebre nas dunas e vivem da apanha do sargaço. Na ausência do pai, o vendedor ambulante abandona nas mãos do menino, como penhor, a mala com todos os seus «artigos». Recebe a única nota de cinco contos (cem escudos nas edições mais antigas do livro) de que a família dispunha até ao final do mês e, a pretexto de arranjar troco (uma vez que convencera Mosquito a comprar-lhe um pequeno brinquedo), dirige-se para a vila, onde não resiste a gastar boa parte do que recebera num duplo jantar. O resto da narrativa conta o reencontro das personagens, a recuperação de parte do dinheiro, as moderadas recriminações do pai de Mosquito e a compreensão deste último em relação às carências do vendedor ambulante.

Pechincha revela-se, desde o início, como uma figura ambígua. Misto de vagabundo e de sonhador, a sua fome e desespero são os limites da sua honestidade. O final da história deixa, portanto, o leitor na incerta esperança do cumprimento de uma promessa: o regresso deste vendedor de sonhos com o dinheiro em dívida.

Sábio doseador dos efeitos da sua narrativa, o narrador quase se limita a expor, a retratar com certo rigor um quadro humano e social, evitando toda e qualquer tentação judicativa. Ao leitor é dada a liberdade de imaginar e, eventualmente, julgar pelos seus próprios meios, não sem antes lhe ser dada a oportunidade de perceber as motivações da acção humana. Uma acção que surge, neste caso, condicionada por sonhos, frustrações e carências que relevam do social, mas também do afectivo, e que podem suscitar interrogações e curiosas discussões entre leitores de 8 a 11 anos.

António Torrado 1 descreveu bem a prosa da autora, ao afirmar: «Ilse Losa não nasceu na nossa língua, mas foi na nossa língua que se afirmou como escritora. Pródiga transfusão para ambas as partes! No trânsito da língua veicular à íntima união com a escritora, a estrutura linguística adquiriu uma modulação frásica irreproduzível por outra pena.» E acrescenta: «Nas histórias de Ilse, há uma serenidade narrativa de linha de horizonte. As histórias fluem, crescem, acrescentam-se pela vontade própria do acto de contar. Não trazem recados extra, de moral mais ou menos perfilada, nem se ademanam, buscando adular o público a que prioritariamente se destinam.»

Este parece ser o estilo de narração capaz de traduzir as preocupações de uma autora que, em crónica antiga 2, publicada no Diário de Notícias, ao comentar Rosa Bianca, de Roberto Innocenti, escrevia estas palavras de indesmentível lucidez: «Provavelmente é pretensão do adulto supor que as crianças querem saber unicamente de histórias que as divertem. Não é o caso, porque elas vivem os seus próprios dramas e, por vezes, bem dolorosos. O que não quer dizer que deixemos de as transportar para o reino da fantasia e dos sonhos, da diversão e do humor. Elas têm espaço em si para assimilar os vários aspectos do mundo e da vida. Confrontá-las com os grandes males talvez as motive, desde cedo, a combatê-los mais tarde.»

Notas

1 António Torrado (1990). O Bosque Mínimo, Lisboa: Instituto de Apoio à Criança, p. 26.

2 Ilse Losa (1986). «Contar ou ocultar?», Diário de Notícias, 4 de Novembro.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)