Brock Cole, o autor de Celine (Caminho, 1993; col. "Caminho Jovens", trad. de Vitória Cortes, 244 págs.), nasce numa pequena cidade do Michigan em 1938. Doutorado em Filosofia, ensina, durante vários anos, na Universidade de Wisconsin, iniciando, em 1975, uma carreira de autor de livros para crianças que, em 1989, passa pela publicação da obra que constitui objecto deste comentário.
Para rapidamente se ter uma ideia do seu conteúdo, digamos que algo nela nos traz à memória um filme de Woody Allen que tivesse por narrador-protagonista a jovem de 16 anos cujo nome é adoptado como título do livro. No discurso entrelaçam-se a ironia, o humor e a amargura, numa narrativa de registo realista que é também uma pequena lição de escrita romanesca, por vezes, quase cinematográfica.
Como acontece, com frequência, no romance juvenil contemporâneo, a personagem principal, adolescente, encontra-se no centro de um conflito (neste caso mais do que um) cuja origem tem que ver com o abandono forçado da situação parental tradicional e com a adaptação, difícil, a uma insólita recomposição do núcleo familiar. Divorciado, o pai da protagonista está ausente, dando conferências na Europa. A mãe encontra-se no Brasil, trabalhando para uma organização governamental americana. Celine fica entregue a Catherine, a madrasta, seis anos mais velha do que ela. Na vaga esperança de uma curta aventura com o seu professor de arte, Catherine ausenta-se da cidade para assistir a uma conferência sobre psicologia educativa.
Como se tudo isto não bastasse, a protagonista é apanhada no meio de uma outra quezília, a da vizinha com o seu ex-marido, cuja vítima directa é Jacob, o filho de ambos. Em consequência dos egoísmos e distracções dos adultos, tão frequentes ao longo do enredo, o pequeno Jake fica, por alguns dias, à guarda de Celine. Embora em níveis diferentes, ambas as personagens são, até certo ponto, o espelho uma da outra, crescendo entre as duas uma relação de cúmplice amizade. Disto vai ganhando consciência a jovem heroína, perdida num turbilhão de sentimentos contraditórios acerca do mundo adulto, dos seus confusos e dolorosos jogos afectivos, das suas preocupações com uma carreira, das suas pequenas traições inconfessáveis.
Exemplo do vazio afectivo em que Celine se vê imersa, nesse momento crucial do seu crescimento, é uma passagem de um diálogo com Catherine, onde não é difícil adivinhar, por trás da ironia, uma amargura mal contida. Aí, a palavra "vigilância" admite sentidos claramente relacionados com a necessidade de afecto e atenção: "Preciso de vigilância. A gente da minha idade precisa de vigilância quase constante. Toda a gente sabe isso. Somos um monte de hormonas enraivecidas. O que é que o meu pai vai dizer quando voltar e souber que foste passar o fim-de-semana fora e me deixaste sozinha?" (p. 157).
Celine procura organizar e afirmar o seu ego, gerindo, de modo complicado, as suas inclinações afectivas e sexuais, as suas ambições artísticas e o despontar dos seus instintos maternais, sob a pressão de uma escola mergulhada, ela também, em insuperáveis contradições internas. Neste quadro, o seu discurso converte-se num comentário irónico, por vezes amargo, que tem como objecto esse teatro de sentimentos onde os adultos se tornam de repente frágeis e dignos de pena, incapazes de se impor, como modelos credíveis, em relação àqueles que constroem ainda a sua identidade. Daí que, num tom que tem tanto de humorístico como de pungente, Celine possa afirmar, quase no final: "Olhando para leste, do outro lado do lago, vê-se um brilho no céu. Ou é o Sol a nascer ou o fim do mundo. O meu pai anda por lá, algures. Provavelmente a fazer as malas num hotel de Frankfurt ou a saltar do passeio, debaixo de chuva, para chamar um táxi. E Mrs. Barker (a mãe de Jake) também anda por qualquer lado, fazendo telefonemas, escrevendo memorandos e dando explicações, vestindo o casaco e pondo o chapéu. É tudo muito reconfortante, a sério. Aposto que até a Catherine vem a caminho de casa, o narizito espetado por fora da gola do casaco, enquanto contempla a paisagem cinzenta pela janela da camioneta. Andam todos por lá, correndo para casa a fim de salvar as crianças. Vão chegar cansados e cheios de fome. Pergunto-me se não deveria fazer uns bolinhos." (p. 226).
História a um tempo densa e divertida, com um narrador notável de lucidez, humor e ironia, Celine confirma, uma vez mais, a "Caminho Jovens" como a melhor colecção de romances juvenis que em Portugal se editou nos anos 80 e 90 do século XX, graças à sábia selecção do editor José Oliveira.
Obra dirigida a adolescentes e a jovens adultos, Celine, acrescente-se, integra as listas do Plano Nacional de Leitura. Ainda bem que assim é.
José António Gomes
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)