Se algum dia nos fosse dado organizar uma antologia de contos portugueses para crianças da segunda metade do século XX, seria difícil resistir a nela integrar a primeira das duas histórias que compõem o volume O Senhor Pechincha, a qual, em tempos, deu pelo título de Mosquito e o Senhor Pechincha – por exemplo na velha edição de 1973, da Inova, com belas ilustrações a preto e branco de Júlio Resende, onde este conto ombreia com algumas das melhores narrativas de Ilse Losa, sob o título de Um Fidalgo de Pernas Curtas e Outras Histórias.
Merece, pois, apreço a reedição, em 1993, de O Senhor Pechincha (Porto: Afrontamento), quer pela nova roupagem que lhe é dada pelas ilustrações de António Lucena (um dos pseudónimos do pintor António Quadros que, na escrita, dava pelo nome de João Pedro Grabato Dias), quer pela companhia da história divertida do irreverente Bonifácio (a segunda do livro, inicialmente editada, em 1980, por Livros Horizonte, sob o título Bonifácio, com ilustrações do cartoonista Miranda). Este conto dá a conhecer um papagaio invulgar que, começando por ser bicho doméstico e acarinhado, terminou exibindo a sua incomodativa arte de imitar buzinas e autoclismos num hipermercado, um desses lugares que, nas palavras do narrador, «talvez sejam grandiosos, não sei bem, mas são lugares tristes para lá se passar a vida» (p. 47).
Não é difícil que ocorra o termo «realismo», quando nos dispomos a falar da maioria das narrativas infantis de Ilse Losa (que, diga-se de passagem, não ficou imune à influência neo-realista). Talvez por isso, esses contos possuam o condão de simultaneamente inquietar e cativar os seus pequenos leitores, como, por várias vezes, tivemos ocasião de comprovar. Com o seu final aberto e ambíguo, recusando moralismos fáceis, O Senhor Pechincha é justamente um desses casos.
Com acção situada numa pequena povoação do litoral nortenho, num quadro social de pobreza e fome (a qual determina boa parte da actuação de um dos protagonistas: o senhor Pechincha), a história expõe-nos a situação de Mosquito, criança de cinco anos iludida por um esfomeado vendedor de pequenos nadas. O terceiro protagonista é o pai da criança. Habitam ambos um casebre nas dunas e vivem da apanha do sargaço. Na ausência do pai, o vendedor ambulante abandona nas mãos do menino, como penhor, a mala com todos os seus «artigos». Recebe a única nota de cinco contos (cem escudos nas edições mais antigas do livro) de que a família dispunha até ao final do mês e, a pretexto de arranjar troco (uma vez que convencera Mosquito a comprar-lhe um pequeno brinquedo), dirige-se para a vila, onde não resiste a gastar boa parte do que recebera num duplo jantar. O resto da narrativa conta o reencontro das personagens, a recuperação de parte do dinheiro, as moderadas recriminações do pai de Mosquito e a compreensão deste último em relação às carências do vendedor ambulante.
Pechincha revela-se, desde o início, como uma figura ambígua. Misto de vagabundo e de sonhador, a sua fome e desespero são os limites da sua honestidade. O final da história deixa, portanto, o leitor na incerta esperança do cumprimento de uma promessa: o regresso deste vendedor de sonhos com o dinheiro em dívida.
Sábio doseador dos efeitos da sua narrativa, o narrador quase se limita a expor, a retratar com certo rigor um quadro humano e social, evitando toda e qualquer tentação judicativa. Ao leitor é dada a liberdade de imaginar e, eventualmente, julgar pelos seus próprios meios, não sem antes lhe ser dada a oportunidade de perceber as motivações da acção humana. Uma acção que surge, neste caso, condicionada por sonhos, frustrações e carências que relevam do social, mas também do afectivo, e que podem suscitar interrogações e curiosas discussões entre leitores de 8 a 11 anos.
António Torrado 1 descreveu bem a prosa da autora, ao afirmar: «Ilse Losa não nasceu na nossa língua, mas foi na nossa língua que se afirmou como escritora. Pródiga transfusão para ambas as partes! No trânsito da língua veicular à íntima união com a escritora, a estrutura linguística adquiriu uma modulação frásica irreproduzível por outra pena.» E acrescenta: «Nas histórias de Ilse, há uma serenidade narrativa de linha de horizonte. As histórias fluem, crescem, acrescentam-se pela vontade própria do acto de contar. Não trazem recados extra, de moral mais ou menos perfilada, nem se ademanam, buscando adular o público a que prioritariamente se destinam.»
Este parece ser o estilo de narração capaz de traduzir as preocupações de uma autora que, em crónica antiga 2, publicada no Diário de Notícias, ao comentar Rosa Bianca, de Roberto Innocenti, escrevia estas palavras de indesmentível lucidez: «Provavelmente é pretensão do adulto supor que as crianças querem saber unicamente de histórias que as divertem. Não é o caso, porque elas vivem os seus próprios dramas e, por vezes, bem dolorosos. O que não quer dizer que deixemos de as transportar para o reino da fantasia e dos sonhos, da diversão e do humor. Elas têm espaço em si para assimilar os vários aspectos do mundo e da vida. Confrontá-las com os grandes males talvez as motive, desde cedo, a combatê-los mais tarde.»
Notas
1 António Torrado (1990). O Bosque Mínimo, Lisboa: Instituto de Apoio à Criança, p. 26.
2 Ilse Losa (1986). «Contar ou ocultar?», Diário de Notícias, 4 de Novembro.
José António Gomes
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)