Conheci pessoalmente Matilde Rosa Araújo em 1989, em Lisboa, na sessão de lançamento desse belo romance juvenil que é Os Olhos de Ana Marta, de Alice Vieira. A cave da Livraria Barata era pequena para albergar tanta gente conhecida e menos conhecida, todos amigos da autora de Rosa Minha Irmã Rosa. Começara, há pouco tempo, a publicar recensões críticas sobre literatura para crianças e a Caminho convidara-me por isso a apresentar o livro. Estávamos em vésperas do Natal, o frio era cortante, eu andava sufocado de trabalho e o meu texto acabou de se escrever no automóvel, em plena A1, sentido Porto-Lisboa, ao lado de uma motorista simpática e que sabe compreender, quase sempre, o meu silêncio nervoso e a minha fleuma de futuro cardíaco. Lembro-me que um dos «meus» poetas, o grego Iannis Ritsos, havia morrido dias antes e entendi por bem homenageá-lo, integrando, no texto de apresentação, um dos seus pungentes poemas sobre as crianças mortas – já que me parecia especialmente talhado para fazer entender, de modo mais intenso, a dor das personagens de Alice Vieira.
Foi nesse dia que conheci o José Oliveira. No fim do discurso, Dias Lourenço veio felicitar-me pela «bela peça literária» que eu acabava de ler (sempre foi um homem por de mais generoso...). A Matilde não. A Matilde acercou-se de mim e sussurrou-me ao ouvido que gostara da minha voz (apresso-me a informar que, nessa altura, eu não fumava). Conversámos um pouco e eu disse-lhe que estava a escrever parte de uma tese sobre a sua obra. Os olhos sorriram-se-lhe, naquele peculiar jeito de exprimir gratidão de que só ela era dona e senhora. Marcámos um encontro para mais tarde e partiu, cada um de nós, para o seu Natal.
Meses depois, reencontrei-a em Santarém, num colóquio, e percebi que, discretamente, quase a pedir desculpa, Matilde viajara para me ouvir falar da sua escrita. Pude conhecer, então, uma faceta insuspeitada do seu carácter. Não hesitou, nunca, em acompanhar o nosso grupo de aprendizes de conferencistas, nas andanças sociais e nas conversas intermináveis com que costumávamos encher as horas (à medida que íamos esvaziando os copos), quando a ocasião era propícia. Se juventude ali havia, era a dela. A aparente fragilidade escondia, de facto, energia interior e uma capacidade de comoção com a vida indissociável de uma fina ironia e de um sentido de humor com que, não poucas vezes, nos surpreendia.
Descobri ainda que falar com Matilde significava ter a oportunidade de rememorar figuras relevantes da nossa vida cultural das seis últimas décadas. Pelas suas palavras comovidas perpassavam, constantemente, vultos que nos habituámos a venerar, gente que fez parte do círculo afectivo desta Senhora que sabia, como poucos, cultivar aquele princípio, que era apanágio da arte e da vida de Antoine de Saint-Exupéry: «Só há um luxo verdadeiro: o das relações humanas». Irene Lisboa, Lopes Graça, Sebastião da Gama, Jacinto do Prado Coelho, Torga, Maria Keil eram apenas alguns dos nomes que afluíam, com frequência, à memória de Matilde, que parecia ter nascido para dar graças por existir e por ter encontrado um mundo povoado de Amigos.
Alguns meses decorridos, já na recta final da minha dissertação, tivemos, enfim, ocasião de conversar mais longamente sobre a vida e a escrita, folhear os seus álbuns de recordações, com um gravador por perto, respirar o silêncio povoado da sua casa de poeta, numa rua do centro da capital. Tudo se passou numa daquelas tardes de sol e azul de que só Lisboa detém o segredo.
Não me lembro se a rua onde ela morava era ruidosa. Naquele dia, seguramente não o era. Não sei se a sombra das árvores acariciava a sua janela. Naquele dia, seguramente acariciava. Não sei se os pássaros vinham pousar nos ramos dessas árvores. Naquele dia, seguramente vieram. Não sei se se ouviam risos de crianças. Daquele dia, guardo a memória de os ter ouvido. Era, pois, com toda a certeza, uma casa de poeta, numa tarde de poeta. E eu sorria para mim ao ouvir-lhe negar, com um olhar meio sério, meio maroto, que a Tila dos seus primeiros livros fosse uma projecção autobiográfica da jovem Matilde – essa Tila franciscana que falava com os animais e as plantas, e conversava com a pobre gente de Lisboa: o caixeiro, a lavadeira, o varredor do jardim, o vendedor de castanhas. A Tila que dialogava com a mãe, enamorada da sua beleza, ou confidenciando-lhe os estremecimentos dos seus primeiros amores de menina.
Pelo fim da tarde, descemos as escadas, abandonámos aquela sala povoada de rostos e objectos tocados pelo afecto, mergulhada numa acolhedora semi-obscuridade. À porta, estava tão ocupado com o fio da conversa, com o agradecer-lhe e desejar-lhe felicidade, que não reparei, como ela reparou, numa criança descendo a rua, de mão dada com a mãe, que reteve, com a sua graça de menino, o menino olhar de Matilde, sempre atento ao mais ínfimo pulsar da vida – como, de resto, podemos comprovar, lendo os seus versos.
Depois dessa tarde, continuámos a dialogar. Sempre. Por carta, por telefone, nas muitas vezes em que nos encontrámos e partilhámos alegrias ou sombras. E a sua voz, falada ou escrita, soube invariavelmente trazer-me as palavras que eu precisava de ouvir, sobretudo nos momentos mais ásperos da minha vida. Por isso lhe estou grato. E também por me ter ensinado duas coisas: a tomar o sabor, vagarosamente, à mais pequena palavra de cada texto, e a descobrir que ela, Matilde, fazia afinal parte da minha família de poetas.
Ao pensar no primeiro destes ensinamentos, ou seja, ao recordar as diversas vezes em que ouvi Matilde ler em voz alta, em público (na Gulbenkian, na homenagem em Gaia a Maria Alberta Menéres ou noutros locais...), vêm-me à memória uns versos do poeta galego Manuel Maria: «Algum dia viste o mar / com seus roncos e furores, / suas espumas de prata, / seus barcos e pescadores? / (...) Algum dia viste o mar? / Que sabes da sua espuma? / Se tu nunca viste o mar, / Não viste coisa nenhuma!» O que quero, no fim de contas, dizer é que quem nunca ouviu Matilde ler um texto em voz alta, não ouviu coisa nenhuma. E ainda: que devo à sua leitura oral o ter compreendido a verdadeira respiração da sua escrita, o segredo da sua delicada dicção, o peso de cada palavra nas frases de aparência simples que construía. Em suma, o seu estilo quase minimal. Os contos de Matilde foram escritos para ser lidos em voz alta, pausadamente, tentando conservar o halo que envolve cada um dos pequenos segmentos frásicos que os compõem, como se, no seu texto, empreendêssemos uma viagem até aos primórdios de cada palavra, para, enfim, a olharmos, pura, no seu casulo original.
Quando penso nos poetas «da minha família», de imediato me vêm à mente alguns nomes: Paul Celan, Cavafis, Octavio Paz, Lawrence Ferlinghetti, Carlos de Oliveira, Herberto Hélder, o António Ramos Rosa do Ciclo do Cavalo, que sei eu?... Perante tais nomes, poderia parecer estranho que a Matilde fizesse parte da «família». Só que estes pertencem ao seu ramo paterno. E há, naturalmente, um lado materno, decididamente menos obscuro e visceral.
Seria, então, forçado a citar outras vozes. Aquelas cuja aparente inocência me fascina. Aquelas cuja poesia é uma espécie de água corrente que me conduz, por vezes, ao reino dos amores límpidos, das coisas breves e leves (que em nada se confundem com o que é da ordem do superficial) e dos sentimentos ainda nomeáveis, sejam eles eufóricos ou disfóricos. Chego, então, a outros nomes e outras poéticas: às cantigas de amigo e ao cancioneiro popular, e também a um certo Lorca, a Saul Dias, a Sebastião da Gama… a Matilde Rosa Araújo. Poetas que aprecio, não sei bem dizer porquê. Talvez por neles entrever algo de comum e que me é caro: o dom de me conduzirem a uma espécie de ingénuo universo mítico da poesia, que encontra paralelo nos desenhos de Lorca, de Júlio e do seu mestre Chagall, ou em algumas ilustrações de Maria Keil (a grande cúmplice de Matilde, em numerosos livros).
(Um parêntesis: nestas listas, terei de incluir a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen – mas essa está demasiado próxima dos deuses e do intangível, para que eu possa, sem hesitações, trazê-la para o lado paterno ou materno da minha família de poetas. Digamos que a colocaria ao centro, na certeza de que se ousasse olhá-la de frente, queimaria as pupilas com o seu esplendor.)
Este discurso contaminado pelo afecto e pela saudade, dificilmente defensável enquanto modelo de clareza, serve também para tentar justificar (aqui, onde os teóricos e os críticos não me podem ouvir), a atracção por certas vozes que pertencem ao lado materno da minha família de poetas. Para mim, a escrita de Matilde Rosa Araújo habita esse espaço. Por isso continuarei a ler os seus contos e poemas. Sem preconceitos, devagarosamente, ora tomando o peso a cada palavra, como se tivesse sido pronunciada pela vez primeira, ora ouvindo ecoar nos seus versos antiquíssimas canções populares.
Obrigado, querida Matilde, por continuar a existir em mim e pelo muito que me deu: os seus livros e a sua infinita bondade.
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto