domingo, 25 de julho de 2010

Ilse Losa e O Senhor Pechincha

Se algum dia nos fosse dado organizar uma antologia de contos portugueses para crianças da segunda metade do século XX, seria difícil resistir a nela integrar a primeira das duas histórias que compõem o volume O Senhor Pechincha, a qual, em tempos, deu pelo título de Mosquito e o Senhor Pechincha – por exemplo na velha edição de 1973, da Inova, com belas ilustrações a preto e branco de Júlio Resende, onde este conto ombreia com algumas das melhores narrativas de Ilse Losa, sob o título de Um Fidalgo de Pernas Curtas e Outras Histórias.

Merece, pois, apreço a reedição, em 1993, de O Senhor Pechincha (Porto: Afrontamento), quer pela nova roupagem que lhe é dada pelas ilustrações de António Lucena (um dos pseudónimos do pintor António Quadros que, na escrita, dava pelo nome de João Pedro Grabato Dias), quer pela companhia da história divertida do irreverente Bonifácio (a segunda do livro, inicialmente editada, em 1980, por Livros Horizonte, sob o título Bonifácio, com ilustrações do cartoonista Miranda). Este conto dá a conhecer um papagaio invulgar que, começando por ser bicho doméstico e acarinhado, terminou exibindo a sua incomodativa arte de imitar buzinas e autoclismos num hipermercado, um desses lugares que, nas palavras do narrador, «talvez sejam grandiosos, não sei bem, mas são lugares tristes para lá se passar a vida» (p. 47).

Não é difícil que ocorra o termo «realismo», quando nos dispomos a falar da maioria das narrativas infantis de Ilse Losa (que, diga-se de passagem, não ficou imune à influência neo-realista). Talvez por isso, esses contos possuam o condão de simultaneamente inquietar e cativar os seus pequenos leitores, como, por várias vezes, tivemos ocasião de comprovar. Com o seu final aberto e ambíguo, recusando moralismos fáceis, O Senhor Pechincha é justamente um desses casos.

Com acção situada numa pequena povoação do litoral nortenho, num quadro social de pobreza e fome (a qual determina boa parte da actuação de um dos protagonistas: o senhor Pechincha), a história expõe-nos a situação de Mosquito, criança de cinco anos iludida por um esfomeado vendedor de pequenos nadas. O terceiro protagonista é o pai da criança. Habitam ambos um casebre nas dunas e vivem da apanha do sargaço. Na ausência do pai, o vendedor ambulante abandona nas mãos do menino, como penhor, a mala com todos os seus «artigos». Recebe a única nota de cinco contos (cem escudos nas edições mais antigas do livro) de que a família dispunha até ao final do mês e, a pretexto de arranjar troco (uma vez que convencera Mosquito a comprar-lhe um pequeno brinquedo), dirige-se para a vila, onde não resiste a gastar boa parte do que recebera num duplo jantar. O resto da narrativa conta o reencontro das personagens, a recuperação de parte do dinheiro, as moderadas recriminações do pai de Mosquito e a compreensão deste último em relação às carências do vendedor ambulante.

Pechincha revela-se, desde o início, como uma figura ambígua. Misto de vagabundo e de sonhador, a sua fome e desespero são os limites da sua honestidade. O final da história deixa, portanto, o leitor na incerta esperança do cumprimento de uma promessa: o regresso deste vendedor de sonhos com o dinheiro em dívida.

Sábio doseador dos efeitos da sua narrativa, o narrador quase se limita a expor, a retratar com certo rigor um quadro humano e social, evitando toda e qualquer tentação judicativa. Ao leitor é dada a liberdade de imaginar e, eventualmente, julgar pelos seus próprios meios, não sem antes lhe ser dada a oportunidade de perceber as motivações da acção humana. Uma acção que surge, neste caso, condicionada por sonhos, frustrações e carências que relevam do social, mas também do afectivo, e que podem suscitar interrogações e curiosas discussões entre leitores de 8 a 11 anos.

António Torrado 1 descreveu bem a prosa da autora, ao afirmar: «Ilse Losa não nasceu na nossa língua, mas foi na nossa língua que se afirmou como escritora. Pródiga transfusão para ambas as partes! No trânsito da língua veicular à íntima união com a escritora, a estrutura linguística adquiriu uma modulação frásica irreproduzível por outra pena.» E acrescenta: «Nas histórias de Ilse, há uma serenidade narrativa de linha de horizonte. As histórias fluem, crescem, acrescentam-se pela vontade própria do acto de contar. Não trazem recados extra, de moral mais ou menos perfilada, nem se ademanam, buscando adular o público a que prioritariamente se destinam.»

Este parece ser o estilo de narração capaz de traduzir as preocupações de uma autora que, em crónica antiga 2, publicada no Diário de Notícias, ao comentar Rosa Bianca, de Roberto Innocenti, escrevia estas palavras de indesmentível lucidez: «Provavelmente é pretensão do adulto supor que as crianças querem saber unicamente de histórias que as divertem. Não é o caso, porque elas vivem os seus próprios dramas e, por vezes, bem dolorosos. O que não quer dizer que deixemos de as transportar para o reino da fantasia e dos sonhos, da diversão e do humor. Elas têm espaço em si para assimilar os vários aspectos do mundo e da vida. Confrontá-las com os grandes males talvez as motive, desde cedo, a combatê-los mais tarde.»

Notas

1 António Torrado (1990). O Bosque Mínimo, Lisboa: Instituto de Apoio à Criança, p. 26.

2 Ilse Losa (1986). «Contar ou ocultar?», Diário de Notícias, 4 de Novembro.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

terça-feira, 6 de julho de 2010

Matilde Rosa Araújo (1921-2010) – Para uma fada chamada Matilde

Conheci pessoalmente Matilde Rosa Araújo em 1989, em Lisboa, na sessão de lançamento desse belo romance juvenil que é Os Olhos de Ana Marta, de Alice Vieira. A cave da Livraria Barata era pequena para albergar tanta gente conhecida e menos conhecida, todos amigos da autora de Rosa Minha Irmã Rosa. Começara, há pouco tempo, a publicar recensões críticas sobre literatura para crianças e a Caminho convidara-me por isso a apresentar o livro. Estávamos em vésperas do Natal, o frio era cortante, eu andava sufocado de trabalho e o meu texto acabou de se escrever no automóvel, em plena A1, sentido Porto-Lisboa, ao lado de uma motorista simpática e que sabe compreender, quase sempre, o meu silêncio nervoso e a minha fleuma de futuro cardíaco. Lembro-me que um dos «meus» poetas, o grego Iannis Ritsos, havia morrido dias antes e entendi por bem homenageá-lo, integrando, no texto de apresentação, um dos seus pungentes poemas sobre as crianças mortas – já que me parecia especialmente talhado para fazer entender, de modo mais intenso, a dor das personagens de Alice Vieira.

Foi nesse dia que conheci o José Oliveira. No fim do discurso, Dias Lourenço veio felicitar-me pela «bela peça literária» que eu acabava de ler (sempre foi um homem por de mais generoso...). A Matilde não. A Matilde acercou-se de mim e sussurrou-me ao ouvido que gostara da minha voz (apresso-me a informar que, nessa altura, eu não fumava). Conversámos um pouco e eu disse-lhe que estava a escrever parte de uma tese sobre a sua obra. Os olhos sorriram-se-lhe, naquele peculiar jeito de exprimir gratidão de que só ela era dona e senhora. Marcámos um encontro para mais tarde e partiu, cada um de nós, para o seu Natal.

Meses depois, reencontrei-a em Santarém, num colóquio, e percebi que, discretamente, quase a pedir desculpa, Matilde viajara para me ouvir falar da sua escrita. Pude conhecer, então, uma faceta insuspeitada do seu carácter. Não hesitou, nunca, em acompanhar o nosso grupo de aprendizes de conferencistas, nas andanças sociais e nas conversas intermináveis com que costumávamos encher as horas (à medida que íamos esvaziando os copos), quando a ocasião era propícia. Se juventude ali havia, era a dela. A aparente fragilidade escondia, de facto, energia interior e uma capacidade de comoção com a vida indissociável de uma fina ironia e de um sentido de humor com que, não poucas vezes, nos surpreendia.

Descobri ainda que falar com Matilde significava ter a oportunidade de rememorar figuras relevantes da nossa vida cultural das seis últimas décadas. Pelas suas palavras comovidas perpassavam, constantemente, vultos que nos habituámos a venerar, gente que fez parte do círculo afectivo desta Senhora que sabia, como poucos, cultivar aquele princípio, que era apanágio da arte e da vida de Antoine de Saint-Exupéry: «Só há um luxo verdadeiro: o das relações humanas». Irene Lisboa, Lopes Graça, Sebastião da Gama, Jacinto do Prado Coelho, Torga, Maria Keil eram apenas alguns dos nomes que afluíam, com frequência, à memória de Matilde, que parecia ter nascido para dar graças por existir e por ter encontrado um mundo povoado de Amigos.

Alguns meses decorridos, já na recta final da minha dissertação, tivemos, enfim, ocasião de conversar mais longamente sobre a vida e a escrita, folhear os seus álbuns de recordações, com um gravador por perto, respirar o silêncio povoado da sua casa de poeta, numa rua do centro da capital. Tudo se passou numa daquelas tardes de sol e azul de que só Lisboa detém o segredo.

Não me lembro se a rua onde ela morava era ruidosa. Naquele dia, seguramente não o era. Não sei se a sombra das árvores acariciava a sua janela. Naquele dia, seguramente acariciava. Não sei se os pássaros vinham pousar nos ramos dessas árvores. Naquele dia, seguramente vieram. Não sei se se ouviam risos de crianças. Daquele dia, guardo a memória de os ter ouvido. Era, pois, com toda a certeza, uma casa de poeta, numa tarde de poeta. E eu sorria para mim ao ouvir-lhe negar, com um olhar meio sério, meio maroto, que a Tila dos seus primeiros livros fosse uma projecção autobiográfica da jovem Matilde – essa Tila franciscana que falava com os animais e as plantas, e conversava com a pobre gente de Lisboa: o caixeiro, a lavadeira, o varredor do jardim, o vendedor de castanhas. A Tila que dialogava com a mãe, enamorada da sua beleza, ou confidenciando-lhe os estremecimentos dos seus primeiros amores de menina.

Pelo fim da tarde, descemos as escadas, abandonámos aquela sala povoada de rostos e objectos tocados pelo afecto, mergulhada numa acolhedora semi-obscuridade. À porta, estava tão ocupado com o fio da conversa, com o agradecer-lhe e desejar-lhe felicidade, que não reparei, como ela reparou, numa criança descendo a rua, de mão dada com a mãe, que reteve, com a sua graça de menino, o menino olhar de Matilde, sempre atento ao mais ínfimo pulsar da vida – como, de resto, podemos comprovar, lendo os seus versos.

Depois dessa tarde, continuámos a dialogar. Sempre. Por carta, por telefone, nas muitas vezes em que nos encontrámos e partilhámos alegrias ou sombras. E a sua voz, falada ou escrita, soube invariavelmente trazer-me as palavras que eu precisava de ouvir, sobretudo nos momentos mais ásperos da minha vida. Por isso lhe estou grato. E também por me ter ensinado duas coisas: a tomar o sabor, vagarosamente, à mais pequena palavra de cada texto, e a descobrir que ela, Matilde, fazia afinal parte da minha família de poetas.

Ao pensar no primeiro destes ensinamentos, ou seja, ao recordar as diversas vezes em que ouvi Matilde ler em voz alta, em público (na Gulbenkian, na homenagem em Gaia a Maria Alberta Menéres ou noutros locais...), vêm-me à memória uns versos do poeta galego Manuel Maria: «Algum dia viste o mar / com seus roncos e furores, / suas espumas de prata, / seus barcos e pescadores? / (...) Algum dia viste o mar? / Que sabes da sua espuma? / Se tu nunca viste o mar, / Não viste coisa nenhuma!» O que quero, no fim de contas, dizer é que quem nunca ouviu Matilde ler um texto em voz alta, não ouviu coisa nenhuma. E ainda: que devo à sua leitura oral o ter compreendido a verdadeira respiração da sua escrita, o segredo da sua delicada dicção, o peso de cada palavra nas frases de aparência simples que construía. Em suma, o seu estilo quase minimal. Os contos de Matilde foram escritos para ser lidos em voz alta, pausadamente, tentando conservar o halo que envolve cada um dos pequenos segmentos frásicos que os compõem, como se, no seu texto, empreendêssemos uma viagem até aos primórdios de cada palavra, para, enfim, a olharmos, pura, no seu casulo original.

Quando penso nos poetas «da minha família», de imediato me vêm à mente alguns nomes: Paul Celan, Cavafis, Octavio Paz, Lawrence Ferlinghetti, Carlos de Oliveira, Herberto Hélder, o António Ramos Rosa do Ciclo do Cavalo, que sei eu?... Perante tais nomes, poderia parecer estranho que a Matilde fizesse parte da «família». Só que estes pertencem ao seu ramo paterno. E há, naturalmente, um lado materno, decididamente menos obscuro e visceral.

Seria, então, forçado a citar outras vozes. Aquelas cuja aparente inocência me fascina. Aquelas cuja poesia é uma espécie de água corrente que me conduz, por vezes, ao reino dos amores límpidos, das coisas breves e leves (que em nada se confundem com o que é da ordem do superficial) e dos sentimentos ainda nomeáveis, sejam eles eufóricos ou disfóricos. Chego, então, a outros nomes e outras poéticas: às cantigas de amigo e ao cancioneiro popular, e também a um certo Lorca, a Saul Dias, a Sebastião da Gama… a Matilde Rosa Araújo. Poetas que aprecio, não sei bem dizer porquê. Talvez por neles entrever algo de comum e que me é caro: o dom de me conduzirem a uma espécie de ingénuo universo mítico da poesia, que encontra paralelo nos desenhos de Lorca, de Júlio e do seu mestre Chagall, ou em algumas ilustrações de Maria Keil (a grande cúmplice de Matilde, em numerosos livros).

(Um parêntesis: nestas listas, terei de incluir a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen – mas essa está demasiado próxima dos deuses e do intangível, para que eu possa, sem hesitações, trazê-la para o lado paterno ou materno da minha família de poetas. Digamos que a colocaria ao centro, na certeza de que se ousasse olhá-la de frente, queimaria as pupilas com o seu esplendor.)

Este discurso contaminado pelo afecto e pela saudade, dificilmente defensável enquanto modelo de clareza, serve também para tentar justificar (aqui, onde os teóricos e os críticos não me podem ouvir), a atracção por certas vozes que pertencem ao lado materno da minha família de poetas. Para mim, a escrita de Matilde Rosa Araújo habita esse espaço. Por isso continuarei a ler os seus contos e poemas. Sem preconceitos, devagarosamente, ora tomando o peso a cada palavra, como se tivesse sido pronunciada pela vez primeira, ora ouvindo ecoar nos seus versos antiquíssimas canções populares.

Obrigado, querida Matilde, por continuar a existir em mim e pelo muito que me deu: os seus livros e a sua infinita bondade.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto