Foi um dos mais inovadores protagonistas do teatro para a infância, em Portugal, nas décadas que se seguiram ao 25 de Abril de 1974. Fundador e director artístico do Teatro de Marionetas do Porto, cenógrafo, escritor e professor de interpretação teatral, João Paulo Seara Cardoso (1956-2010) imprimiu, desde sempre, ao seu trabalho uma dimensão investigativa. Sem fazer tábua rasa da tradição, ao contrário de outros, a sua paixão pelas marionetas radicava num estudo dedicado à pesquisa e reconstituição do Teatro Dom Roberto (fantoches populares portugueses). Costumava, assim, afirmar que herdara de Mestre António Dias esta secular tradição a que quis e soube dar continuidade. Neste contexto, a criação do Museu da Marioneta, na histórica e camiliana Rua das Flores, no Porto, era o seu mais recente projecto.
O talento e saber de João Paulo Seara Cardoso foram postos, também, ao serviço de diversas companhias e instituições ligadas ao teatro e à ópera, para as quais encenou espectáculos. William Shakespeare, António José da Silva, Lewis Carroll, A. A. Milne, Alfred Jarry, Almada Negreiros, Aquilino Ribeiro, Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Gregory Motton, Heiner Müller, Marguerite Duras, Al Berto e Luísa Costa Gomes foram alguns dos autores cujos textos levou à cena.
Com um impressivo currículo de encenação e montagem de espectáculos, em Portugal e no estrangeiro, a que se somam inesquecíveis trabalhos para televisão (A Árvore dos Patafúrdios, Os Amigos do Gaspar, Mópi e No Tempo dos Afonsinhos), João Paulo Seara Cardoso era também um relevante autor de livros para a infância, quase todos resultantes da sua actividade teatral (Óscar, Campo das Letras, 2003; Bichos do Bosque, Campo das Letras, 2008; O Senhor…, Porto Editora, 2008, entre outros títulos). Merece, por isso, releitura atenta o ensaio de Paula Garcia, «João Paulo Seara Cardoso: uma escrita “funcional” no teatro para a infância», em boa hora publicado no n.º 18 de Malasartes, de Maio de 2010 (pp. 36-43).
A derradeira produção teatral de Seara Cardoso, em cena no Porto à data da sua morte (29-10-2010), foi Cinderela, que se encontra na origem do último livro infantil que publicou (em Outubro de 2010), com a chancela da Porto Editora, na colecção Oficina dos Sonhos – texto potenciado pelas excelentes ilustrações de João Vaz de Carvalho.
Singular exemplo de recriação hipertextual e de releitura parodística de um clássico (que nos traz à memória Gianni Rodari ou Roald Dahl e as suas Revolting Rhymes), Cinderela constitui um admirável momento de humor, caricatura e ritmo dramáticos, quer pelo cómico de situações e de linguagem que tão bem explora (incorporando, por exemplo, um registo abrasileirado no discurso de várias personagens) quer pelo modo como entretece prosa e verso, narrativa e drama, quer ainda pela convocação de figuras oriundas de outros contos. E isto para não falar da cómica subversão dos traços psicológicos de algumas das personagens da história tradicional, ou das muitas alusões jocosas e críticas ao presente, a permitirem manter vivo, actual e actuante o velho enredo contado por Perrault (em finais do século XVII), por Jacob e Wilhelm Grimm (no século XX) e por outros ainda.
José António Gomes
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto