Folheio o livro já amarelecido pelos anos e abro-o numa página ao acaso, justamente na passagem em que o Principezinho exprime a sua revolta contra os homens que apenas sabem fazer adições e nunca conheceram o prazer de aspirar o perfume de uma flor (pp. 28-30). Atentando na actualidade dessas palavras (e da obra de Saint-Exupéry), não consigo deixar de associar tal meditação a uma frase sobre os personagens que, na Europa de hoje, dominam a economia e a política. Escrita por Czeslaw Milosz, descubro-a numa crónica de Eduardo Prado Coelho («O velho continente», Público, 6/7/2000): «Estes homens de negócios com olhares nulos e sorrisos atrofiados… Foi a estes vermes que veio desembocar uma tão delicada e complexa civilização?»
O autor de Vol de Nuit foi, talvez, um dos derradeiros representantes dessa civilização e O Principezinho, além de poder ser lido como crítica ao envelhecimento do espírito e ao agressivo materialismo tecnocrático, anti-ecológico, do mundo contemporâneo, é também uma exaltação, já ferida pela melancolia, do valor dos ritos e da arte de construir afectos («Só há um luxo verdadeiro: o das relações humanas» – escreveu um dia o autor). Mas O Principezinho parece ser, acima de tudo, um canto à magia da infância que subsiste em cada adulto e que os anos não deveriam esboroar.
Talvez por tudo isto, não estejamos propriamente ante um livro para crianças. A dedicatória – «A Léon Werth quando era rapazinho» – parece confirmá-lo: «Quero dedicar este livro à criança que foi outrora essa pessoa crescida» (…) porque «todas as pessoas crescidas foram primeiro crianças» (p. 7).
Essa é, aliás, a única razão que encontro para o facto de o meu livro manter três flores, que o tempo secou, entre as já citadas páginas de censura aos «homens sérios», os que nunca aspiraram o perfume de uma flor nem contemplaram uma estrela. Impulso do adolescente que fui? Derradeiros traços desse período do fim da juventude em que descobri a obra de Saint-Exupéry? Talvez. Mas, precisamente porque não me olho ainda como um homem demasiado sério e entregue ao «mundo das adições», fecho O Principezinho e conservo as flores secas guardadas entre as suas páginas.
Uma última nota, quase deslocada neste testemunho: já se terá reparado que, sem as ingénuas aguarelas do autor, o texto de Saint-Exupéry era outra coisa? Na esteira de Beatrix Potter e de alguns outros, Saint-Ex, esse terno moralista, era quase um moderno e, conquanto não tenha produzido um picture story book, prenunciava, com o seu livro, a actual gramática do género, ou seja, a de uma narrativa construída segundo um princípio de articulação e complementaridade entre palavra e imagem.
José António Gomes
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)