Embora tenham sido editados no nosso país, escritores brasileiros como Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, Ruth Rocha ou Ziraldo não lograram ainda atrair a atenção que as suas obras inquestionavelmente merecem.
Na comunidade dos países de língua oficial portuguesa, o nome de Lygia Bojunga Nunes assume relevo especial, por se tratar do primeiro autor deste imenso espaço linguístico contemplado com a distinção internacional de maior prestígio no domínio da literatura para a infância e juventude: o Prémio Hans Christian Andersen (de 1982), atribuído pelo International Board on Books for Young People.
Após Corda Bamba (Lisboa: Caravela, 1988) e A Bolsa Amarela (Porto: Edinter, 1989), viria a lume O Sofá Estampado (Lisboa: Verbo, 1992; ilustrações de Cristina Malaquias), cujo texto, na edição portuguesa, surge fixado por Natércia Rocha – escritora, crítica e historiadora da literatura para a infância que, entre nós, desenvolveu um louvável trabalho, praticamente solitário, de divulgação da obra da escritora brasileira.
Em O Sofá Estampado, Lygia apresenta a história de Vítor, um jovem tatu tímido e inseguro, com dificuldade em impor-se num mundo que constantemente o agride e que não parece feito à sua medida. O problema agudiza-se perante Dalva, a gata angorá por quem se apaixona. Passando todo o tempo diante da televisão, Dalva vive numa desatenção exasperante em relação ao que se passa em seu redor. Em situações críticas como esta, Vítor tosse até quase sufocar e escava buracos no solo que o levam a viajar até tempos e espaços que marcaram a sua vida passada.
Este dispositivo ora permite o aparecimento de analepses explicativas, ora abre caminho rumo a outras histórias de vida, protagonizadas por personagens cujos caminhos se cruzaram, de uma forma ou de outra, com o do jovem tatu: sua Avó, Dona Popó, o Inventor, Dalva... Do contacto com as experiências de todos eles se vai nutrindo a personalidade que Vítor (o protagonista-animal-menino) a pouco e pouco constrói. À medida que cresce e aprende o mundo, socializa-se e sofre, num teatro de sentimentos e conflitos de assinalável riqueza em termos humanos (porque é da condição humana que aqui se fala, pese embora o herói ser um animal).
Da história o leitor guardará, sem dúvida, uma nota de esperança sobre a construção de uma identidade pessoal. A ela se sobrepõe, contudo, a consciência da complexidade da vida. E aí reside, enfim, o sentido educativo da obra. Recusando a simplificação e encaixando, na narração de uma via dolorosa e comovente, sequências extraordinariamente divertidas, O Sofá Estampado é bem um exemplo daquilo a que Natércia Rocha, no prefácio a Corda Bamba, chama «uma imaginação rica, colorida, com raízes no real mas não perdendo o contacto com o sonho, a reflexão interior, a aventura do viver futuro».
Ultrapassadas as primeiras páginas, o leitor percebe que não se encontra apenas perante mais uma história simplista de animais humanizados (e no entanto, as preocupações de ordem ambiental marcam presença), mas sim a ler um texto que, na sua extraordinária economia de meios, o confronta com um complexo de tópicos em que avultam a identidade e a alteridade, o isolamento e a socialização, a regressão e o crescimento, a morte e o desejo.
Se a isto se acrescentar a evidência de um estilo trabalhado com saber e minúcia, que aproxima o discurso escrito de um registo próximo do da narração oral, fácil será concluir que nos encontramos perante um livro de invulgar qualidade.
José António Gomes
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)