quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Histórias com Juízo, de Mário Castrim

Histórias com Juízo (4ª ed., Lisboa: Caminho, 1993) foi um livro inicialmente publicado em 1969 e sujeito, na edição em apreço, a alterações de pormenor. Assinale-se, desde já, que o título, à primeira vista, é enganador, pois é possível encontrar na obra o poema em verso ou em prosa e a historieta (uma a duas páginas, por vezes dois ou três escassos parágrafos) – a lembrar, aqui e acolá, as Favole al Telefono, esses pequenos prodígios de humor surrealizante publicados por Gianni Rodari em 1962 e 1971, e traduzidos e editados pela Teorema em 1987 e 1988.Negrito
Juntamente com O Livro de Marianinha (1967), de Aquilino Ribeiro, O Cantar da Tila (1967), de Matilde Rosa Araújo, e Conversas com Versos (1968) e Figuras Figuronas (1969), de Maria Alberta Menéres, Histórias com Juízo constitui um dos títulos mais interessantes da poesia para crianças e jovens editada em finais dos anos 60, numa altura em que este tipo de escrita ousava, enfim, libertar-se de um certo infantilismo e da expressão de tendências nacionalistas que, em décadas anteriores, a haviam inquinado.

Com alguns dos textos deste livro, Mário Castrim inaugura, na nossa poesia para jovens, uma atitude mais experimental, em alguns aspectos próxima até de certas práticas da chamada poesia concreta. Destaque-se, a título de exemplo, a criativa organização grafico-visual de três ou quatro textos – a qual, na antiga edição da Plátano, chegava a surgir em interacção dinâmica com a própria ilustração. Registe-se ainda que o autor aprofundará esta experiência, em 1977, com um livro de assinalável qualidade escrito a partir do alfabeto: Estas São as Letras.

Os textos povoam-se de objectos, frutos e animais, ocasionalmente humanizados, e oscilam, como já se disse, entre o poema e o micro-conto em prosa, destacando-se aqui e ali, adivinhas poéticas, textos imbuídos de um aparente nonsense – que nunca é inocente – e pequenos poemas em prosa de um lirismo tocante: «Tapete voador – Eu sou o tapete. || Conheço os passos das pessoas. Quando as pessoas estão quietas, oiço bater o coração delas na planta dos pés. || Aqui onde me vêem, já fui uma pessoa muito importante. Quando não havia aviões e helicópteros, era eu quem levava os homens a viajar. Em vez de gasolina, os homens diziam umas palavras. Era mais barato, mas muito mais difícil, porque as tais palavras é preciso conhecê-las. || Se tu as conheces, diz. Diz depressa. Faz de mim agora e sempre um tapete voador.» (p. 74).

Na esclarecedora apresentação da contracapa (saída, por certo, da pena do autor) pode-se ler que «todas as histórias têm juízo. Todas. Principalmente aquelas que parecem não ter juízo nenhum.» Na verdade, é disto que se trata, ou seja de diálogos e poemas que estimulam a descobrir a verdade escondida de cada coisa, a encontrar o nexo poético que estrutura o aparente (?) absurdo da realidade, aproveitando para minar, uma vez mais, a confiança na seriedade do discurso – e, neste ponto, utilizo intencionalmente palavras de Fátima Maldonado, escritas a propósito de Lewis Carroll (um dos antepassados literários de Castrim). Leia-se, por exemplo, o texto «Corre, corre, corredor»: «Era uma vez um corredor atravancado de cadeiras, vasos, prateleiras, mesas. Era um corredor muito triste. || - Ó corredor, por que é que estás tão triste? || – Porque não me deixam correr – respondeu o corredor.» (p. 18).

Acrescente-se que, ao contrário do que se possa pensar, muito deste material literário foi, ao longo dos anos, ganhando popularidade em contextos escolares, mercê da sua frequente inclusão em manuais escolares de Português do 2º ciclo do Ensino Básico. Nesse quadro, tem evidenciado capacidade de motivar a criança quer para uma escrita criativa assente na leitura atenta de alguns textos, quer para actividades de recriação e prolongamento dos mesmos.

Pergunto-me, por vezes, por que razão a maioria dos autores de literatura para a infância adora reafirmar que um bom livro para crianças é aquele que agrada também a um adulto. Embora tal «verdade» não tenha real fundamento, Histórias com Juízo distingue-se, julgo eu, por essa polivalência. 

José António Gomes

NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto