Quase poderíamos dizer: na esteira desse admirável conto de Aquilino Ribeiro que é «O filho da Felícia ou a inocência recompensada» – incluído no livro Arca de Noé, III Classe (1936) – no qual deparamos com uma hilariante caricatura da instituição militar nos anos trinta, uma das obras mais conhecidas de Luísa Ducla Soares é, sem dúvida, O Soldado João (1.ª ed., Estúdios Cor, 1973; ilustrações de Zé Manel), conto apresentado em formato de picture story book cujo protagonista, um jovem camponês dotado de saudável e ingénua espontaneidade, inverte e subverte os códigos da guerra: cumprimenta os inimigos, põe os exércitos em confronto a dançar ao som do seu cornetim, serve café a todos e apara os calos aos comandantes dos dois exércitos. De forma quase natural, a sua actuação contribui assim para retirar sentido ao conflito bélico.
Note-se que a obra data de 1973, ou seja, de uma época em que, na sociedade portuguesa, a oposição ao absurdo da Guerra Colonial atingira o seu pico, em especial no meio estudantil e nos próprios meios militares. E assinale-se ainda, a este propósito, que, já depois do 25 de Abril, mais precisamente em 1981, um outro autor, Leonel Neves, utiliza também a caricatura e o humor para, na linha de Luísa Ducla Soares, ridicularizar certos aspectos da instituição castrense e da sua rigidez hierárquica em O Soldadinho e a Pomba (Horizonte, 1981), cujo ingénuo protagonista traz inevitavelmente à memória o Soldado João.
Uma reedição desta obra de Luísa Ducla Soares surge em 2001, com a chancela da Civilização, mas com ilustrações que a desfiguram e claramente prejudicam. Agora, finalmente reencontramos o nosso soldado João com as ilustrações que merece, da autoria de Assunção Melo, de novo em edição da Civilização, datada de 2011.
José António Gomes
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto