De origem alemã e ascendência judaica, Ilse Lieblich Losa nasceu em 1913, em Bauer, cidade próxima de Hanover. Tendo vivido a primeira infância com os avós paternos, frequentou o liceu em Osnabrük e Hildesheim e o Instituto Comercial em Hanover. Ao regressar à Alemanha, após um período em Londres tomando conta de crianças, vê-se obrigada a abandonar o país, dada a sua condição de judia. Escapa desse modo à perseguição nazi e, chegada a Portugal em 1934 (ano em que Hitler assume o poder na Alemanha), radica-se no Porto, casando com o arquitecto Arménio Losa e adquirindo a nacionalidade portuguesa.
Inicia, então, uma vasta obra escrita em português, a qual abrange romances inspirados, ou pelo menos enraizados, na sua experiência de vida – como O Mundo em que Vivi, 1949, Rio sem Ponte, 1952, Sob Céus Estranhos, 1962 (vívido retrato, também, do Porto dos anos trinta e quarenta) –, além de contos, crónicas, trabalhos de índole pedagógica (Nós e a Criança, 1954) e sobretudo literatura para crianças. Traduziu para português autores alemães, colaborou em diversos jornais e revistas e foi também uma divulgadora da literatura portuguesa na Alemanha. Em 1984 recebeu o Grande Prémio Gulbenkian, pelo conjunto da sua obra para crianças e, em 1998, o Grande Prémio de Crónica, da Associação Portuguesa de Escritores, pelo livro À Flor do Tempo (1997).
Revelando permanente abertura à diversidade temática, de géneros e de perspectivas que deve caracterizar a produção literária para crianças, foi a partir de finais dos anos 40 do século XX que Ilse Losa contribuiu, com os seus contos, recontos de histórias tradicionais e peças de teatro (por exemplo A Adivinha: peça em quatro quadros, 1ª ed.: 1967; 2ª ed. refundida: 1979), para uma nova literatura portuguesa para crianças, enveredando muitas vezes por uma via «realista», de acentuada envolvência social, mesmo quando a voz que narra é a de um animal antropomorfizado, como sucede em Faísca Conta a Sua História (1949). Mas imbuiu também a ficção de dilemas morais e espírito crítico, sonho e sentido de esperança, numa escrita coloquial e despojada, pontuada contudo por expressivas comparações e prosopopeias e marcada por um uso rigoroso do adjectivo. Uma escrita que se abriu também ao maravilhoso, ao humor (v. Bonifácio, 1980) e a uma fantasia de cunho onírico (Viagem com Wish, 1984), sem nunca se esquivar a temas «problemáticos» como a guerra, a perseguição política e a tortura. Veja-se, a este propósito, o conto «Apesar de tudo», de A Minha Melhor História, ou ainda Silka, que é difícil não ler como uma parábola focada na questão da intolerância étnica e como uma dolorida meditação sobre o destino do povo judeu. De referir ainda que Ilse Losa dissertou sobre o livro para crianças em várias das suas crónicas jornalísticas, tendo sido pioneira no ensino da literatura para a infância no nosso país.
Beatriz e o Plátano (1976) (livro editado numa histórica e notável colecção de livros infantis que ela própria dirigiu – «ASA Juvenil» –, e que revelou muitos jovens autores, nas décadas de 70 e 80) é uma das primeiras narrativas portuguesas para crianças animadas do espírito do 25 de Abril, evidenciando também pioneiras preocupações ambientais e cívicas. Várias vezes reeditados até à sua morte, em 2006, livros de Ilse Losa como Faísca Conta a Sua História, Um Fidalgo de Pernas Curtas (1961), Um Artista Chamado Duque (1965), O Quadro Roubado (1977) (que não anda longe da estrutura do relato policial), a par de O Senhor Pechincha (a 1ª ed. de que temos conhecimento data de 1973, encontrando-se este conto incluído na 2ª ed. da colectânea Um Fidalgo de Pernas Curtas e Outras Histórias, com ilustrações de Júlio Resende) e ainda A Minha Melhor História (1979) e Silka (1984) constituem marcos na história da literatura portuguesa para a infância e juventude. O último original para crianças que publicou em vida, O Rei Rique e outras Histórias (1989; reeditado em 2006 pela Porto Editora), traz-nos cinco contos breves e divertidos, impregnados de fantasia, a que não falta uma crítica fina e actual a certos comportamentos sociais e até a respeitáveis instituições. Coloquial e discretamente desafiadora, a escrita de Ilse Losa irmana-se nesta última obra com as aguarelas e colagens de um grande pintor, Júlio Resende, que mais do que uma vez ilustrou os textos de Ilse e se afirmaria pela sua criatividade na ilustração de livros para crianças.
Hoje, esta escritora merece sobretudo que bibliotecas e escolas (designadamente as do Porto, cidade que a «adoptou») dêem destaque aos livros que nos deixou, à sua vida e escrita, encontrando modos de continuar a dar a ler tais livros aos mais novos, mantendo assim esta escrita viva e actuante. É que Ilse Losa foi, a vários títulos, uma voz inovadora e, a partir de 1949, concorreu, de maneira decisiva, para a renovação da literatura portuguesa dirigida aos mais pequenos, tendo sido, como se disse, uma das primeiras professoras (senão a primeira) de literatura para a infância na velha Escola do Magistério Primário do Porto. Foi, além do mais, uma assumida antifascista e democrata, que, dos anos 50 em diante, conviveu com uma notável plêiade de homens e mulheres que dinamizaram – com todas as dificuldades impostas pelo fascismo – a vida cultural, literária e cívica do Porto durante o terceiro quartel do século XX. Entre essas mulheres e homens, contam-se Óscar Lopes (que muito apreciava Ilse e sobre ela escreveu), Luísa Dacosta, Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Luís Veiga Leitão, José Augusto Seabra, António Rebordão Navarro e tantos outros.
José António Gomes