Quando Caderno de Agosto (1.ª ed., Caminho,
1995, ilustrações de José Miguel Ribeiro) foi publicado, o último governo do
qual Cavaco Silva foi primeiro-ministro conhecera, enfim, o seu termo, para alívio
de muitos portugueses. E uma das várias curiosidades deste livro juvenil é
precisamente permitir reconstruir uma imagem do tempo sociocultural e político
que precedeu essa queda.
O argumento,
muito centrado na esfera dos costumes, corre o risco de ser banal, mas o
desenvolvimento da narrativa tem o seu quê de engenhoso. Luísa é professora de
História e a elaboração da sua tese de mestrado eterniza-se (estava-se num
tempo muito anterior ao processo de Bolonha, em que a preparação de uma
dissertação para obtenção do grau de mestre podia demorar dois a três anos).
Após se ter divorciado de um conhecido psiquiatra, a sua vida segue um rumo
sinuoso e Luísa inicia a escrita de um romance. Se esta lhe serve de terapia
(interrompida, a espaços, por efémeras paixões), a história que inventa
funciona, por sua vez, como espelho ou contraponto dos seus percalços amorosos.
Após a inesperada fuga de um sócio que lhe arrebatara um original de sucesso
garantido, um antigo colega de faculdade pressiona Luísa no sentido de dar
continuidade à sua escrita, na esperança de incluir um novo best seller na indescritível coleção de
romances cor-de-rosa de que é editor.
Alice Vieira
adota, assim, uma estratégia a que nos habituara em livros anteriores (por
exemplo em Viagem à Roda do Meu Nome,
2.ª ed. 1987, ou em A Lua não Está à
Venda, 1988) − duas enunciações e duas narrativas paralelas, em registos
muito diferentes: Glória, a filha adolescente de Luísa, enche um caderno, em agosto,
com as aventuras e desventuras da mãe, do pai e seus reflexos na vida familiar;
no computador de Luísa, por sua vez, vai-se tecendo o relato dos encontros e
desencontros de Mónica e Alfredo Henrique. Este texto, todavia, acabará por não
corresponder às expectativas do editor, ou seja, será tudo menos uma história
cor-de-rosa. No final, Glória agrafa às suas folhas os capítulos da segunda
narrativa já escritos por Luísa e o "caderno de Agosto" fica
completo.
Com esta
estratégia, o leitor é obrigado a centrar a sua atenção em dois mundos
distintos (o de Luísa e o de Mónica) que, no entanto, reciprocamente se
iluminam.
Que há,
portanto, de essencial nestas histórias de amores frustrados e de adolescentes
expeditos e implacáveis na sua ironia?
Em primeiro
lugar, uma prosa que a todo o momento nos arrasta na sua vertigem narrativa,
revelando uma desenvoltura e uma trabalhada simplicidade que fazem do romance
um dos textos mais saborosos que a autora publicou. Por outro lado, dois
olhares impiedosos: os de Glória e de seu irmão António, atentos às fantasias e
permanentes contradições dos adultos, em especial de uma mãe
"muito-de-esquerda" − em cujo passado mais ou menos militante se
contabilizavam algumas festas do "Avante!", a distribuição de
comunicados da Fenprof, os protestos contra o Ministério da Educação ou a
leitura do JL (jornal que, em dado
momento, é apelidado de Bíblia de engenheiros afetados por complexos de
inferioridade cultural).
Acrescente-se
que o principal segmento da ação de Caderno
de Agosto − e este é, como dissemos, outro dos seus motivos de interesse – é
a recriação ficcional de um período histórico imediatamente anterior à sua
publicação, constituindo uma visão irónica e bem-humorada dos derradeiros
tempos do cavaquismo (em que, recorde-se, pontificavam, entre outras estrelas, Oliveira
e Costa, Dias Loureiro ou Duarte Lima). Aborda-se, por exemplo, a gradual
alteração de valores de algumas franjas da classe média lisboeta, sob a
influência da ideologia neoliberal e da cultura do "sucesso" e da
superficialidade, veiculadas pelo discurso dos media. Mas assiste-se igualmente ao choque entre uma moral
pequeno-burguesa conservadora (representada pelos pais de Luísa) e a atitude
mais liberal daqueles que, em 25 de Abril de 1974, atingiram a idade adulta. Os
últimos momentos de Caderno de Agosto
são, pois, o tempo desse amálgama de discursos resultante da então recente abertura
das televisões privadas, na qual se cruzam imagens de telenovela, de programas
do tipo "Isto Só Vídeo", e dos serviços noticiosos marcados pelo
sensacionalismo, pelas contestações a Manuela Ferreira Leite ou ainda pelo
casamento de D. Duarte nos Jerónimos, com o rosto do pai de Glória (convertido
às delícias de uma vida burguesa) a emergir de um grotesco cortejo de reis
destronados.
A outra face
deste mundo, porventura mais sombria, surge retratada no romance escrito por
Luísa; é o dia a dia de Mónica e Alfredo Henrique, cujos conflitos afetivos
resultam, em parte, dos sonhos desfeitos de uma pequena burguesia no limiar da
proletarização, trucidada pelo neoliberalismo e por um quotidiano medíocre.
Seria,
contudo, injusto reduzir Caderno de
Agosto a uma imagem sociológica ou nele encontrar apenas a caricatura de um
imaginário (os sonhos de sucesso social, os mitos da beleza e da saúde eternas,
a atração romântica pelos lugares exóticos...).
Num texto
que, a cada momento, nos convida a entrar no seu jogo de humor e ironia,
apetece, sobretudo, reter o olhar arguto e feminino de Glória, ou seja, o modo
divertido como observa, com a lucidez da sua adolescência, a comédia de paixões
desastradas e equívocos sem remédio em que, aos poucos, se vão atolando os
adultos que a rodeiam.
José António
Gomes
NELA -
Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto