terça-feira, 31 de julho de 2012

Mar e poesia para a Infância: Maria Isabel de Mendonça Soares, Alice Vieira, Letria, Fanha, Jorge Sousa Braga e Sara Monteiro


Em pleno verão, vale a pena apontar alguns livros de poesia para crianças menos referidos que merecem, contudo, a inclusão num corpus de obras tematicamente centradas no mar.
Comecemos com a bela antologia O Mar na Cultura Popular Portuguesa (Lisboa: 1998), destinada à infância, em que Maria Isabel de Mendonça Soares, histórica autora da nossa literatura para crianças, reuniu, de modo criterioso, quadras e rimances populares, lengalengas, adivinhas, provérbios, cantigas e composições rimadas usadas em jogos infantis, além de contos e lendas, numa expressiva evidência da importância do motivo do mar e dos temas a ele associados na literatura popular portuguesa de transmissão oral.
Em livros de poesia para a infância publicados desde 2001, não é difícil encontrar referências ao mar, como se nenhum poeta conseguisse manter-se indiferente ao apelo deste elemento e à sua omnipresença na História do nosso país, na nossa cultura e, consequentemente, no imaginário português. Também porque falar do mar é ainda, com frequência, falar dos animais que o povoam e o sobrevoam, falar da praia e dos jogos que nela têm lugar ou tropeçar em pretextos para retomar o topos da viagem ou regressar à figura do pirata, essa arquetípica figuração humana do impulso para a aventura.
Um bom exemplo de evocação de um animal voador sempre associado à ambiência marinha é o desse poema-adivinha (desvendada pela ilustração de Madalena Matoso) que Alice Vieira dedica à gaivota em A Charada da Bicharada (Texto, 2008), para exprimir um indeclinável desejo de voar aparentemente enraizado num tempo antigo em que o homem, metaforicamente, possuía asas (alusão aos remotos dias da infância e da juventude?).
Animais de água salgada nos traz, por sua vez, José Jorge Letria que propusera já diversos textos narrativos em que o mar marcava forte presença. Abre assim o seu álbum de poesia O Alfabeto dos Bichos (Oficina do Livro, 2005) com uma dedicatória caligramática que, na ilustração de André Letria, sai da boca de um peixe; no corpo do texto, as letras F, P, T, e X e os respectivos poemas são dedicados a quatro animais do ambiente marinho: a foca, o polvo, o tubarão e o xarroco. Poemas breves que oscilam entre o apelo à protecção das espécies e as dimensões lúdica e informativa. Em três dos Poemas para Meninas e Meninos (Gailivro, 2003), livro que Letria assinara, dois anos antes, com o pseudónimo Luís Infante, intensifica-se a componente lírica relacionada com o mar – tendo como suporte a expressividade fónico-rítmica –, sendo que, em dois deles (“Até à Costa Malabar” e “Pelas valetas das vielas”), não passa despercebida a isotopia da memória dos Descobrimentos e o correlato topos da viagem.
De José Fanha (um colaborador de Letria na organização de diversas antologias poéticas) mencione-se Cantigas e Cantigos (Terramar, 2004), obra constituída por composições destinadas a pré-leitores e leitores iniciais e visivelmente influenciadas, na sua poética, pelas “rimas infantis” da tradição oral. “De viagem”, o poema de abertura, muito simples, traça um confronto entre os viajares do pé e da mão e os do olhar, susceptíveis estes, por efeito do cenário com que se deparam, de “viajar (…) p’ra lá do mar” (p. 5), e animados – pressente-se – pela força de uma imaginação desmedida que a própria visão do oceano potencia.
Além de, aqui e acolá, mencionar o mar enquanto elemento de que a terra, no nosso planeta azul, se não pode dissociar, Jorge Sousa Braga, em Pó de Estrelas (Assírio & Alvim, 2004) – livro que remete para uma ambiência, chamemos-lhe assim, cósmica, e cujos textos, na sua maioria, convidam o leitor a uma imersão no universo estelar poeticamente recriado –, este poeta, dizíamos, propõe, em “A música das estrelas”, uma canção de embalar. Nela se referem umas maternais estrelas que entoam, também elas, outra canção sobre uma das suas irmãs caída no mar. O poema é um convite à escuta desse acalanto, com o corpo “deitado na relva / numa noite de Verão” (p. 46), porventura não longe da praia, numa espécie de fusão com o cosmos.
Da praia nos falam também, por vezes, os sujeitos poéticos de As Férias de Mário e Marina (Porto Editora, 2009), de Sara Monteiro, como acontece no poema “Canção de Marina”, uma brincadeira verbal, que repousa, quase exclusivamente, num jogo silábico infantil, cantarolado, destinado a rimar com frases como “Na-poça-está-um-peixe”, “E-agora-um-camarão” e outras ainda. Um jogo que termina, enfim, com uma insólita mordedura do pé da menina pelo camarão ameaçado. Noutros poemas, como “As cavalas”, a voz de Marina – que juntamente com a de Mário podemos ouvir em diversas composições do livro – interroga-se sobre um animal que julga ser a “mulher do cavalo” e não um peixe, para finalmente concluir ”Peixe?! É um peixe? (…) / – Peixe também é gente.” (p.17). Em “Barco-pirata”, revela-se a faceta aventureira e masculina de Marina, atraída pelo universo dos piratas e inclinada, por isso, a contrariar a mãe segundo a qual a menina, justamente por menina ser, está destinada a tornar-se, “queira ou não queira (…) bailarina” (p. 12). Em suma, dir-se-ia que o livro de Sara Monteiro, ao mesmo tempo que tematiza a descoberta do mundo e da linguagem por parte da criança, recriando ludicamente o seu linguajar, não resiste, aqui e acolá, a uma subtil crítica às obsessivas proibições e imposições dos adultos, por vezes sexistas e inibidoras desse instinto lúdico que é tão distintivo da própria infância.

José António Gomes
NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto