Em
pleno verão, vale a pena apontar alguns livros de poesia para crianças menos
referidos que merecem, contudo, a inclusão num corpus de obras tematicamente centradas no mar.
Comecemos
com a bela antologia O Mar na Cultura
Popular Portuguesa (Lisboa: 1998), destinada à infância, em que Maria Isabel
de Mendonça Soares, histórica autora da nossa literatura para crianças, reuniu,
de modo criterioso, quadras e rimances populares, lengalengas, adivinhas,
provérbios, cantigas e composições rimadas usadas em jogos infantis, além de
contos e lendas, numa expressiva evidência da importância do motivo do mar e
dos temas a ele associados na literatura popular portuguesa de transmissão
oral.
Em
livros de poesia para a infância publicados desde 2001, não é difícil encontrar
referências ao mar, como se nenhum poeta conseguisse manter-se indiferente ao
apelo deste elemento e à sua omnipresença na História do nosso país, na nossa
cultura e, consequentemente, no imaginário português. Também porque falar do
mar é ainda, com frequência, falar dos animais que o povoam e o sobrevoam,
falar da praia e dos jogos que nela têm lugar ou tropeçar em pretextos para
retomar o topos da viagem ou
regressar à figura do pirata, essa arquetípica figuração humana do impulso para
a aventura.
Um
bom exemplo de evocação de um animal voador sempre associado à ambiência
marinha é o desse poema-adivinha (desvendada pela ilustração de Madalena
Matoso) que Alice Vieira dedica à gaivota em A Charada da Bicharada (Texto, 2008), para exprimir um indeclinável
desejo de voar aparentemente enraizado num tempo antigo em que o homem,
metaforicamente, possuía asas (alusão aos remotos dias da infância e da juventude?).
Animais
de água salgada nos traz, por sua vez, José Jorge Letria que propusera já diversos
textos narrativos em que o mar marcava forte presença. Abre assim o seu álbum
de poesia O Alfabeto dos Bichos (Oficina
do Livro, 2005) com uma dedicatória caligramática que, na ilustração de André
Letria, sai da boca de um peixe; no corpo do texto, as letras F, P, T, e X e os
respectivos poemas são dedicados a quatro animais do ambiente marinho: a foca,
o polvo, o tubarão e o xarroco. Poemas breves que oscilam entre o apelo à
protecção das espécies e as dimensões lúdica e informativa. Em três dos Poemas para Meninas e Meninos (Gailivro,
2003), livro que Letria assinara, dois anos antes, com o pseudónimo Luís
Infante, intensifica-se a componente lírica relacionada com o mar – tendo como
suporte a expressividade fónico-rítmica –, sendo que, em dois deles (“Até à
Costa Malabar” e “Pelas valetas das vielas”), não passa despercebida a isotopia
da memória dos Descobrimentos e o correlato topos
da viagem.
De
José Fanha (um colaborador de Letria na organização de diversas antologias
poéticas) mencione-se Cantigas e Cantigos
(Terramar, 2004), obra constituída por composições destinadas a pré-leitores e
leitores iniciais e visivelmente influenciadas, na sua poética, pelas “rimas
infantis” da tradição oral. “De viagem”, o poema de abertura, muito simples,
traça um confronto entre os viajares do pé e da mão e os do olhar, susceptíveis
estes, por efeito do cenário com que se deparam, de “viajar (…) p’ra lá do mar”
(p. 5), e animados – pressente-se – pela força de uma imaginação desmedida que
a própria visão do oceano potencia.
Além
de, aqui e acolá, mencionar o mar enquanto elemento de que a terra, no nosso
planeta azul, se não pode dissociar, Jorge Sousa Braga, em Pó de Estrelas (Assírio & Alvim, 2004) – livro que remete para
uma ambiência, chamemos-lhe assim, cósmica, e cujos textos, na sua maioria, convidam
o leitor a uma imersão no universo estelar poeticamente recriado –, este poeta,
dizíamos, propõe, em “A música das estrelas”, uma canção de embalar. Nela se
referem umas maternais estrelas que entoam, também elas, outra canção sobre uma
das suas irmãs caída no mar. O poema é um convite à escuta desse acalanto, com
o corpo “deitado na relva / numa noite de Verão” (p. 46), porventura não longe
da praia, numa espécie de fusão com o cosmos.
Da
praia nos falam também, por vezes, os sujeitos poéticos de As Férias de Mário e Marina (Porto Editora, 2009), de Sara Monteiro,
como acontece no poema “Canção de Marina”, uma brincadeira verbal, que repousa,
quase exclusivamente, num jogo silábico infantil, cantarolado, destinado a
rimar com frases como “Na-poça-está-um-peixe”, “E-agora-um-camarão” e outras
ainda. Um jogo que termina, enfim, com uma insólita mordedura do pé da menina
pelo camarão ameaçado. Noutros poemas, como “As cavalas”, a voz de Marina – que
juntamente com a de Mário podemos ouvir em diversas composições do livro –
interroga-se sobre um animal que julga ser a “mulher do cavalo” e não um peixe,
para finalmente concluir ”Peixe?! É um peixe? (…) / – Peixe também é gente.”
(p.17). Em “Barco-pirata”, revela-se a faceta aventureira e masculina de
Marina, atraída pelo universo dos piratas e inclinada, por isso, a contrariar a
mãe segundo a qual a menina, justamente por menina ser, está destinada a tornar-se,
“queira ou não queira (…) bailarina” (p. 12). Em suma, dir-se-ia que o livro de
Sara Monteiro, ao mesmo tempo que tematiza a descoberta do mundo e da linguagem
por parte da criança, recriando ludicamente o seu linguajar, não resiste, aqui
e acolá, a uma subtil crítica às obsessivas proibições e imposições dos
adultos, por vezes sexistas e inibidoras desse instinto lúdico que é tão
distintivo da própria infância.
José
António Gomes
NELA
– Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto