Em Março deste ano,
reeditou Rita Taborda Duarte, em livro seu, um texto escrito em 2005 para um
volume colectivo de homenagem a Branquinho da Fonseca. Com o sugestivo título O Rapaz que não Se Tinha Quieto (Caminho,
2014) – sugestivo por evitar a frase comum em favor da expressiva fraseologia
popular, com as consequentes implicações semânticas –, o livro apresenta-se num
formato e com um aparato paratextual que, de certo modo, o situam num terreno
de fronteira entre o que poderia ser um livro para jovens e um livro para
adultos. Senão vejamos: a capa é dura e as ilustrações depuradas mas
conseguidas, de Ana Ventura, no seu geometrismo quase abstractizante, traçado a
branco sobre um belo azul escuro dominante tanto nas imagens como na mancha de
texto, sugerem desde logo a abóbada celeste, o desenho das constelações e um
certo onirismo (de que o discurso, aliás, está imbuído). Ou seja, estamos
perante um objecto nem demasiado adulto, nem demasiado infantil, um objecto transversal,
de fronteira, que guarda em si uma narrativa em prosa, dividida em seis
pequenos capítulos. Logo no segundo, é citado o hipotexto (do autor de O Barão) a partir do qual e contra o
qual, digamos assim, a narrativa se vai tecendo: «– Meu caro rapaz, para pensar
bem é preciso estar quieto. A Natureza exige certa monotonia. (…)» (cit. na p.
14).
Lê-se então o texto
de Rita Taborda Duarte como o relato trabalhado da aventura (mais interior do
que exterior, é claro) de um pequeno grande herói – criança que devém adulto,
cada vez mais senhor de si mesmo –, ainda que ancorada, essa aventura, num
cenário que aos poucos perde as raízes que o prendem ao «real», por assim
dizer, e se impõe, aos poucos, como um espaço imaginário, hiperbólico, de
dimensão cósmica. Do seu ínfimo terreno de dois mil metros quadrados onde
corre, a dado momento, em círculos que metaforizam o mundo que almeja conhecer,
«o rapaz que não se tinha quieto», movido pela sua irreprimível pulsão
desejante, irá construir uma torre imensa – a sua «alta torre de granito» (a
lembrar a do poema «Metamorfose», de Sena, ou a do conto «A Estrela», de
Vergílio Ferreira, mas sem a dimensão trágica da deste conto), uma torre
miticamente alta, para a qual carreia estrelas como um deus, «na esperança de
ser visto por um navio que o venha resgatar», como é afirmado no peritexto da
contracapa.
Belíssimo texto este,
menos sobre a viagem real do que sobre a viagem desejada, a que faz mover o ser
humano: «a verdade, a verdade séria e genuína, é que o homem, ainda que adulto
e amadurecido, é sempre o mesmo animal desejante que nunca se tem saciado» (p.
44).
O que gostaria, no entanto,
de salientar, mais do que este eixo ideotemático que percorre o texto – uma
escrita que se sente a ser tecida aos poucos e a ganhar crescente densidade –,
é a qualidade poética, por vezes até encantatória, da prosa de Rita Taborda
Duarte, essa prosa que já vem de A
Verdadeira História da Alice (2004), obra que valeu à autora, em 2003, o
Prémio Branquinho da Fonseca Expresso-Gulbenkian, e que prossegue
consistentemente nos seus livros e álbuns posteriores.
Esta é uma prosa
que sabe dosear o adjectivo e a sua colocação na frase, que trabalha por vezes
para uma sintaxe vivamente oralizante, que gosta de explorar a expressividade
dos sufixos e da fraseologia popular, que se perde e se ganha nos jogos
fónico-rítmicos e de palavras («e rodo e rodo rodando», p. 9), evidenciando
assim toda a sua sensorialidade, que aprecia também os jogos com a visualidade
do texto, ao modo caligramático/concretista. Uma prosa, enfim, para degustar,
num livro que não é apenas para ver
(embora também o seja), mas é sobretudo para ler. Em silêncio e em voz alta. Um livro em que, não haja dúvidas,
o literário, na sua densidade leve e poética, marca decisiva presença.
José António Gomes
IELC | InEd –
Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto