Hermann Kaulbach (1846 – 1909) | Can't You Read? |
A pensar no
educador de infância e no professor do 1.º ciclo do ensino básico, alinharemos
algumas considerações sobre aspetos do desenvolvimento da competência leitora e
do gosto de ler.
Existe
unanimidade no reconhecimento de que a mestria leitora é fator determinante do
sucesso educativo. Por mestria leitora não entendemos unicamente a capacidade
de soletrar e de sintagmatizar frases, mas também, numa perspetiva de leitura
literária, "a paradigmatização e a colocação subjetiva em função da
obra"1, para utilizar palavras de Maria Alzira Seixo. Trata-se
de conquistar o poder de ler, um processo que começa, desde cedo, a sofrer os
efeitos de algumas descontinuidades, provocadas, por vezes, e entre outros fatores,
por certas práticas de leitura redutoras, no 1.º ciclo do ensino básico.
Elenquemos
três dessas práticas:
1.ª O
frequente exercício da leitura como atividade de decifração dos signos escritos
e de oralização do texto, remetendo-se amiúde para segundo plano uma prática
planificada e coerente de questionamento e compreensão do texto. (Esta atitude encontra
por vezes confirmação na duvidosa qualidade pedagógica de muitos dos
questionários e fichas de leitura que acompanham os textos de manuais escolares
para o 1.º ciclo do ensino básico).
2.ª Um
trabalho sobre os textos assente na abordagem de excertos e decorrente de um
uso sistemático e excessivo dos manuais. (Esta atitude impede que a criança
construa uma visão mais ampla e correta dos objetivos da leitura e conduz a que
ela seja perspetivada como obrigação; raras vezes como atividade lúdica e de enriquecimento
pessoal).
3.ª O raro
recurso ao livro, quer como repositório de conhecimentos e instrumento de
pesquisa quer como fonte de prazer. ("O livro tem de se tornar
familiar"2, escreve Mercedes Gomez del Manzano. A criança
necessita de um convívio constante com o livro, que a leve – como o sultão Ali
Kate de um dos contos de José Jorge Letria – a "entusiasmar-se com o
brilho das lombadas (...), com os títulos dourados, com o mundo que afinal cabe
dentro das suas páginas"3.)
Para além
disto, em relação a crianças que frequentaram jardins-de-infância, não é
incomum testemunhar uma espécie de retrocesso no convívio com os livros e na valorização
da leitura de textos literários, resultante de um corte no hábito de ouvir
histórias, adquirido na pré-escolaridade.
As
experiências de todos os docentes cujas práticas de ensino da língua portuguesa
contrariam tais atitudes permitem-nos, contudo, acreditar numa pedagogia alternativa
em matéria de desenvolvimento da leitura e do gosto de ler.
Nessa
pedagogia, a "hora do conto" pode ocupar lugar especial, pelo que
parece importante elegê-la como uma das atividades capazes de, pela sua prática
continuada, proporcionar o desenvolvimento do prazer de ler, resultante da
satisfação do gosto pela narrativa.
Ao procurar
uma caracterização da hora do conto, por que não lembrar uma passagem de O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry:
" – O que é um rito? – disse o principezinho.
– É também qualquer coisa de que toda a gente se esqueceu, disse a
raposa. – É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias, uma hora
diferente das outras horas."4
Com vínculos
remotos à atividade ancestral dos contadores de histórias das comunidades
agrárias, a hora do conto, tanto na educação pré-escolar como no 1.º ciclo,
pode, com efeito, constituir como que uma recuperação – modernizada é certo, e,
na sua essência, fundamentalmente diferente – de uma tradição de algum modo
esquecida e em vias de acelerada diluição, nesse mundo de crescente
desenvolvimento tecnológico e mediático que é o nosso, tantas vezes desumanizado
no tocante a ritmos, horários de trabalho e a espaços de comunicação autêntica,
através da palavra dita e escutada. Espaços de que a sociedade
contemporânea efetivamente carece, não obstante a proliferação de meios
tecnológicos que alegadamente favoreceriam essa comunicação.
Uma vez que o
discurso veiculado na hora do conto é essencialmente narrativo,
reconhecer-se-lhe-á, também, a faculdade de, no dizer de Fernanda Irene
Fonseca, "criar uma alternativa à contingência do aqui-agora"
respondendo, assim, "a uma necessidade de evasão, cujo carácter lúdico e
catártico é evidente, mas representa(ndo) também (e sobretudo) um recurso
cognitivo"5.
Esse espaço
diário, bissemanal ou trissemanal, durante o qual o educador de infância ou o professor
lê, em voz alta, um conto, ou parte de uma narrativa mais longa, às suas
crianças, constitui um momento diferente na rotina escolar, uma hora de
apaziguamento e de libertação do imaginário, durante a qual todos se encontram
congregados num sentimento e numa vontade comuns, de fundo sentido educativo.
Aqui e acolá,
mas sem excessos, o educador ou professor suspende a leitura para dialogar com
as crianças sobre a história, verificando até que ponto se encontram todas a
par dos elementos fulcrais da intriga; ou, já no 1.º ciclo, promove, a partir
do texto, situações de prática da expressão oral, sem contudo sobrecarregar a
hora do conto com um peso excessivo de outras actividades. (Parece-nos, aliás,
oportuno remeter para a obra, de Daniel Pennac, Como um Romance (Porto: Asa, 1993), em que se procede a uma crítica
impiedosa ao aproveitamento "escolar" da literatura, denunciando-se
os efeitos perniciosos de uma excessiva escolarização da leitura.6)
Nesta perspetiva,
pensamos que a hora do conto, no pré-escolar e no 1.º ciclo do ensino básico,
poderá perseguir, entre outros, dois objetivos:
1.º Alimentar
a necessidade infantil de ouvir histórias, criando condições para que mais
tarde ela venha a satisfazer-se, também, com a leitura autónoma de contos e
romances.
2.º
Estimular, nas crianças que ainda não sabem ler ou que leem mal, o desejo de
dominar os mecanismos da leitura, de se tornarem, também elas, capazes de decifrar
esse código misterioso que se espraia pelas páginas dos livros7.
Nunca será de
mais lembrar que a língua escrita dos textos de qualidade ganha, na sua
realização oral, uma vida, um sabor e um mistério que obrigam o educador ou professor/leitor
a cuidados especiais na situação de leitura, tendo em vista retirar – sem
incorrer em excessos de teatralização – o máximo partido desse momento
encantatório. As palavras de Georges Jean, no seu livro Le Pouvoir des Contes, ajudam a traduzir, com maior rigor, esta
atitude desejável do professor: "podemos achar um modo de lecture conteuse no qual o texto ganha
vida, nos lábios, na mímica e nas mãos do leitor-contador"8.
Matize-se
ainda este quadro com indicações fornecidas pelo Autor de Pour une Pédagogie de l'Imaginaire, a propósito da narração oral de
histórias: "Colocar a voz, articular, modular, respirar, importa trabalhar
tudo isto longamente e em situação. Seria, ao mesmo tempo, necessária uma
preparação corporal"9.
A defesa da
hora do conto na perspetiva de contador/leitor visa sensibilizar para a
importância desta prática no desenvolvimento da competência leitora e na
educação literária. A hora do conto pode constituir a preparação para uma
vivência da leitura como desejo, no sentido que lhe dá Georges Jean, quando
escreve, noutro texto: "O desejo de ler é o desejo de violar o obscuro, o
desejo de possuir um segredo, de ser capaz de exercer por si mesmo uma
transformação do inerte"10.
A HORA DO
CONTO NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR E NO 1. º CICLO
DO ENSINO BÁSICO
Educador / professor
▪ Contador –
leitor
Momento
▪ Diariamente
(no pré-escolar) ou duas ou três vezes por semana (no 1.º ciclo).
▪ Em ligação,
ou não, com uma atividade de biblioteca (de escola, de grupo ou de turma).
Condições
▪ Momento
especial no quotidiano escolar. Envolto numa certa magia, criador de expectativa,
de desejo.
▪ Resposta ao
prazer de ouvir contar histórias.
▪ Libertação
da rotina escolar; momento gerador de segurança e de conforto.
▪ Momento de
calma e de concentração.
Espaço
▪ Um canto
(pode coincidir, ou não, com o espaço-biblioteca da sala) onde existe uma manta
ou um tapete e, eventualmente, almofadas para as crianças se sentarem. (No 1.º
ciclo, se as condições o não permitirem, o professor deverá, então,
aproximar-se das crianças durante a leitura, de modo a ficar, pelo menos uma ou
duas vezes, mais próximo de cada grupo de crianças.)
Postura
▪ Descontração,
mas entrega do corpo à leitura.
▪ Sem
excessos de teatralização, mas com movimentação moderada e expressividade
corporal e facial.
Arte de ler
▪
Simplicidade, correção, boa dicção, expressividade.
▪ Criação de
atmosferas com a voz (voz doce, terna, alegre, misteriosa, maliciosa, dura, grave,
suplicante, capaz por vezes de prolongar certas sílabas para obter efeitos de
sentido ou efeitos emotivos...).
▪ Capacidade
de soltar, por vezes, os olhos da página (o que reclama uma preparação, com
tempo, da leitura).
▪ Jogos de
fisionomia traduzindo impressões, sentimentos.
▪ Observação atenta
das reações do auditório. Doseamento de efeitos.
Clima
▪ Silêncio
ou
▪ Música de
fundo
ou
▪
Acompanhamento com projeção de diapositivos.
Atividades (a desenvolver em ocasiões devidamente
planificadas, mas não por sistema, a fim de não “matar” o prazer de ouvir ler)
▪ Exploração da capa do livro e do título
(preparação para a história, criação de um contexto e de expectativa);
referência aos nomes do autor do texto e do ilustrador.
▪
Exploração das ilustrações e do aspeto gráfico.
▪ Suspensão da leitura em momentos cruciais
para, só no 1.º ciclo,
- questionário oral;
- debate (a partir do tema, da atitude de uma
personagem, de um dilema da história);
- criação oral ou escrita da conclusão;
- formulação de hipóteses quanto ao rumo da
história;
- confronto destas produções com o texto
original;
- resumo oral ou escrito, reconto oral;
- etc.
▪ Pequenas
pausas para
- verificação da compreensão;
- esclarecimento de dúvidas vocabulares ou
outras; resposta a perguntas das crianças.
▪ Outras atividades
normais da aula de língua portuguesa (no 1.º ciclo):
- exercícios e jogos de compreensão oral;
- reconto na perspetiva da personagem A;
- reconto na perspetiva da personagem B;
- escolha de uma personagem do conto que será integrada, mais tarde, em nova história a criar pelos alunos;
- escolha de uma personagem do conto que será integrada, mais tarde, em nova história a criar pelos alunos;
- pesquisa de outros textos do mesmo autor
para leitura futura;
- etc.
▪ Ponto de
partida para actividades de expressão musical ou plástica (recriação, em
maquete, de determinado cenário de uma história, modelagem de algumas das suas
personagens em barro...); possibilidade de articulação da temática do conto com
temas afins de Estudo do Meio.
(A presente
elencagem não se quer exaustiva. Serve apenas de ponto de partida para a
definição de atividades e atitudes próprias, por parte de cada educador/professor.
Para a sua
elaboração, revelou-se útil a consulta de três obras cuja leitura se recomenda:
Paulette Lequeux, L'Enfant et le Conte – du
Réel à l'Imaginaire, Paris: L'École, 1974; e Jeanne Michel, L'Imaginaire de l'Enfant – les Contes,
Paris: Nathan, 1976; Georges Jean, A
Leitura em Voz Alta, Lisboa: Instituto Piaget, 2000.)
Notas
1 Maria Alzira Seixo,
"Introdução a uma prática da leitura", in Émile Benveniste, O Homem
na Linguagem, Lisboa: Arcádia, 1976, pp. 9-14, reproduzido também na
revista Palavras, 1, set. 1980, p.
62.
2 Mercedes Gomez del Manzano,
A Criança e a Leitura, Porto: Porto
Editora, 1988, p. 113.
3 José Jorge Letria, Contos do Tapete Voador, 2.ª ed., Porto:
Asa, 1988, p. 6.
4 Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho, 6.ª ed., Lisboa: Aster,
p. 70.
5 Fernanda Irene Fonseca,
"Competência narrativa e ensino da língua materna", Palavras, 9, dez. 1986, p. 8.
6 Mal lida, esta obra a
vários títulos notável pode, contudo, sobretudo quando enumera os célebres
“Direitos do leitor”, ser geradora de alguns equívocos, pese embora a riqueza
das suas reflexões e a sedução da sua escrita.
7 Cf. Georges Jean, Le Pouvoir des Contes, 2.ª ed., [Paris:]
Casterman, 1981, p. 219.
8 Idem, ibidem, p. 220 (trad. nossa. Preferimos manter em francês a
expressão destacada.)
9 Idem, ibidem, p. 217.
10 Idem, "A leitura, o
real e o imaginário", in GFEN, O Poder de Ler, Porto: Civilização, 1978,
p. 50.
José António
Gomes
IEL-C (Núcleo
de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)