domingo, 10 de maio de 2020

Águas de Infância, de Nuno Higino: poesia de qualidade para todos

Um rio com seus esteiros? Um par de correntes irmãs? Sim, talvez se possa dizer que existem duas correntes na poética de Nuno Higino, a corrente das «águas de infância» e a das outras águas. Mas a segunda não exclui a primeira, são correntes contíguas e com vasos comunicantes, por assim dizer. A segunda está na origem dos livros de poesia de preferencial destinatário adulto. A primeira é a mater das recolhas de poemas de Nuno Higino, classificadas como sendo para a infância, mas que na verdade constituem poesia de reconhecida qualidade para todos, crianças ou adultos. O magnífico volume A Trote e a Galope: Poesia para a Infância (Letras & Coisas, 2017), com ilustrações de Alberto Péssimo, reúne, até hoje, o essencial dessa criação poética, que, não haja dúvidas, é das mais relevantes da nossa actual literatura para a infância e a juventude.

Para fazer uso da bela metáfora que o poeta achou para dar título a este seu livro de Novembro de 2019, direi que «águas de infância» muitos de nós talvez as tenham visto. Mas, para a peculiar voz que escutamos nestes versos, elas são as águas vistas «no estio que havia nas tardes de domingo» (belo e assonântico achado expressivo que lemos na p. 5 de Águas de Infância, Letras & Coisas, 2019). E, portanto, é como se, logo no poema inicial, o que empresta o título à obra, se indiciasse um desfilar de seres, de situações, de objectos, de estados de alma e de episódios convertidos em poesia – muitos deles, pode o leitor imaginar, tornados inesquecíveis por ter o seu brilho intenso iluminado as «tardes» de uma meninice. A do poeta? Não sei se isso importa muito. Uma meninice – isso sim interessa – sobretudo dourada; uma infância entregue ao desvelar emocionado do mundo. Esse mundo onde os rios, as árvores, as pedras, os bichos são como que expressões de um jardim edénico, em que também nos foi dado viver, mas que tratamos de forma incompreensivelmente cruel e desdenhosa. E abuso, a propósito, de um título feliz – mas por mim descontextualizado – de Frei Bento Domingues: «somos nós que nos expulsamos do paraíso» (Público, 17-11-2019, p. 9).

Considerando que, nos verdadeiros poetas (e Nuno Higino é um deles), tal infância se mantém viva ao longo da vida, pode-se dizer que talvez seja ela a matriz de diversos poemas. Por exemplo, «Viagens» (p. 22), em que um caixote de cartão, transformado em brinquedo, é evocado como veículo de muitas viagens, graças à imaginação do pequeno motorista ou viajante, um menino sonhador que não precisava de dispositivos electrónicos nem de jogos caros para saber brincar. Mas podiam apontar-se, nesta mesma linha, outras composições. Poemas, por exemplo em torno de animais, sempre tão queridos da infância (como «A passarada», «A formiga aventureira»», «O gato usa sapato?», «Um gato muito esquisito», «Mosquitos por cordas»…), poemas em torno de uma pedra que – como um vestígio prometaico – guarda em si a memória do fogo («A pedra tem fogo»), ou ainda em torno de um alegórico jardim, «lugar bom para crescer» e onde se observa «cada qual com seu direito» (p. 55), quer dizer, cada árvore, cada flor e demais plantas, como se de seres humanos se tratasse.

Não se pense, contudo, que este livro se esgota na temática vegetal e animal (e neste pequeno zoo poético o gato ocupa lugar privilegiado) – temática animal essa que talvez não passe, afinal, de uma expressão pobre e redutora, a esconder o facto de alguns destes poemas sobre bichos (mesmo quando fabularmente personificados, como em «O boi e o burro») possuírem a marca do cómico (de situação, de carácter, de linguagem) e serem extremamente divertidos. Isto é potenciado, aliás, por dois traços que distinguem Nuno Higino: a mestria das artes poéticas e a sua capacidade, o seu prazer, quase labial, em explorar o poder sugestivo da linguagem, designadamente a sonoridade, a música das palavras (por exemplo os nomes das aves, em «Passarada», e das árvores em «O crescer das árvores»). Os mais novos irão, estou certo, apreciar estes poemas de ritmos e musicalidade insinuantes, que, juntamente com as ilustrações de Joana Antunes, constituem objectos ideais para uma iniciação à poesia e à arte.

Aliás existe neste livro um certo lado pedagógico – faço questão de reabilitar este adjectivo –, nunca forçado, mas inteligente e sensível, apostado em abrir, e não em fechar, horizontes aos mais novos. Leiam-se, nesta óptica, as cativantes e educativas formas de iniciação artística que são os poemas «Como se faz poesia» (pp. 16-19 – belo tributo ao singular poeta brasileiro Manoel de Barros, espécie de pai de todas as poéticas para a infância), «Um livro, um amigo» (p. 44) ou ainda «A arte» (p. 49) – composições que certamente suscitarão reflexões tudo menos infantilizantes sobre aquilo que transmitem e sobre a pedagogia da sensibilidade que promovem.

Numa obra em que a mestria versificatória de Nuno Higino privilegia o heptassílabo e o pentassílabo, e em que, por vezes, a rima aposta em esquemas menos óbvios, como sucede na algo surrealizante «História com moral» (p. 32), é de notar ainda a exaltação da riqueza (palavra utilizada num dos poemas) existente nas coisas aparentemente simples, sejam elas elementos da Natureza (e a Natureza aqui é sempre porta aberta para o imaginário, fomentando o sonho criador), sejam um «sorriso de criança» (no texto com este título, p. 56) ou o próprio saber – aquilo que faz daqueles que o conquistam «reis do conhecimento» (v. poema «Rei do conhecimento», p. 12). E que preciosos pensamentos dirigidos aos mais jovens e a todos, sobre o modo de se ser humano e sobre o mundo, encerram alguns destes poemas num registo que nunca é simplista.

Embora as composições de Águas de Infância – ora de pura tonalidade lírica, ora em clave narrativa e/ou dialogal – sejam de assinalável beleza, esteticamente cativantes, quer do ponto de vista das ideias quer no indissociável plano das formas e das formulações imagísticas e outras (há passagens de música verbal da mais pura), trata-se de uma poesia que se não quer numa torre de marfim, abstraída dos males do mundo e da sociedade. E daí a presença de um veio de reflexão que não vira costas nem à pobreza e à desgraça humanas («Águas sujas de calamidade», p. 27) nem aos males de ordem ambiental que afectam o planeta: poluição dos oceanos, aquecimento global, destruição da vida animal («Diálogo por um mundo melhor», p. 28), nem à pulsão predadora do ser humano («Adivinha», p. 60, em que vagamente ecoa o Padre António Vieira do Sermão de Santo António aos Peixes).

Existem composições muito belas, e de grande intensidade lírica e poética, neste livro, como «Águas de infância» (p. 5), «O rio da minha vida» (p. 43), «O jardim» (p. 55), «Sorriso de criança» (p. 56), que me apeteceria ler em voz alta e comentar. Mas já me alonguei. Direi apenas, quase a terminar, que, tal como as outras, estas são exemplos de pura arte oferecida à infância dos difíceis e perigosos dias em que vivemos – e como anda ela precisada dessa arte, como andam a infância e a juventude necessitadas do melhor que se lhes possa dar a ler, a contemplar, a fruir de um ponto de vista estético. Obras que emocionem e eduquem para uma visão humanista, e que estimulem um pensamento crítico sobre o mundo.

Também por isso, não surpreende que tenha sido escolhida uma verdadeira artista da pintura e não apenas da ilustração, Joana Antunes, para a parceria com Nuno Higino neste livro. Também ela soube carrear para estas páginas as suas «águas de infância», muito belas e expressivas, sábias nas formas, no desenho e na combinação das cores, imprimindo ao conjunto um registo algo tropicalista, se me é permitida a palavra, muito pessoal e atractivo, acrescente-se, que me agrada e que faz do livro uma pequena festa de arte e de poesia. Este é, pois, um daqueles casos em que, como alguém dizia, o objecto livro funciona também como primeira galeria de arte que o olhar da criança ou do jovem pode visitar.

Que assim seja, pois. É que, como um dia escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta da afeição de Nuno Higino, «só a arte é didáctica».


José António Gomes

IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)

Águas de Infância, de Nuno Higino, pode ser adquirido em: https://letrasecoisas.com/loja/