Autor de títulos para o público adulto e de outros de preferencial destinatário infantil e/ou juvenil, como Versos de Respirar (2009), Rimas e Castanholas (2012) e a narrativa O Melro Envergonhado (2011), além de um livro, muito útil, de pedagogia poética, intitulado A Poesia como Estratégia (1999), José António Franco gosta de assumir a subversão da gramaticalidade como um dos seus modos de estar na escrita poética, que é, sem dúvida, o domínio da criação literária que mais o tem ocupado (1). E daí o «assins» do homoteleutico título do seu livro de Outubro de 2014, Pandeiretas Cornetins e Rimas Assins (Tropelias & C.ª), e, por outra parte, a não utilização de maiúsculas e a ausência, ou quase ausência, de pontuação que normalmente caracteriza os seus poemas e que os torna despojados e porventura mais abertos à pluralidade das expressões/leituras orais e das interpretações possíveis – pelo menos, talvez assim os pretenda o autor. A juntar à circunstância de em geral não dar títulos aos textos – como faz também, por exemplo, Antonio García Teijeiro, escritor galego que igualmente destina a maioria dos seus poemas ao público infantil e juvenil –, diria que estas são algumas das formas que José António Franco tem de viver a liberdade criativa e subversiva que a poesia lhe proporciona e de desafiar os seus jovens leitores a partilhar essa mesma experiência.
Os pianos, trombones, buzinas que marcam presença nestes versos, a juntar às referências a cantigas, colocam o livro sob o signo da música (2) e de outras manifestações sonoras (leia-se também, ou escute-se, o poema «crocita corvo malvado…» (pp. 52-54), a trazer à memória o famoso «Vozes dos animais» do oitocentista Pedro Diniz), como de igual modo o colocam nesse plano as «pandeiretas» e os «cornetins» do próprio título do volume, bem como o estival poema de abertura, convite ao desfrute da vida em geral e da vida das palavras em particular, de que a música, aqui referida, seria expressão metafórica ou simbólica: «vinde meus amigos / de todas as horas (...) // vinde / sem demora / há música já / oiro do trigo / lábios d’amora» (p. 5). Essa isotopia acústica surge em consonância com o acentuado perfil rítmico dos versos, com recurso a diferentes métricas – em que avultam o heptassílabo, o pentassílabo e outras medidas –, à rima recorrente, ao jogo das aliterações e assonâncias, aspectos por via dos quais José António Franco evidencia a sua linhagem, bem conhecida: a ligação às chamadas «rimas infantis» da tradição oral e popular (trava-línguas, lengalengas, rimas de jogos…).
Mas o poeta vai mais longe nesta exploração da dimensão sonora do signo e do poder de sugestão de sentidos que o significante, só por si, comporta; e é isso que, em parte, explica o gosto pelas palavras inventadas, em composições com algo de experimental, mas simultaneamente bem-humoradas, como «’scanun fósio microdésico…» (p. 19), «juliano piano adormeceu…» (p. 23), ou mesmo no trava-línguas «eu nunca jarritrolirochocolitarei…» (p. 31) – textos reveladores de uma lição bem aprendida quer em alguns mestres do nonsense e da invenção verbal, como Lewis Carroll, quer em experiências como a dos «Sonetos a Afrodite Anadiómena», de Jorge de Sena.
Ousaria, aliás, afirmar que, em José António Franco, o nonsense – recorrente em vários dos trinta e cinco poemas deste livro – ocupa um lugar que não é o da mera gratuitidade, mas que tem de algum modo a ver com um pertinente propósito de educação linguística e literária. Ou seja, ao trazer para primeiro plano a festa sensorial da linguagem, ao apontar para a sua vibrante dimensão fónico-rítmica, mostra que a palavra pode ser fonte de prazer e de encantamento, independentemente da própria esfera da significação e da comunicabilidade. É como se dissesse (e isto sabem-no bem crianças e poetas): as palavras não se limitam a possuir uma função utilitária, servem também para com elas se brincar, existindo na língua uma dimensão lúdica intrínseca, irrecusável e um tanto subversiva da lógica comunicacional do universo dos adultos.
Ilustrada, em Pandeiretas Cornetins e Rimas Assins, com belas fotografias de António Rilo (dez, se contarmos a da capa), a escrita de José António Franco não se esgota, porém, na linguagem nonsensical e na dimensão fónico-rítmica da língua. O desafio metalinguístico a pensar a palavra e os seus usos, em poemas como «registei a palavra “casa”…» (p. 17) e «escondeu-se atrás da primeira palavra que encontrou…» (p. 6) – um dos principais textos do conjunto, desencantada visão também do isolamento do ser humano, da incompreensão e da incomunicabilidade –, o culto do poema breve ou brevíssimo, por vezes de cunho aforístico («para o sonho / toda a vida / para a morte / tempo algum», p. 20) são outros eixos a ter em conta neste livro. A eles forçoso é juntar o testemunho de um olhar que contempla e recria poeticamente o que vê – a vida natural e os elementos (animais, vento, mar, rio, sol, lua…) –, uma atitude reflexiva que equaciona a temporalidade, o impulso onírico e a viagem como desejo (leia-se o belo poema «da minha janela não vejo o mar…», pp. 21-22) e até certa dimensão de implicações sociais que se insinua ao de leve em poemas como «o passarinho a cheirar a vinho…» (p. 43) e «o saul só gosta de azul…» (p. 12).
Mesmo correndo o risco da simplificação, direi, a terminar, que tudo o que acaba de ser dito faz destes versos de José António Franco não apenas uma poesia que privilegia o significante, de carácter essencialmente lúdico, mas também uma poesia do significado, uma escrita que desafia o jovem leitor a pensar o mundo, a natureza, as palavras.
Nota
(1) Não obstante contar, na sua carreira, com duas distinções públicas na área do conto: o Prémio Alves Redol de Revelação, em 1990, e o X Prémio Joaquim Namorado, em 1993.
(2) Registe-se este surpreendente começo de um dos poemas: «de repente um piano desabou sob a tarde / desaçaimado desengonçado desteclado / feroz» (p. 25).
José
António Gomes
IEL-C –
Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais do Centro de
Investigação e Inovação em Educação (InED) da ESE do Porto