Subintitulada «Um diálogo filosófico sobre as muitas maneiras de arrumar o mundo», Barafunda, livro editado com a chancela da Editorial Caminho, um volume nascido da conjugação feliz de três sensibilidades, duas em forma de palavras – as de Afonso Cruz e Marta Bernardes – e uma outra em substância ilustrativa – de José Cardoso, parece, desde a primeira página, contrariar algumas das ideias feitas/”pré-conceitos” acerca da literatura de preferencial recepção infanto-juvenil1. Com efeito, desengane-se quem julgar que esta obra – porque potencialmente destinada aos leitores mais novos – é simples (ou talvez melhor dizendo, simplista), versando temáticas mais ou menos quotidianas/corriqueiras. Que não se pense também que esta se inscreve em absoluto ou inequivocamente num dos modos literários – narrativa, poesia ou drama – ou que guarda um texto breve ou muito breve construído a partir de estratégias comuns. A realidade é – e ainda bem!... – outra.
De facto, Barafunda, como sugere e explicita o seu posfácio, da autoria de Marta Bernardes, possui, antes de mais, um relevante hipotexto filosófico, situando-se, assim, nessa «constelação precedente de textos» (retomando a expressão de Stierle) que a teoria da literatura convencionalmente apelida de intertextualidade. Dos Metadiálogos de Gregory Bateson (1904-1980), resultantes das conversas deste intelectual com a sua filha durante a sua infância, passando por Aristóteles e Platão, e talvez até – quem sabe? – por um ou outro segmento da poesia e do texto dramático de Manuel António Pina (1943-2012) – do Inventão, por exemplo –, são vários os fios subtextuais com que se tece esta obra de Afonso Cruz e de Marta Bernardes. E esta «tessitura polifónica» (na expressão de Aguiar e Silva), só possível porque – sublinhe-se – nos encontramos perante uma dupla de autores cultos, esta tessitura polifónica, dizíamos, materializa-se através de uma construção dialógica, simultaneamente de elevada poeticidade e de carácter parateatral. Aliás, as ressonâncias teatrais em Barafunda são diversas. Veja-se que a própria arquitectura interna – em cinco secções/actos, a saber «Barafunda», «Barafinda», «Farabunda», «Rafabunda» e «Bafarunda» – parece disso dar conta. Talvez valha aqui a pena lembrar que este texto, em forma teatral ou espectacular, se encontrou em cena em Março de 2014, no Teatro Maria Matos.
Ao tópico do brincar (não só com as palavras como facilmente se percebe), o brincar como acto estruturante, na ordem e na desordem, juntam-se outras linhas ideotemáticas, algumas de possível “arrumação” dicotómica, como ordem e desordem, memória 2, humanismo e/ou condição humana – «As pessoas fazem toda a diferença. Um / quarto é um quarto, mas um quarto / com uma pessoa é um universo» (Cruz e Bernardes, 2015: 37), diz o texto –, liberdade, afectos, razão e, até, naturalmente, a «contradição humana», por exemplo. É, pois, um conjunto de eixos semânticos que ganham em Barafunda expressão nas vozes de um argonauta que se encontra a arrumar o quarto – Ari ou Aristóteles – e uma nave, uma voz maternal – ou Platão.
Além da estratégia supramencionada, o diálogo, construído a partir de enunciados breves e pautado pela vivacidade e pelo humor, assinale-se, ainda, o recurso à técnica do encaixe, visível não apenas nas diversas canções de celebração, mas também e, muito especialmente, na inclusão, quase no final da obra, da história de um pintor grego e dum pintor persa (p. 40).
A própria composição visual do volume, assinada por José Cardoso, mobiliza o encaixe e a intersecção, por exemplo, misturando também, organizando e desorganizando uma variada paleta cromática e um conjunto simultaneamente económico e expressivo de formas geométricas. As ilustrações e a sua disposição na página – simples ou dupla – corporizam e respondem eficazmente à mensagem textual, ampliando alguns dos seus mais relevantes semas.
Por tudo aquilo que registámos, é possível afirmar que, em Barafunda, não se subestima a capacidade receptiva dos destinatários mais novos, ao mesmo tempo que se abre a possibilidade de uma fruição plena e muito estimulante por parte do leitor adulto. Esta abertura, teoricamente inscrita no domínio da literatura crossover ou de recepção dual, não é coisa pouca... Note-se.
Terminamos, pois, pedindo de empréstimo algumas palavras partilhadas por Elias Bonfim, o narrador da premiada novela Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010), de Afonso Cruz:
«(…) basta saber que um bom livro deve ter mais do que uma pele, deve ser um prédio de vários andares. O rés-do-chão não serve à literatura. Está muito bem para a construção civil, é cómodo para quem não gosta de subir escadas, útil para quem não pode subir escadas, mas para a literatura há que haver andares empilhados uns em cima dos outros. Escadas e escadarias, letras abaixo, letras acima.» (Cruz, 2010: 14-15).
Acrescentamos e finalizamos: Barafunda é, de facto, um edifício feito de vários andares. Subir e descer as suas escadas e escadarias é (foi), para nós, um belo exercício. Agora é a vossa vez!
Notas
1 Este texto encontra-se escrito segundo a norma ortográfica da Língua Portuguesa anterior ao Novo Acordo Ortográfico.
2 «As pessoas trazem nos olhos o risco branco que / os aviões desenham no céu. E trazem amigos / dentro delas e recordações de aniversários e de / festas. Trazem muitas coisas. É como se dentro / delas houvesse muitos quartos. Na cabeça, / no peito, no corpo todo. Nem se percebe / como é que os quartos não ficam a abarrotar, / todos desarrumados de memórias e de tudo / aquilo que as pessoas têm dentro delas.» (Cruz e Bernardes, 2015: 31).
Referências bibliográficas
CRUZ, Afonso (2010). Os Livros que Devoraram O Meu Pai. Alfragide: Caminho.
CRUZ, Afonso e BERNARDES, Marta (2015). Barafunda. Alfragide: Caminho (ilustrações de José Cardoso).
Sara Reis da Silva
Instituto de Educação – Centro de Investigação em Estudos da Criança Universidade do Minho | sara_silva@ie.uminho.pt