No ano em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril, Sílvio – Guardador de Ventos (2016) e Domador de Caracóis (2010) –, em diálogo com a mãe, descobre e dá a conhecer aos mais jovens esse dia inicial inteiro e limpo (Sophia) em que a festa aconteceu (Mésseder). Surge, então, pela mão da editora Caminho das Palavras, o terceiro livro da coleção Sílvio Herdeiro do Cravo (2024), escrito por Francisco Duarte Mangas (n. 1960) e ilustrado por Ana Biscaia (n. 1978). Autor de ficção – com vários títulos premiados –, de poesia e de literatura para a infância, Duarte Mangas é testemunha da Revolução e confia às novas gerações a importante missão de preservação dos valores de Abril, para que estes não voltem a perder-se no escuro. As ilustrações de Ana Biscaia primam pela simplicidade do traço e acentuam o caráter dialógico do texto, conferindo-lhe uma disposição de arte sequencial, cujo layout se aproxima da banda desenhada, e os contornos das figuras, inacabados, lembram certos stencil graffiti. Aqui e ali, em elementos como as estrelas, as nuvens e os cravos, aparecem pequenos focos de cor, aguarelados, que contrastam com o negro do carvão.
Um cravo vermelho sobrepõe-se ao rosto da mãe e chama a atenção de Sílvio “porque andas com uma flor tão linda?” (p. 4). Esta pergunta desencadeia uma conversa intergeracional, marcada pela poeticidade da linguagem literária. O leitor vê-se envolvido em processos de desconstrução metafórica e de construção de sentidos que, apelando às emoções, promovem a criação de imagens mentais e de conexões com a realidade histórica representada. Na curiosidade de Sílvio, personagem-menino, espelha-se o universo infantil, caracterizado pela vontade de aprender mais sobre o mundo, de compreender as pequenas e grandes coisas que estão por detrás da existência. Por meio das palavras da mãe, um valor mais alto se alevanta, a liberdade, um bem raro que “abriga todas as cores do mundo” (p. 6). Esta voz que, nos primeiros anos de vida das crianças, tem um papel preponderante no desenvolvimento cognitivo e emocional, vem mostrar aos leitores adultos que a natureza questionadora da infância não deve ser ignorada, já que dela advêm momentos de grande aprendizagem. Entre perguntas e respostas, a mãe recua ao tempo da Ditadura do País das Pessoas Tristes – expressão em que, no plano intertextual, ecoa a obra O Tesouro de Manuel António Pina – para explicar ao filho, que nunca soube o que é não ser livre, como foi, para muitos, viver quarenta e oito anos com “o coração cheio de noite” (p. 14) e “os sonhos [perdidos] no escuro.” (p. 19).
A leitura desta obra, à semelhança de outras que versam o mesmo tema (Romance do 25 de Abril (2007) de João Pedro Mésseder ou Sempre! (2024) de Rita Taborda Duarte), traduz-se em benefício na formação dos jovens leitores, uma vez que contribui para o desenvolvimento do pensamento histórico, concorrendo para a manutenção de uma memória cultural coletiva. A homenagem aos jovens capitães, líderes da Revolução dos Cravos, e ao povo, multiplicador das suas forças, incentiva, simultaneamente, uma reflexão mais ampla sobre (i) a união, sem a qual não se concretizaria a formação do “grande arco-íris” (p. 28), representado nas duas últimas páginas do livro; (ii) a pacificidade que caracteriza a Revolução, salientando-se uma frase simples que, ampliada numa só página, tende a ecoar na mente do leitor – “Não gosto de guerra…” (p. 33) – diz-nos Sílvio, direcionando os nossos pensamentos para os conflitos que assolam o mundo e evocando o direito de todos os povos à paz.
Por fim, o texto motiva a formação de um sentimento de responsabilidade social, levando o público leitor infantil a compreender a importância de continuar a celebrar, após meio século, dia após dia, aquela madrugada em que as pessoas “assoaram a noite do coração” (p. 23) e “as estrelas [diluíram] a Ditadura dos Sonhos Roubados” (p. 30). Afinal, Sílvio herdou o cravo e, quando for grande, será “um poeta do dia claro e limpo” (p. 24) – como Sophia, aqui lembrada, também o foi –, honrando-se os poetas que lutaram contra a opressão e incentivando-se a nova geração a seguir a mesma direção. A este propósito, enaltece-se o poder da literatura e mais concretamente da palavra poética que Sidónio Muralha tão bem caracteriza nos seus versos e cujas palavras subscrevemos: “a poesia lá vai […] livre […] Lá vai, e luta, quer queiram ou não, / contra a lassidão e a doença do sono, / e a quem tiver sede oferece a canção / do futuro sem grades e dos homens sem dono.”.
Que a leitura deste livro dê asas a momentos de partilha e de diálogo entre gerações e que em todos os meninos e meninas, como Sílvio, floresça e não esmoreça o cravo dos poetas e do povo de Abril.
Raquel da Silva Carneiro
IEL-C (Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais) da ESE do Porto
(Originalmente publicado em As Artes Entre as Letras, 2024-12-25)