Rita Taborda Duarte é poetisa, como se sabe – na nossa memória ainda ecoa a feminil voz poética de Não Desfazendo (IN CM, 2023), a colectânea de poemas editados até Junho de 2023, acrescidos de um livro novo.
Mas Rita, que começou a sua obra para a infância há duas décadas, trazendo-nos esse belíssimo volume premiado que é A Verdadeira História da Alice (Caminho, 2004), com ilustrações de Luís Henriques – já nessa altura um cativante passeio pelo bosque da literatura e pelos enigmas e sortilégios da palavra –, nunca abandonou, bem pelo contrário, este domínio tão particular da criação literária que é a escrita para os mais jovens. Seguiu-se um número considerável de livros divertidos (e bem mais do que isso, claro), alguns inspirados numa experiência de mãe que vê os filhos a crescer e os reinventa enquanto personagens de ficção. E vários, doutro tipo, se seguiram.
Chega agora Gaspar com Os Pés Bem Assentes na Lua (Caminho, 2024), iluminado (é o termo, considerando o próprio título) pelo bom gosto – designadamente no manejo e combinação da cor – de Sebastião Peixoto, ilustrador distinguido e muito apreciado (ainda bem que, neste trabalho de castanhos, azuis, cinzentos, brancos-e-negros, se foge ao estafado jogo das cores primárias vivas, “puras”, que enche o olho preguiçoso e que tem condicionado o gosto mainstream em matéria de ilustração do livro infantil em Portugal).
A pequena história é protagonizada por uma criança, Gaspar, e pela Lua e começa por trazer à lembrança do leitor adulto as ambíguas luas más, de aparência boa (sempre sedutora) de alguns poetas, como Federico García Lorca (recordo o “Romance de la Luna”, do Romancero Gitano (1928) esse poema extraordinário sobre os ciganos, o plaino andaluz, a infância e a morte, que nos assombra e ensombra na canção do enorme Paco Ibañez). É que Gaspar tem medo desta “feiticeira perigosa” que sabe como “aprisionar a cabeça das crianças deixando-as aluadas e lunáticas”, como se lê num peritexto.
Com os “pés bem assentes na Lua” (e não na Terra, como quer o dito popular), Gaspar não se deixa iludir. Mesmo assim, alertando o mundo, jamais desiste de se manter de olhos-e-mente-e-tudo bem atentos à Lua, como qualquer poeta digno de tal nome.
Marca d’água da escrita de Rita para a infância é a exploração da Palavra, o seu direito e o seu avesso, o seu verso e o seu reverso, suas frentes e costas. E, em época de titubeação e vociferação, de luta pela “palavrodiversidade” (p. 5), deslindar o mistério de cada palavra, de cada expressão – que nunca se deslinda, por isso se mantém lindo e “essa coisa é que é linda” (Pessoa) – é um dos jogos preferidos de Rita Taborda Duarte. A tessitura linguística, ou, para ser rigoroso, literária de Gaspar com os Pés Bem Assentes na Lua(como o próprio título já indicia) é bem a ilustração do que acabo de dizer, com toda a pulsão neologística e lúdica que distingue a escrita, texto para ler (também) em voz alta, saboreando o tal açúcar da Língua.
Quase a chegar ao segundo fim da narrativa – porque ela, avessa ao normal, tem dois fins –, uma nota lembra as muitas expressões que à Lua devemos e os seus sentidos: “cabeça na Lua”, “nascer com o **** virado para a Lua”, “lunática”, “aluado”, “lado lunar”…
Eu li e enquanto lia, apesar dos perigos, ia-me aconchegando nos braços desta Lua de Gaspar e nos braços do próprio Gaspar – nome de Rei Mago, em hebreu “o branco” (gathaspa), tal como a Lua em que o menino era vidrado. É bom a gente sentir-se aconchegada nos braços de um menino. Muito bom para a minha idade. E talvez para a noite de Natal.
José António Gomes
IEL-C (Núcleo de Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto)