No final de 2008, veio a lume, com a chancela da Kalandraka, um álbum narrativo da autoria de Eduardo Galeano e com ilustrações de Antonio Santos. Aqui, o conhecido escritor uruguaio recria, de forma original, uma lenda do Nordeste Brasileiro, onde o oleiro do Ceará, com as suas mãos, devolve à vida um papagaio morto em consequência da sua extrema curiosidade.
O texto, muito simples e contido, desenrola-se segundo uma estrutura acumulativa, de acordo com uma sequência perfeitamente encadeada, que se revelará determinante para o resultado final da história e para o próprio epílogo.
Face à morte do papagaio, são muitas as vozes solidárias que se unem para chorá-lo: a menina, sua amiga, a laranja, o fogo, o muro, a árvore, o vento, o céu e o homem, numa sucessão contínua de acções que manifestam o pesar pelo acontecido. A personificação dos elementos da Natureza revela a comunhão que os caracteriza, como partes de um mundo simbiótico. As diferentes formas de exteriorização de uma mesma tristeza – pelo choro da menina, a perda da casca da laranja, o apagar do fogo, a perda da pedra do muro, a queda das folhas da árvore, a perda da rajada do vento, a abertura da janela e o desaparecimento da cor do céu – serão a matéria-prima que, nas mãos mágicas do oleiro, dará vida, múltiplas cores, qualidades e voz ao novo papagaio. O cariz circular da narrativa, as repetições e os paralelismos, visíveis também no recurso à anáfora e ao polissíndeto, assim como o vocabulário simples e o final feliz, com a reinstauração de um equilíbrio melhorado, reforçam a ancoragem do texto no universo tradicional oral, aproximando o narrador do contador de histórias. O simbolismo do papagaio colorido na cultura brasileira, em especial na nordestina, confere-lhe um lugar particular na vida e nos afectos dos homens, destacando-se, pela inteligência e por imitar a linguagem humana, das restantes aves. Símbolo do próprio país, venerado em diferentes culturas indígenas, esta espécie conhece reiterado tratamento literário e artístico.
A componente visual do livro merece, igualmente, observação atenta e cuidada. Da autoria de Antonio Santos, pintor e escultor espanhol, as ilustrações resultam da fotografia de composições escultóricas, em madeira pintada, funcionando de forma tridimensional e permitindo explorar sugestões de volumetria e de movimento. Mantêm, para além disso, em resultado da técnica utilizada na construção das esculturas, uma ligação ao universo artesanal que é sublinhada pela opção pelos materiais e pelas formas. O dramatismo das imagens resulta, ainda, largamente, do processo de fotografia de que são alvo, para além do cuidado design da edição, explorando a sugestão de sombras e a variação de perspectivas e de planos, com especial relevo para o plano de pormenor, permitindo a criação de sequências dinâmicas.
Objecto de uma recriação original, também em resultado da adição de uma forte dimensão poética, esta lenda brasileira que junta binómios aparentemente contraditórios, como a vida e a morte, distingue-se, para além de uma exemplar componente pictórica, muito colorida, expressiva e perfeitamente articulada com o universo textual, pela forma como alia narrativa e poesia, tradição e modernidade, construindo uma narrativa que, para além de tudo, também fala de afectos e de como eles mudam o mundo e vencem até a própria morte.
Ficha bibliográfica
Eduardo Galeano (texto) e Antonio Santos (ilustrações)
História da ressurreição do papagaio, Matosinhos: Kalandraka, 2008, col. Livros para sonhar, tradução de Elisabete Pereira ISBN 978-989-8205-01-8
Ana Margarida Ramos
Universidade de Aveiro; membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)