Uma hipótese que mentalmente se me impunha era esta: o amor, ou, pelo menos, o amor entre homem e mulher ou entre pessoas do mesmo sexo parece não ser uma temática recorrente na literatura infantil e juvenil. Era a intuição que tinha. Mas seria ela verdadeira? Dediquei-me então a desfiar, ao sabor do acaso, a minha memória da literatura infantil e juvenil portuguesa e, de imediato, a hipótese inicial começou a fraquejar. E porquê?
Bom, porque logo recordei a breve história dos amores proibidos de Vanina e Guidobaldo, situada na Veneza do século XV e encaixada na narrativa de Sophia de Mello Breyner Andresen, O Cavaleiro da Dinamarca (1964), um dos nossos clássicos. Ambos belos e apaixonados, Vanina e Guidobaldo fogem de gôndola para nunca mais serem encontrados por Jacob Orso, o ditatorial tutor de Vanina, e por Arrigo, o idoso pretendente. O pente que, apesar de ser de ouro, não brilhava tanto como os cabelos de Vanina, e a escada de seda que esta usa para fugir pela janela cumprem a função que costuma ser cometida aos objectos mágicos no conto de fadas, sendo por isso dois dos elementos que fazem com que a história se possa enquadrar num universo que a aproxima das narrativas tradicionais (havendo ecos, por exemplo, de Rapunzel, mas também da lenda de Tristão e Isolda, que aliás é referida no texto de Sophia). Existe, por outro lado, certo paralelismo entre o episódio de Vanina e o entrecho da peça Romeu e Julieta (1597) de William Shakespeare, muito embora, em Sophia, o enredo conheça um rumo oposto, isto é, um desfecho feliz para os dois amantes. A história de Vanina configura, pois, uma apologia da liberdade e do amor autêntico que cala fundo no espírito do leitor.
Esta história trouxe-me de imediato à lembrança todo o universo do conto de fadas, centrado no amor, de A Bela Adormecida a Cinderela, passando por A Bela e o Monstro, qualquer deles com múltiplas e diferenciadas versões na tradição oral portuguesa.
Depois, ocorreram-me exemplos relevantes do romance juvenil português. Como Guardado no Coração (2 vols., 1993 e 1994), de Álvaro Magalhães, uma narrativa de esquema policial que se abeira do fantástico, protagonizada por quatro jovens adolescentes e situada no Porto, onde se desenrola uma bela história de enamoramento e paixão entre Joana e Gil, a que não faltam alusões intertextuais, por exemplo à poesia de Rainer Maria Rilke, um poeta do amor e um adicto das histórias de grandes paixões amorosas.
Por seu turno, Caderno de Agosto (1995), de Alice Vieira – o mais representativo nome da ficção portuguesa para jovens –, é apenas uma das obras desta autora que mais directamente abordam a questão do amor, mas sobretudo do matrimónio desfeito, do divórcio e da busca de um novo rumo para a vida de uma mulher a chegar à meia-idade. Num texto que, a cada momento, nos convida a entrar no seu jogo de humor e ironia (essa arma letal, como lhe chamou Douwe Fokkema), apetece, sobretudo, reter o olhar arguto e feminino de Glória, filha de Luísa e narradora autodiegética, ou seja, o modo divertido como observa, com a lucidez da sua adolescência, a comédia de paixões desastradas e equívocos sem remédio em que se vão atolando os adultos que a rodeiam.
No campo do texto dramático, é difícil esquecer Todos os Rapazes São Gatos (2004), de Álvaro Magalhães, em que não se esconde certa nostalgia da primeira juventude, fazendo-se emergir uma oposição entre idade adulta, marcada no texto pelo sema da negatividade, e idade juvenil, que tem inscrito em si um sema de positividade – um pouco como ocorre no conto de fadas. Diz uma das personagens: «Só os jovens e os animais (…) podem ter [uma alma] porque só eles estão próximos do modo natural da vida. É por isso que os rapazes e os gatos podem trocar as almas, os corpos, as energias.» (p. 26). Uma destas «energias» prende-se com o impulso amoroso e joga-se numa tensão entre pulsão de vida e pulsão de morte, no quadro de um entrecho de tipo fantástico, em que a adolescência surge identificada com a condição felina. Na escrita de Álvaro Magalhães, a descoberta do amor, o desejo larvar, o despontar da paixão constituem uma tópica de eleição, na esteira de textos anteriores, como Os Hipopóptimos: Uma História de Amor (2001), o «Romance de Lucas e Pandora» incluído em Contos da Cidade das Pontes (2001) (também ele uma história de gatos) e vários dos títulos da colecção juvenil «Triângulo Jota».
No domínio do álbum para crianças, registo O Livro do Pedro (Maria dos 7 aos 8) (2008), de Manuela Bacelar (texto e ilustração), onde se ousa abordar, com naturalidade, o amor entre dois homens e a adopção por casais homossexuais. Mas poderia mencionar outros títulos, centrados em diferentes dimensões do sentimento amoroso.
E, por último, entre várias outras obras que poderia apontar, ocorre-me a poesia de Eugénio de Andrade para crianças, autor que, já em História da Égua Branca (1976), assinara um conto de tipo exemplar, com um esquema só na aparência tradicional, muito centrado nos equívocos decorrentes da incompreensão do instinto sexual. Do seu livro Aquela Nuvem e Outras (1986), guardo, por exemplo, este belíssimo «Faz de conta»:
– Faz de conta que sou abelha.
– Eu serei a flor mais bela.
– Faz de conta que sou cardo.
– Eu serei somente orvalho.
– Faz de conta que sou potro.
– Eu serei sombra em Agosto.
– Faz de conta que sou choupo.
– Eu serei pássaro louco,
pássaro voando e voando
sobre ti vezes sem conta.
– Faz de conta, faz de conta.
Neste poema, cujo título parece remeter o leitor para o território da simbolização e do imaginário, trata-se, no fim de contas, de dar a conhecer o jogo intemporal da sedução amorosa, recorrendo quer a um núcleo de signos comuns na escrita de Eugénio de Andrade «para adultos», quer à forma dialogada, que permite escutar duas vozes. O poeta constrói então uma série quase perfeita de correspondências semânticas e fónicas (abelha/flor mais bela; cardo/orvalho; potro / agosto; choupo / pássaro louco) que configura uma sucessão de metáforas de ressonância erótica, da qual ressalta a ideia de aproximação insistente da segunda voz (ou corpo) à que desafiadoramente diz «Faz de conta» (o primeiro corpo). Após um crescendo, o poema termina, no entanto, com a repetição do leitmotiv, como se sugerisse que o encontro dos dois corpos é impossível e que o interminável jogo – tão físico como mental –, vale por si. A pulsão desejante parece, aliás, comandar a escrita de muitos dos poemas de Eugénio de Andrade para crianças – isto sem falar da sua poesia dita para adultos –, uma pulsão irradiante que em diversas direcções se projecta.
Não resisto a apontar um último exemplo da presença do amor na literatura infantil portuguesa. Colho-o no belíssimo livro de Álvaro Magalhães, O Reino Perdido (1986), em especial neste delicioso poema dedicado ao «Bombeiro»:
Ele apaga todos os fogos
mesmo o do coração da amada.
Só que esse é um fogo doce
que ele está sempre a apagar
para o voltar a atear.
Como ele mesmo diria,
esse incêndio é uma alegria.
Onde ele não é muito bem visto
é no inferno.
Lá, nenhum bombeiro tem hospedagem.
É uma grande vantagem.
Como se pode ver, bastou meia dúzia de exemplos para a minha hipótese inicial perder consistência. De facto, o amor, nas suas múltiplas dimensões (e já nem falo do amor materno, do amor paterno ou do amor entre irmãos), é um tópico com expressão tudo menos negligenciável nos livros para os mais novos. E apraz-me dizer isto, pois, numa sociedade mercantil e ferozmente individualista como a nossa, que tantas vezes incute nos seus filhos o culto da competição e é indulgente para com as suas pulsões egocêntricas, a presença desta temática indicia, pelo menos, que a educação dos afectos não é menosprezada pelos autores e ilustradores da literatura infantil e juvenil.
José António Gomes
NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)